Um manejo calmo favorece a redução do risco de provocar dano na qualidade do produto. Quando um animal é manejado com bastão elétrico, de forma bruta, ele pode se machucar, ter um hematoma. Essa parte com hematoma não pode ser consumida. O estresse na hora do abate e o estresse prolongado causam perdas indiretas.
Em março, o Fantástico divulgou uma reportagem sobre o estado dos frigoríficos no Brasil. As imagens mostraram animais sendo abatidos com extrema crueldade, sem condições mínimas de higiene e sem nenhuma fiscalização. Dados de um relatório da ONG Amigos da Terra mostraram que um terço da carne consumida no Brasil não passa por nenhum tipo de inspeção ou fiscalização.
A revista Época fez uma entrevista com José Rodolfo Ciocca, da Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA), mostrando que é possível abater animais de forma humana, sem crueldade, e a sociedade só tem a ganhar ao fazer com que os animais não sofram.
Ciocca, que é coordenador do Programa de Abate Humanitário da WSPA, disse que o Brasil já tem regras para o abate humanitário. O problema é que a fiscalização é muito deficiente no país. O resultado é que os animais sofrem, e a qualidade de grande parte da carne comercializada no Brasil fica comprometida. Leia a entrevista com José Rodolfo Ciocca abaixo:
O que a gente pode chamar de abate humanitário?
José Rodolfo Ciocca: O abate humanitário nada mais é que um conjunto de técnicas para minimizar o sofrimento dos animais que são destinados ao abate. São soluções que incluem desde o transporte, da saída dos animais da fazenda até o frigorífico, em um manejo calmo e sem estresse, até o insensibilização, que é a perda da consciência desses animais. É uma maneira de minimizar o sofrimento e garantir a morte de forma humanizada.
Em outras palavras, é uma forma de fazer o animal não sentir dor?
José Rodolfo: Isso, porque já está provado que os animais são capazes de sentir dor, sofrimento, e que eles têm emoções. E não é só aliviar a dor, mas também o estresse, a aflição, em toda a etapa pré-abate.
Esse processo humanizado já existe no Brasil?
José Rodolfo: Existe, e já faz um bom tempo. Em 2000, o Ministério da Agricultura lançou a Instrução Normativa 3, com protocolos para garantir o abate humanitário e o bem-estar dos animais. Essa IN está um pouco defasada em relação a alguns parâmetros para garantir o bem-estar animal, por isso estamos fazendo junto com o Ministério da Agricultura uma atualização da norma, que agora está em consulta pública.
O que muda com essa atualização?
José Rodolfo: A norma já exige a proteção dos animais nos estabelecimentos, e nesse ponto ela não se altera. Mas alguns pontos estão defasados e geram dúvidas para os profissionais do setor e até para os fiscais. Uma das propostas é que todos os frigoríficos tenham um funcionário responsável pelo bem-estar do animal no momento do abate, e esse responsável tem que ter o poder de tomar uma ação caso alguma coisa não esteja dentro das regras.
Por exemplo, se o animal não foi insensibilizado corretamente, o profissional tem que ter autonomia para tomar uma ação, como parar o processo. Hoje, só os frigoríficos que exportam para a Europa têm esse profissional. Outro ponto é criar critérios para saber se o animal está inconsciente. Nenhum animal pode ser sangrado se não estiver inconsciente. Com esses critérios, os fiscais ou funcionários podem garantir com mais precisão que o animal não irá sentir dor. Em geral, a ideia é harmonizar nossa legislação com os requisitos da Organização Mundial de Saúde Animal e também com os requisitos europeus.
As novas regras preveem alguma punição para quem abater de forma cruel?
José Rodolfo: Isso já existe. Hoje, o frigorífico que não cumpre com as normas recebe um relatório de não-conformidade. Se o problema persistir, os fiscais podem multar. Em frigoríficos federais, isso é normal e acontece com certa frequência.
A situação é pior com os frigoríficos estaduais e municipais, que não são obrigados a ter um programa de autocontrole, e a punição depende muito mais da cobrança do inspetor. E em 80% dos casos, o inspetor não está lá.
Outra situação comum é a fiscalização encontrar problemas e, na hora de tentar fechar o estabelecimento, enfrentar interferência política – as vezes o dono do frigorífico é amigo do prefeito, parente de um deputado… e em vez de ser punido, o frigorífico acaba retomando as atividades.
Por que esse controle mais rigoroso só se aplica aos federais, não aos estaduais e municipais?
José Rodolfo: Isso é uma falha causada pela descentralização da inspeção. Nós temos uma inspeção federal muito atuante, muito forte e, ao mesmo tempo, inspeções estaduais e municipais mais fracas e com falhas. Não há uma fiscalização ativa e frequente. Isso compromete não só o bem-estar dos animais, mas também cria outros problemas, como falta de higiene.
Quando o consumidor compra a carne, ele precisa confiar na carne. Não importa se é um selo de inspeção federal ou municipal, o consumidor tem que ter a garantia de que aquela carne tem boa procedência.
É verdade que quando o animal não sente dor no abate, a qualidade da carne é melhor?
José Rodolfo: Sim. Um manejo calmo favorece a redução do risco de provocar dano na qualidade do produto. Quando um animal é manejado com bastão elétrico, de forma bruta, ele pode se machucar, ter um hematoma. Essa parte com hematoma não pode ser consumida. O estresse na hora do abate e o estresse prolongado causam perdas indiretas.
Por exemplo, no abate de suínos, se o animal é conduzido de forma brutal, com gritaria, bastão elétrico, ele vai sofrer uma carga muito grande de estresse. Nesse processo, o corpo dele vai converter energia do músculo para o sangue, e isso vai gerar defeitos na carne. Será uma carne pálida, flácida e exsudativa. Qual a diferença dessa carne: é aquela bisteca que reduz bastante de tamanho quando preparada, que seca na hora de consumir, é um tipo de carne que não pode ser usada para fazer presunto.
Já quando o estresse é prolongado – quando o animal fica muito tempo em jejum, sem beber água – o resultado é uma carne escura, firme e seca. No caso de bovinos, esse tipo de carne não pode ser exportada, e as vezes tem que ser descartada.
Quer dizer, não é só um problema de ética com o animal, mas também uma questão econômica.
José Rodolfo: Com certeza. As vezes somos criticados por nos preocupar com o bem-estar animal. As pessoas dizem que deveríamos nos preocupar em alimentar 7 bilhões de pessoas. Mas na verdade temos que pensar que, tratando o animal de forma digna, temos um aproveitamento melhor do animal, sem desperdício da carne.
Infelizmente a realidade no Brasil é que 50% dos animais que são abatidos têm pelo menos um hematoma. E cada hematoma significa em média uma perda de 400 gramas. O animal sofre, a carne é descartada, e o país perde milhões.
Quais são as boas práticas? O que é preciso fazer para que o animal não sofra na hora do abate?
José Rodolfo: Começa no pré-abate, com um embarque planejado, de forma calma e tranquila. Deve-se respeitar a densidade de transporte, não ter uma viagem longa e, quando chegar no frigorífico, fazer um desembarque adequado, com pessoas capacitadas.
Um dos pontos importantes é não usar o bastão elétrico para conduzir o animal, é preferível usar chocalho, bandeiras e princípios de comportamento animal. Depois, é preciso fazer a insensibilização correta e precisa. O animal deve perder a consciência no primeiro disparo da pistola de insensibilização, e a sangria deve ser feita imediatamente, para não correr o risco do animal retomar a consciência.
Quando se segue esses critérios, consegue uma morte digna e, ao mesmo tempo, a redução de perdas econômicas, melhorando a qualidade do produto.
Fonte: Revista Época, resumida e adaptada pela Equipe BeefPoint.
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O abate humanitário traz ganhos financeiros e respeito pelo animal. Manejo, transporte, jejum, descarga, atordoamento e outros, se mal aplicados, produzem lesões e perdas de carcaças e suas partes nobres. Quem avalia e mede, sabe disso.