O assunto que vou abordar hoje nada tem a ver com os artigos que já escrevi para este site, embora tenha tudo a ver com o Brasil. E, para não fugir da linha editorial deste veículo, como também não abusar do tempo do leitor, vou desenvolver o tema em dois artigos.
Embora católico, eu tive uma educação próxima ao calvinismo – onde a ética do e no trabalho, e a disciplina férrea prevaleciam sobre todo o resto. Meus primeiros anos de educação formal foram em escola inglesa, o que certamente ajudou a imprimir a fogo essas características: devoção ao trabalho e à disciplina, e mais um pequeno brinde: exteriorizar emoções era algo a ser definitivamente evitado, posto que considerado como “bad form” (mau gosto e fraqueza).
Como se tal não bastasse, fui trasladado dos ingleses direto para padres jesuítas. A educação em colégio de padres jesuítas – na época – era bem diferente da de hoje, assim como bem diferente era o alinhamento político deles: o aluno era impelido a competir sempre (só interessava o 1o lugar), e a buscar a racionalidade quase como se fosse um dogma de fé, a ponto de Descartes poder ser tratado como um mero diletante.
Este sistema pedagógico certamente produz indivíduos trabalhadores, éticos e eficientes. Mas conduz à felicidade?
Faço um corte, e vou direto ao assunto: minha admiração pelos negros (ou afro-descendentes, para usarmos um termo em voga).
Em que país europeu ou da América do Norte você ouve uma gostosa gargalhada, como a que ouvi de um pedreiro negro em Havana, quando eu tropecei em um cavalete que protegia a calçada por ele recém cimentada, e, estabanadamente ao tentar coloca-lo de pé, derrubei os outros três, estragando um trabalho de horas?
Em que país de Primeiro Mundo um motorista, também negro, abandona seu táxi para te ajudar a estacionar o carro, como me aconteceu em Salvador? E, simpaticamente ainda acrescenta: “Desculpe meu rei, mas é que o pessoal já estava xingando a senhora sua mãe, porque o senhor estava trancando todo o trânsito”.
Este é um predicado que, embora não exclusivo dos negros, neles aflora de forma abundante e espontânea: o que os franceses chamam de “joie de vivre” (algo como: alegria de viver).
Considerando-se a participação étnica dos negros no Brasil, uma coisa sempre me intrigou – ou mais do que isto – sempre me incomodou: que eu saiba, não existe no Brasil um museu sobre escravatura, pelo menos nada digno deste nome. O que há, são mostras difusas e pouco normatizadas. Ou então, monumentos como o que homenageia Zumbi dos Palmares, no Rio de Janeiro. Mas se você perguntar (eu já fiz minha “pesquisa” particular), a esmagadora maioria dos cariocas não tem a menor idéia de quem foi Zumbi dos Palmares, ou o que ele representou historicamente. Só sabem que o “dia dele” é feriado, e “oba, vamos pra praia”.
Em janeiro deste ano estive em Curaçao (Antilhas holandesas) – onde visitei o Museu “Kurá Hullanda” (museu sobre escravatura). Finalmente descobri porque a memória sobre a escravatura no Brasil é tão tênue e escassa. Em 1891, julgando que escravatura era uma nódoa e vergonha para o Brasil, Ruy Barbosa mandou destruir todos os arquivos existentes, e tudo mais que pudesse lembrar daquele período. Certamente, o fez com a melhor das intenções, mas com o pior dos resultados – pois eliminou a história e a origem de boa parte da população brasileira, relegada, portanto, a uma memória perdida.
Embora História seja um assunto apaixonante, eu não sou historiador, e sim economista. Talvez por vício de profissão, ou quiçá pelo fato de acreditar na máxima que diz que “a parte mais sensível do corpo humano é o bolso” – tenho tendência de analisar fatos históricos sob a ótica da Economia. Como este site não é foro para dissertações deste gênero, vou apresentar alguns fatos que jogam luz sobre pontos obscuros da História mundial. Eu sei que, ao faze-lo, talvez incomode algumas pessoas, ou, até mesmo, entidades do Movimento Negro no Brasil. Mas ao contrário de Ruy Barbosa, não creio que se consiga eliminar iniqüidades ao se apagar fatos, mas sim ao discuti-los de forma aberta e sincera. Então, vamos a alguns fatos:
A escravidão na África
A escravidão de africanos é anterior à chegada dos europeus neste continente. No século XII, no porto de Gênova, já chegavam escravos africanos capturados por árabes, e mesmo por negros. Mais tarde, os navios negreiros europeus não caçavam escravos e sim os compravam de chefes tribais, já que a escravidão era corrente e costumeira na África (ainda o é em alguns países). Havia mesmo uma relação comercial direta e regular de fornecimento de escravos entre o reino do Daomé e a Bahia, comércio este também disputado pelos nagôs. Muitos escravos libertos voltavam à África e lá se tornavam traficantes de escravos. Para se ter uma idéia do que isto significava em termos financeiros: apenas no ano de 1750, o rei do Daomé “faturou” £250.000,00 (o equivalente hoje a uns US$ 400 milhões) com a venda de negros a árabes e a europeus. Monarcas como o rei Alvare, do Congo, que se recusavam à esta rentável prática, eram depostos pela própria família.
Impérios Africanos
A África, berço genético da humanidade, foi também berço de grandes impérios e reinados. E não me refiro ao Egito e a Cartago apenas, como também ao que se denomina “África Negra”. Reinados como o de Benin, eram estados bem organizados e até superiores em “grau de civilização” aos da Europa dos séculos X, XI e XII. Ao contrário do que muitos pensam, existiu sim uma “cultura negra” na África, e não apenas restrita a religiões politeístas. Isso nos é difícil entender, já que nossa ótica e valores são, gostemos ou não, eminentemente europeus, e analisamos a África sob esta ótica. Experimente trocar de lugar, e analisar, com valores “africanos” o século XX no “civilizado” Hemisfério Norte: Duas guerras mundiais, diversas guerras locais, e dezenas de milhões de pessoas mortas. Pergunto: quem é mais “civilizado”?
Questão inglesa
Também no século XIX, a questão da escravatura é fonte de constante atrito entre o Brasil e a Inglaterra. Dom João VI compromete-se com o fim do comércio negreiro. Há, porém, ferrenha oposição dos grandes proprietários de terras. Em 1831, é votada a lei que determina o fim do tráfico negreiro. Nunca posta em prática, esta lei dá origem à expressão “para inglês ver”.
Em 1845, é promulgada na Inglaterra a Lei Aberdeen, que proíbe o tráfico negreiro em todo o mundo. A atitude inglesa não era totalmente ditada por interesses humanitários, já que o trabalho escravo ensejava preços baixos para gêneros agrícolas, sobretudo o açúcar, que competiam com os preços – mais elevados – das colônias inglesas. A intervenção inglesa pelo fim do tráfico negreiro era movida por interesses comerciais, e não humanitários. Aliás, algumas hoje respeitáveis empresas britânicas, tiveram sua origem ou enriquecimento através do comércio de escravos. Menciono duas:
O Banco Barclays foi criado, enriquecido e capitalizado através de financiamento ao mercado de escravos. E a re-seguradora Lloyds teve – durante décadas – seu maior faturamento oriundo de seguros de navios negreiros.
O tema continua no próximo artigo.
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Excelente o artigo do A memória perdida, aliás não é somente sobre a história da cultura afro brasileira que não temos memória. A agricultura brasileira com excessão dos “grandes ciclos” economicos, não nos é contada ou sequer memorizada.
Existe algum museu que conte a história técnica da agricultura dos últimos 150, anos que não seja açúcar e café? Somente produzimos isso nesses anos, e o arroz, feijão, a fruticultura em geral. Quem fez a primeira curva de nível no Brasil? etc… Quem foram esses pioneiros com suas invenções e pesquisas particulares?
Deveríamos nos preocupar um pouco com nossa memória agrícola, pois um povo sem memória, é um povo sem futuro.
Estamos escrevendo nossa história presente na agricultura mundial, teremos futuro? não deveríamos deixa-la em memória para que não esqueçmos de nossos erros e venhamos repeti-los?Será que museu só conta historia passada ou também pode descrever e historiar o presente?
Parabéns pelo resgate, principalmente pela lembrança da exploração inglesa de todas as “negritudes” de nossa tão presente e tão esquecida e rasgada história.