A União Européia voltou às manchetes nas últimas semanas por conta de quatro eventos importantes: o encontro de Lula com Chirac e Schroeder, a visita do Comissário de Comércio Pascal Lamy ao Brasil, a visita de ministros de cinco ex-colônias européias a Brasília que vieram pedir que o Brasil não conteste os subsídios à exportação de açúcar da UE, e, por fim, a apresentação da proposta da UE para a agricultura na OMC.
É inconteste que o Brasil e a América Latina mantém estreitos laços históricos, culturais e econômicos com a Europa Ocidental. No entanto, apesar das facilidades lingüísticas, que deveriam produzir animadas conversas pelo menos com a metade latina da Europa, na área comercial o que vimos assistindo é um “diálogo de surdos”, como bem afirmou o Ministro Furlan. Na minha opinião, uma verdadeira “conversa mole” que chega a subestimar o calor humano e a inteligência de nossos povos.
O acordo de comércio com a UE vem se arrastando por anos a fio à base de espetadas verbais e inverdades mútuas, sobrevivendo basicamente por conta do risco de que a ALCA possa algum dia fazer sombra aos interesses europeus no Mercosul. Os quatro eventos citados ilustram com perfeição essa vontade de manter aceso esse ambiente de conversas vazias.
No momento em que Lamy se dirigia ao Brasil para falar de cooperação e diálogo com a sociedade civil, a UE depositava uma duríssima proposta em Genebra, que deve bloquear o avanço das negociações multilaterais na área mais sensível para o Mercosul, a agricultura. Trata-se de proposta ultra tímida, que se aplicada manterá a agricultura à anos-luz de distância das regras vigentes para bens não-agrícolas, propriedade intelectual, serviços e investimentos. A proposta menciona ridículos cortes de apenas 15% em determinadas linhas tarifárias da agricultura que atingem o inacreditável valor de 250% na UE, 350% nos EUA e mais de 600% no Japão, além de manter inalterado o perverso sistema das quotas tarifárias de importação. Paralelamente, o corte proposto para os subsídios à exportação não muda a prática atual da UE nessa área. Na parte do apoio doméstico, além de cortes tímidos a UE tenta deixar de fora uma boa parcela dos subsídios distorcivos. A distância entre as propostas da UE, EUA e Grupo de Cairns, onde está o Brasil, fazem com que o documento de consenso elaborado pelo Presidente do Comitê Agrícola Stuart Harbinson, discutido em Tóquio nesse final de semana, fosse considerado “inadequado” por todos os países interessados.
É bem verdade que os americanos também não dão moleza para o Brasil, com a sua perversa Lei Agrícola de 2002 e com a ação dos poderosos lobbies que dirigem a política externa de Washington – açúcar, milho, laranja, aço, etc. – facilmente identificável na sua oferta para a ALCA. Mas ao menos na OMC a proposta agrícola dos EUA vai na linha correta, no sentido de criar regras multilaterais mais justas principalmente na parte de acesso a nercados. A dureza dos EUA torna a liberalização da agricultura muito difícil, mas não impossível. A Europa torna impossível.
E o pior é que em Bruxelas há pleno consenso de que a Política Agrícola Comum (PAC) precisa ser reformada para caber nos 25 países que formarão a UE. Serão 10,2 milhões de agricultores a mais nos 10 novos membros da UE, contra 8,2 milhões atualmente. Polônia (4,0 milhões), Romênia (3,4 milhões) e Bulgária (0,8 milhão) somam o mesmo número de agricultores que os atuais 15 membros da UE!! Além disso, Bruxelas sabe que a PAC perdeu o sentido econômico ao privilegiar os maiores produtores e certos produtos e regiões, e ao mesmo tempo produzir fenômenos inaceitáveis como a epidemia da “vaca louca”. Acontece que a Comissão sabe também que se a reforma da PAC não ocorrer, todo o sistema multilateral de comércio pode ruir, e por isso realmente deseja reformar a política, trocando o sistema de preços garantidos por pagamentos diretos desconectados da produção. Só que infelizmente as pressões políticas de países como França, Irlanda, Finlândia e até mesmo Espanha e Portugal têm falado mais alto. É curioso notar que mesmo os espanhóis e os portugueses, nossos “aliados” teóricos, tem preferido trocar o potencial de integração profunda com o Mercosul pelas quotas de fundos estruturais para as regiões pobres e pelos cheques de subsídios para os seus lobbies agrícolas. Isso sem contar a cara lavada de Chirac, que novamente afirmou “que os subsídios europeus não passam de folclore, de pura imaginação”, a despeito de a UE ter notificado quase 70 bilhões de euros anuais em gastos com subsídios distorcivos na OMC e a OCDE estimar as transferências de consumidores e contribuintes europeus para os agricultores em 117 bilhões de euros no ano de 2001.
Qualquer observador menos atento do processo sabe que “diálogo político” e “cooperação” são temas que normalmente vêm a reboque de uma negociação comercial consistente e equilibrada. Ao se fechar em bloco a UE criou elevadas barreiras para quem não é sócio do clube. Ao integrar dez novos países ela amplia esse clube fechado, criando mais desvios de comércio e investimentos. Ao adiar a reforma da PAC para depois de 2007 a UE posterga qualquer resultado minimamente aceitável para a Rodada de Doha em 2005. Ao retirar uma dúzia de produtos agrícolas sensíveis da oferta para o Mercosul, a UE manda uma mensagem de que esse acordo dificilmente vai se concretizar no médio prazo, e que vamos continuar apenas trocando discursos de boas intenções.
E pior é o que vem por aí. Ao propor, na OMC, que os países mais pobres do mundo tenham “acesso ilimitado” para as suas exportações, a UE cria uma categoria de “sócio honorário não contribuinte” no seu clube fechado, restrita apenas aos países que não oferecem maiores riscos de competição. Com essa estratégia, a UE compra o apoio da metade mais pobre da OMC, a exemplo dos cinco pequenos países que vieram a Brasília defender as gentilezas da PAC. Propor essa nova “exceção” ao sistema multilateral de comércio, que tenta dividir o Terceiro Mundo em “pobres-pobres”, com pleno acesso, e “pobres-avançados”, que pagam a conta, é uma atitude neocolonialista inaceitável, que pode inclusive destruir os alicerces do sistema GATT-OMC.
Todos esses fatos mostram não apenas que um acordo com Mercosul não é prioridade, mas que o colonialismo continua em alta, com uma pequena diferença: a caridade agora é feita de forma descarada com o bolso dos outros.
(artigo escrito para o jornal O Estado de São Paulo, em 15/02/2003)