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A memória perdida II

Em meu artigo anterior neste site, tratei de minha admiração pelos negros, e da minha inconformidade com a “amnésia nacional” quando se trata de escravatura. Reproduzo uma pequena parte da matéria anterior, para que a presente seja compreensível.

Considerando-se a participação étnica dos negros no Brasil, uma coisa sempre me intrigou – ou mais do que isto – sempre me incomodou: que eu saiba, não existe no Brasil um museu sobre escravatura, pelo menos nada digno deste nome. O que há são mostras difusas e pouco normatizadas. Ou então, monumentos como o que homenageia Zumbi dos Palmares no Rio de Janeiro. Não são isentos de valor, mas é pouco. Muito pouco.

Em janeiro deste ano estive em Curaçao (Antilhas holandesas) – onde visitei o “Kurá Hullanda” (museu sobre escravatura). Finalmente, descobri porque a memória sobre a escravatura no Brasil é tão tênue e escassa. Em 1891, julgando que escravatura era uma nódoa e vergonha para o Brasil, Ruy Barbosa mandou destruir todos os arquivos existentes, e tudo mais que pudesse trazer lembranças deste período. Certamente, o fez com a melhor das intenções, mas com o pior dos resultados – pois eliminou a história e a origem de boa parte da população brasileira, relegada, portanto, a uma memória perdida.

Embora História seja um assunto apaixonante, este site não é propriamente foro para dissertações deste gênero, então vou apresentar alguns fatos que jogam luz sobre pontos obscuros da História brasileira. Eu sei que, ao faze-lo, talvez incomode algumas pessoas. Mas ao contrário de Ruy Barbosa, não creio que se consiga eliminar iniqüidades ao se apagar fatos, mas sim ao discuti-los de forma aberta e sincera. Vamos a alguns deles:

Início da escravidão no Brasil

De inicio, é usado o trabalho compulsório indígena até o século XVII, e parte do XVIII. Por ser um negócio local, os ganhos não proporcionavam lucro para Portugal. Além do que, os índios eram dados à fuga, pouco dóceis e muito vulneráveis às doenças transmitidas pelos europeus. Dá-se então a substituição pela escravidão negra, cujos lucros são canalizados para o reino. A primeira leva chega da Guiné em 1530, com intensificação a partir de 1559. Como se vê, o comércio de escravos africanos não era restrita à sua eventual maior aptidão laboral, e sim porque proporcionava maiores lucros à Coroa portuguesa.

Números

Tendo os respectivos arquivos destruídos, não há consenso sobre o número de escravos negros a entrar no Brasil: as estimativas variam de 3 a 13 milhões. O número mais confiável é em torno de 6 milhões.

A monarquia portuguesa e a escravidão

A realeza portuguesa, ao contrário do que se lê na maioria dos livros de história, não era indiferente ao fenômeno da escravatura, embora lucrasse com ela: D. João III proibiu a escravização dos índios. Posteriormente, o rei D. José extinguiu a escravidão no território metropolitano de Portugal e nos arquipélagos de Açores e Madeira. Já nos demais territórios ditos “coloniais”, como o Brasil, as economias locais reagiram e a abolição estancou. D. João VI, ao ainda encontrar a escravidão no Brasil, tentou amainar seus rigores: proibiu que se marcasse os escravos com ferro quente e encorajou a imigração de famílias européias para trabalhar nas lavouras brasileiras como meio de substituir o trabalho escravo. Para tanto, revogou antiga proibição que impedia estrangeiros de serem proprietários de terras no Brasil. Tais atitudes influenciaram seu filho, Pedro I, que chegou a escrever, sob pseudônimo, artigos contrários à escravidão no jornal “Gazeta Fluminense”. Na “Carta aos Brasileiros”, ditada antes de morrer, declara a escravidão “…um mal e um atentado contra os direitos e a dignidade da espécie humana… um cancro que devora sua moralidade [da nação]”. Finalmente, veio a abolição pelas mãos da Princesa Isabel.

Desenvolvimento

A partir do século XVIII, tornam-se freqüentes as revoltas e fugas coletivas, a formação de quilombos e os levantes urbanos.
A amenização dos rigores da escravidão se dá no século XIX pelas Leis dos Sexagenários e do Ventre Livre. Apesar da crueldade da escravidão, mais intensa em Minas Gerais e nos engenhos do Nordeste, os escravos tinham direitos – muitos entravam com ações judiciais contra seus senhores por maus tratos, obtendo ganho de causa tanto na primeira instância quanto no Superior Tribunal de Justiça do Império.

Devido à miscigenação, calcula-se que um terço da aristocracia brasileira tinha sangue negro. Alguns negros chegaram a ocupar cargos ministeriais durante o Império. Na realidade, os negros no Brasil já foram muito mais valorizados do ponto de vista intelectual, do que são hoje. Neste aspecto, houve uma sensível regressão nacional, pois não foram os negros que ficaram menos inteligentes, e sim a sociedade brasileira. Constrange-me constatar que no Brasil, o negro “de sucesso” é quase sempre associado a futebol ou a música popular, e só.

A representatividade do negro e do mulato na economia e na política no Brasil é hoje muito menor que no passado. Alguns exemplos:

O presidente Nilo Peçanha era mulato, e filho de padeiro. Sim, Lula não é o primeiro presidente do Brasil com origem “operária”. Assim como era mulato o nosso escritor maior, Machado de Assis. Onde estão técnicos de renome nacional como os irmãos Rebouças, engenheiros civis, e negros?

Até em partidos políticos dito populares, a presença de negros ou mulatos é irrisória. Outro dia assisti, estarrecido, o programa político obrigatório do PPS (ex- Partido Comunista do Brasil) na televisão: eram todos brancos, e quase todos do sexo masculino. O mais moreninho era o deputado pernambucano Roberto Freire, que nem tem traços negróides, e sim indígenas. E isto em um partido político que se pretende “popular”!!

Fim do tráfico sim, mas e o fim da escravatura?

No Brasil, o fim do tráfico negreiro é definido pela Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, complementada pela Lei Nabuco de 1854. Os últimos escravos desembarcam no Brasil em 1855. O fim do tráfico negreiro estimula a imigração de europeus e libera grande quantidade de capital, até então empregado no comércio de escravos – cerca de 1,9 milhão de libras esterlinas por ano – algo próximo a US$ 1 bilhão em valor presente – fato determinante para a diversificação econômica do país. Mas o tráfico foi abolido, apenas do ponto de vista formal. Pergunto: a escravatura no Brasil realmente acabou? Pode-se dizer que alguém é totalmente livre quando, por preconceito ou por falta de oportunidades, não consegue dar vazão à sua total potencialidade? Para ambas perguntas, minha resposta é não.

O que fazer?

Creio que o primeiro passo é um “mea culpa” nacional. Admitamos, sem subterfúgios, que somos um país racista sim. E hipocritamente racista. Isso torna o fenômeno mais sutil, e muito mais difícil de ser combatido, e, eventualmente, eliminado.

Deixe-me fazer uma pergunta a você, caro leitor. Supondo que você é, como eu, branco e de classe média, quantos amigos negros você tem? Não, não – não me refiro a pessoas de quem você gosta, e trata amigavelmente. Considero como “amigo” – uma pessoa que freqüenta socialmente a sua casa, e vice-versa. No meu caso, respondo: apenas uma.

No entanto eu não me considero racista. O que ocorre é que, a sociedade brasileira dificultando a ascensão social e econômica dos negros – também dificulta o seu e o meu acesso a eles. Dessa forma, perdemos todos.

Mas o que fazer de concreto? Eu não acredito no sistema de se obrigar empresas a contratar um determinado percentual de “minorias” – se bem que os negros não sejam propriamente uma minoria no Brasil. Você pode até conseguir que os negros consigam mais postos de trabalho, mas em que nível? Apenas como faxineiros ou contínuos? As boas vagas de trabalho são – ou deveriam ser – preenchidas por mérito, e não por cor, sexo ou religião.

A resposta mesmo está na educação de boa qualidade e na formação profissional. Eu sou totalmente contrário ao sistema de “cotas”, que inevitavelmente comete uma injustiça no presente, ao tentar corrigir outra do passado. Eu até entendo o estabelecimento de “cotas” para minorias, em casos extremos, e que requeiram medidas drásticas. Mas de nada adiantará se, ao se implantar sistema de “cotas” na educação, premiar-se alunos relapsos ou incapazes – apenas por serem negros ou mulatos. Isso não é emancipação, e sim, esmola. Poderão até ter o diploma. Mas este de nada valerá se não for secundado pelo conhecimento. E, como um problema adicional convenhamos, será muito difícil estabelecer quem é “negro” ou não, em um país com o nosso grau de miscigenação.

Considerando esta dificuldade, e também por acharem que seria constrangedor o vestibulando ter de anexar foto, algumas universidades que já trabalham em regime de cotas, como a UERJ – adotaram o sistema de auto definição racial. Ou seja, na inscrição, você se declara negro, pardo ou mulato. Não me parece um critério inteligente, e certamente sujeito a fraudes.

Acredito que o sistema mais justo seja o de definição por classe econômica. Por que um candidato oriundo de família rica estuda em universidade pública gratuitamente, como eu fiz há mais de 30 anos atrás? Em parte, eu fui subsidiado por impostos pagos por pessoas pobres. É justo?

O que creio ser mais justo e eficaz é que se estabelecesse um critério que funcionaria mais ou menos assim:

– Pela declaração do Imposto de Renda do pai e da mãe do vestibulando, e considerando-se quantos dependentes eles têm, classificar-se-ia o candidato numa determinada categoria econômica.
– Os ricos e classe média pagariam; Os remediados estudariam de graça, e os pobres seriam subsidiados, para que não tivessem que trabalhar durante o curso superior.

Esta proposta é isenta de falhas? Muito ao contrário, é repleta de falhas. Por exemplo: não tenho idéia de como conseguir algo similar no curso secundário, o que é fundamental. É apenas uma idéia para um debate que deveria ser nacional. E sem ideologias, preconceitos e demagogias.

O acesso à educação de boa qualidade é o primeiro, e indispensável passo para melhorar a distribuição de renda vergonhosa que temos no Brasil, que impede – pela base de consumo de bens e serviços – o próprio desenvolvimento do país.

Minha contribuição ao tema é – reconhecidamente – permeada de pontos fracos. Ao reler o texto, eu mesmo detectei vários deles. Tudo bem, eu não sou pedagogo. Sou apenas um cidadão que se preocupa com a situação vigente, e preocupo-me não apenas pelo desejo de justiça social. Preocupo-me sobretudo, pelo futuro dos meus filhos.

Mediante a disparidade abissal que existe no Brasil, uma discussão aberta sobre o tema deve ser tentada. Como dizia Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.

0 Comments

  1. José Roberto Puoli disse:

    Caro Sr. Carlos Ortenblad,

    Que prazer imenso que tenho ao ver uma pessoa reconhecer em público um sentimento que sempre tive. Sentimento este de que o Brasil é sutilmente racista. E que existem muitos hipócritas que tentam negar isto. Talvez seja a experiência e os anos de vida que tenha levado o Sr. a ser tão claro nas suas colocações.

    Gostaria, humildemente, de compartilhar com o Sr. duas situações que vivi e que corroboram a sua posição.

    Tive a feliz oportunidade de viver nos Estados Unidos por 5 anos (fiz mestrado e doutorado) e lá conviver de uma maneira bem próxima com pessoas negras. Um dos grandes amigos que tive lá, quem me ajudou muito no começo, era um negro. Foi um grande amigo. Aquele país teve sérios problemas raciais, basta ver os acontecimentos das décadas de 50 e 60 nos estados do sudeste, como Georgia e Alabama. Porém, nos EUA o sistema educacional é muitissimo bom e justo, pode estar bem longe da perfeição, mas dá oportunidade para todos os cidadãos irem para a escola. Com isto ergueu-se um país com nível escolar altíssimo. E, consequentemente, vemos uma boa amostragem da população em todos os níveis sociais, governamentais etc.

    A outra situação que tenho vivido é a de conhecer a África do Sul. Tenho ido para lá com alguma frequência. Mas não como turista. Tenho ido e ficado na casa de algumas pessoas que têm os mesmos interesses que eu. Acredito que não tenha necessidade de falar qualquer coisa a respeito do problema racial naquele país. Alias, penso que seja o único país no mundo que assumiu que era racista. Como na universidade que o Sr. mencionou, na AS existe lei que garante que alunos de escolas em geral, funcionários públicos etc sejam um reflexo da sociedade. Isto está trazendo problemas sérios para o país, pois, nem sempre a pessoa mais competente para o cargo o assume. Pois, infelizmente, aquele país não teve um sistema educacional eficiente e justo.

    Portanto, por fim, Sr. Ortenblad, concordo com o Sr. que só teremos um Brasil menos injusto quando conseguirmos que TODAS as nossas crianças e adolescentes tenham acesso a boas escolas. Ainda me refiro ao ensino fundamental, se conseguirmos fazê-lo funcionar com qualidade os outros níveis de ensino serão consequência. Penso que já temos o esqueleto pronto, deveria ser bem cuidado.

    Bem, Sr. Ortenblad, foi um grande prazer ter a oportunidade de compartilhar com o Sr. alguns pensamentos e experiências.

    Até a próxima.