No artigo da semana (Vaca louca no Canadá: impactos na cadeia da carne) passada, busquei fazer uma análise do ocorrido no Canadá e os possíveis impactos na cadeia da carne mundial, especialmente no Brasil. Entre os comentários que recebi, um deles me questionava sobre a situação atual do Brasil e o que deveria ser feito para que pudéssemos ter benefícios diretos ou indiretos com esse episódio. A questão não é “tirar vantagem” do Canadá, mas aprender, se preparar e ser rápido na reação em casos similares.
O objetivo principal desse artigo é estimular o debate sobre o que podemos fazer para tornar a cadeia da carne brasileira uma referência em credibilidade e qualidade de produto.
O ponto principal de preocupação com o caso de “vaca louca” no Canadá é que de alguma maneira (espera-se que bem brandamente) isso afeta a credibilidade da carne, como um alimento seguro. O que realmente importa é a percepção do consumidor. Caso ele tenha uma dúvida, causada por uma informação incorreta ou incompleta em relação à carne, isso poderá reduzir o consumo. Infelizmente isso ocorreu em todas as últimas crises (Japão e Europa).
No caso da BSE (sigla em inglês do nome científico para doença da “vaca louca”) no Canadá, a imprensa vem sendo elogiada pelo tratamento mais racional em relação ao assunto. O sensacionalismo da imprensa japonesa foi um dos fatores que mais colaborou para a forte queda de consumo no Japão em 2001.
Voltando à posição atual do Brasil na questão da “vaca louca”, segundo o MAPA, o Brasil tem feito o dever de casa em relação à doença. Todos os animais importados da Europa desde 1995 são rastreados (os do Canadá também serão) e quando terminam sua vida reprodutiva são incinerados e enterrados, com respectiva indenização do proprietário.
Além disso, no ano passado o Brasil realizou mais de 6.000 testes em animais que teriam alguma chance de apresentar a doença. Essa é uma medida de precaução e controle tomada por países que tem baixíssimo risco de apresentar a doença. Os EUA, que têm o mesmo nível de risco que o Brasil, também faz testes preventivos, tendo realizado em torno de 20.000 testes no ano de 2002.
Outra questão muito interessante é a da rastreabilidade. Está cada dia mais claro que será impossível ter acesso a mercados que remuneram melhor sem rastreabilidade. No entanto é preciso ficar claro que rastreabilidade é muito mais do que o vem sendo feito hoje no Brasil (salvo raras exceções) e que ela precisa ser inserida num contexto maior, para poder ser recompensadora. Aumenta-se o problema quando muito pouca gente (técnicos, produtores, etc) sabem realmente o que significa rastreabilidade.
Hoje a maioria entende como apenas um custo, uma taxa, que não agrega, como o que se paga para autenticar um documento. Isso é uma falha do governo e da cadeia por não buscar um maior esclarecimento das obrigações, impactos e vantagens advindas da implantação dessa técnica.
Para se alcançar uma rentabilidade maior na pecuária, através de preços melhores no mercado externo (e em nichos do mercado interno) será preciso produzir com total controle sanitário, programas de qualidade assegurada e rastreabilidade. Entenda-se como rastreabilidade o controle efetivo de todo o manejo sanitário, nutricional e movimentação de animais, além disso, auditado por um organismo independente e com credibilidade internacional.
Um caso hipotético de um programa de qualidade assegurada e controle sanitário impecável sem rastreabilidade não conseguirá se inserir de maneira duradoura no mercado internacional, nos nichos que pagam mais que preço de commodities (em tendência constante de baixa no longo prazo). Por outro lado, ter rastreabildade e não poder oferecer um programa que garanta a qualidade desse produto também não garantirá um centavo a mais por arroba de boi vendida. Acredito que a rastreabilidade é uma peça chave no quebra-cabeça da rentabilidade da pecuária brasileira no médio-longo prazo, mas sozinha não acrescentará nada.
Acredito que outro grande desafio das empresas que buscam a produção de carne com maior rentabilidade é a implantação de programas de qualidade assegurada. Qual a diferença desse programa para o controle de qualidade tradicional? Qualidade assegurada significa que todo o processo de produção foi acompanhado. Em outras palavras, há a garantia de que o prometido durante todo o processo, foi cumprido. Já em programas que realizam o controle de qualidade, ocorre algo parecido à primeira vista, mas bastante diferente. Faz-se a checagem, quando o produto final está pronto, se esse produto se adequa aos padrões pré-estabelecidos.
Hoje, na Europa, (exemplo: marcas de carne francesas com selo Label Rouge), no Japão e nos EUA (po exemplo o Beef Ranch to Retail) são as que melhor remuneram o produtor por se adequar aos consumidores mais exigentes. Esses produtos não sofrem as consequências de crises como a iniciada no Canadá, semana passada. Nesses períodos o consumo desses produtos pode até aumentar, pois mais consumidores procuram a garantia extra oferecida por eles. Os produtores dessas marcas de carne ganham mais, pois conseguem atender melhor as demandas do consumidor moderno.
A pergunta que surge aqui é: mas o Brasil tem condições de se adequar para atender esse mercado?
O sistema de produção brasileiro é invejado por todos os países. Grandes extensões e custos muito baixos são únicos em nosso país. A grande vantagem do Brasil é a possibilidade de produzir carne com maciez, sabor diferenciado, segurança alimentar, respeito ao meio-ambiente e bem-estar animal, enfim tudo que o consumidor global exige hoje pode ser atendido pelo Brasil.
Temos a capacidade de produzir o que está sendo exigido pelos mercados mais exigentes. Para isso é preciso organizar a produção e garantir (através de programas de qualidade assegurada) que a produção brasileira realmente tem toda essa qualidade, que hoje significa muito mais do que apenas maciez.
Depois disso é preciso lançar o produto no mercado internacional, com uma campanha de marketing inteligente e eficiente, mas isso é assunto para outro artigo.
Há um grupo de pecuaristas brasileiros prontos para produzir dentro de todas essas exigências. Sendo feito de forma organizada, não encontrará concorrência à altura em nenhum mercado, pois será possível ter alta margem de lucro ao se aliar baixo custo e atendimento da exigência desses mercados.
De 3 a 7 de Junho de 2003 o BeefPoint estará na Feicorte, em São Paulo/SP buscando discutir o futuro da pecuária.
0 Comments
Muito bom o texto!
Temos que escrever, falar, discutir até que alguém nos ouça. Mas… está difícil.
Quanto tempo já perdemos, devido à órgãos de governo, pecuaristas e frigoríficos insensíveis.
Parece que cada um acha que o problema é do outro e que não é dele.
Parabéns por enfatizar: “… pouca gente sabe o que é a rastreabilidade …”. É a verdade maior.
Abraço,
Lirani
O artigo esta muito bom. Você conhece o assunto e colocou o tema muito bem.
Muitos pecuaristas têm a visão clara da necessidade e da importância da rastreabilidade e dos cuidados para fornecer um produto final confiável e de qualidade. Exemplo foi o dia de campo em Tabapuã ontem, por sinal excelente.
Entretanto, não há integração na cadeia. Alguns pecuaristas estão se organizando e entrando em outros ramos do negócio como é o caso da distribuição, saindo com marcas próprias ou butiques de carne.
Alguns poucos frigorificos estão procurando integrar premiando a qualidade. Mas a verdade é que o Brasil esta vulnerável. Estamos vendendo a imagem que em grande parte é verdadeira do boi verde criado no capim só que quem esta no negócio sabe que o frigorifico exporta a carne das carcaças que melhor se adequem ao pedido do importador e algumas delas provem de confinamentos onde se alimenta o gado com cama de frango, sabidamente um alto risco.
Os que confinam só com ração vegetal são penalizados por não usar tal expediente que sabidamente reduz o custo do concentrado em 19% e o custo final em torno de 4 a 5%.
De maneira geral os frigorificos não se interessaram nem por este aspecto nem por levar a sério a rastreabilidade. Não procuraram estimular os bons produtores pois querem tratar tudo como uma commodity.
Nos últimos anos os pecuaristas investiram muito e continuam investindo em tecnologia, ou seja da porteira para dentro estamos melhorando. Por outro lado os frigorificos, salvo honrosas exceções, continuam pouco eficientes e de alto risco (vide o recente problema da Campboi).
É claro que o episódio da vaca louca traz um prejuizo para toda a cadeia da carne pois é noticia do interesse de todos os consumidores mundo afora, é uma noticia com repercusão internacional que tem um impacto imenso sobre o qual não temos a mais remota possibilidade de influir e obviamente a noticia irá causar por algum tempo alguma redução mundial no consumo de carne bovina mas acredito que nada comparado com a primeira noticia na Inglaterra.
Por outro lado se temos o boi de capim, a carne verde, é lógico que podemos explorar o episódio comercialmente a nosso favor. Mas lembre-se que há sempre o risco de importadores/consumidores quererem vir confirmar in loco e se isto ocorrer há o enorme risco de se chegar à carne exportada de bois arraçoados com cama de frango. Se isto acontecer o Brasil terá um grande problema com reflexos sobre toda a cadeia.
Por outro lado como valorizar a nossa carne e garantir qualidade? Uma sugestão, p.ex., é o MAPA atuar e exigir que os exportadores levem a sério a rastreabilidade e que as certificadoras assuma suas responsabilidades e acompanhem realmente os rebanhos nas propriedades.
Na situação atual, com a rastreabilidade desprestigiada para dizer o minimo, estamos diante de sérios riscos de sofrer um ataque às nossas exportações de carne bovina mesmo com a área de sanidade animal do MAPA tendo feito um trabalho sérissimo na área internacional nos últimos anos e o Brasil gozar de muito prestigio pelo alto nível técnico dos responsáveis.
Acontece que contra fatos não há argumentos e se alguem quiser provar que estamos exportando carne de animais arraçoados com cama de frango é muito fácil provar.
Em síntese, respondendo a você, eu diria vamos aproveitar a oportunidade do fato: “noticia da vaca louca- BSE- no Canadá e capitalizar a nosso favor o boi de capim mas antes precisamos tratar de eliminar o risco de nos derrubarem com o desnudamento da real situação da rastreabilidade no Brasil.
Cuidado com o efeito boomerang.
Um abraço