Por Angélica Simone Cravo Pereira1
A procura cada vez maior por produtos diferenciados tem pressionado muitos países a disponibilizarem alimentos com qualidade cada vez mais garantida e assegurada. Atualmente, no setor alimentício, há uma procura cada vez maior por produtos semiprontos, práticos que, em geral, são pré-aquecidos após o armazenamento sob refrigeração, podendo alterar o sabor desses alimentos. Isto, de certa forma, torna-se um inconveniente para os produtos cárneos, exceto se forem adicionados condimentos, por exemplo.
O conceito de qualidade envolve a relação de muitos aspectos e segmentos, com diferentes significados ao longo da cadeia da carne bovina, desde o nascimento do animal, manipulação e consumo do produto final. Portanto, a importância da qualidade da carne produzida resulta dos efeitos diretos de mão-de-obra de qualidade em todos os segmentos da cadeia.
A qualidade, a composição da carne e o produto cárneo para o consumidor final podem ser influenciados por uma variedade de fatores que ocorre pré e pós-abate, além dos métodos usados no processamento e embalagem do produto. Assim, o conhecimento desses fatores e conceitos fundamentais pode influenciar e é essencial a fim de assegurar que a carne seja um alimento de alta qualidade disponível ao consumidor.
Por outro lado, a qualidade é diretamente ligada às preferências dos consumidores. De acordo com o National Consumer Retail Beef Study foram observados dois grupos diferentes de consumidores, no que se refere à decisão de compra. O primeiro considera a carne magra, ou a quantidade de gordura externa de extrema importância. Contudo, o segundo, preocupa-se com o sabor da carne. Ainda, resultados sugeriram que os consumidores, inicialmente dispõem-se a trocar propriedades sensoriais por outras vantagens. Porém, essas propriedades sensoriais tornam-se fatores de motivação para contínua aceitação e compra (Chambers et al., 1993, citado por Shibuya, 2004).
Os aspectos de qualidade da carne são definidos ainda pela qualidade composicional (conteúdo de magro a gordo) e a palatabilidade (aparência, suculência, maciez e sabor).
Palatabilidade é uma característica organoléptica da carne. Consiste na percepção que se tem do alimento preparado por um dos processos usuais de cozimento, escolhendo-se o mais adequado para cada corte comercial. (Felício, 2004). Em geral, nas pesquisas, testa-se a palatabilidade de um ou mais dos seguintes cortes: contra-filé (m. Longissimus dorsi), do coxão mole (m. Semimembranosus) e da paleta (m. Triceps brachii), que podem ser igualmente assados em forno pré-aquecido e que são representativos das carnes para assar, fritar ou grelhar.
Aparência
A identificação visual da carne é baseada na cor, presença de gordura intramuscular e capacidade de retenção de água. A carne deve ter uma cor normal e marmorização uniforme no corte inteiro. A marmorização pode ser observada no corte a olho nu e está relacionada à suculência, maciez e sabor. A carne com pouca gordura intramuscular pode ainda apresentar aspecto seco, sabor menos acentuado. A capacidade de retenção de água (CRA) pode ser avaliada analisando-se a embalagem de carne: se um excesso de água for encontrado no fundo da embalagem, pode resultar em produto ressecado após o cozimento. Portanto, o músculo deve apresentar a umidade no interior para manter a maciez.
Suculência
Depende da quantidade de água retida no produto final. Relaciona-se com o aumento o sabor, maciez da carne, tornando-a fácil de ser mastigada, além de estimular a produção de saliva. A retenção de água e o conteúdo de gordura determinam a suculência da carne. A marmorização e a gordura “ao redor das bordas” mantêm a umidade. As perdas de água podem resultar também dos processos de evaporação e exsudação. Já em relação à maturação, esta auxilia na retenção de água. Portanto, aumenta a suculência da carne. Outro fator, que interfere na suculência é a utilização dos métodos apropriados de cozimento, como cozimento lento e/ou com calor úmido, que podem aumentar a suculência. Porém, os processos de cozimento, não adequados, podem levar ao ressecamento (desidratação) da carne. Assim, a melhor forma de incrementar a suculência da carne é aprender o melhor e mais adequado método de cozimento, dependendo do músculo preparado.
Sabor
O sabor e o aroma interligam-se criando a sensação que o consumidor tem durante o consumo de alimentos. Estas percepções baseiam-se no aroma que penetra pelo nariz e nas sensações de salgado, doce, azedo e amargo na língua.
O sabor da carne pode ser alterado por vários fatores e é composto por sabor da carne, derivado de açúcares redutores solúveis em água e aminoácidos; sabor específico da espécie e desenvolvimento de sabores estranhos (“off-flavors”) resultantes das duplas ligações da gordura, denominados oxidação lipídica, ou autoxidação de outros processos. Porém, em geral, não causa rancidez e desenvolvimento de “off-flavors” em carnes frescas, exceto que ocorra descoloração e desenvolva sabor desagradável, devido o crescimento bacteriano, anterior ao desenvolvimento do ranço (Shibuya, 2004). Uma das alternativas portanto, seria a utilização de antioxidantes, vitamina E, por exemplo, na tentativa de reduzir a oxidação de pigmentos e da gordura em carnes (Pereira, 2002).
A maior parte do sabor é atribuída à quebra do ATP ou energia. Este fenômeno resulta em sabor mais acentuado nos músculos armazenadores, devido à concentração de energia, do que nos outros. Isto também é parte das mudanças de sabor atribuídas à maturação, quando certas moléculas do produto são destruídas ao longo do tempo.
O sabor também é atribuído a muitos componentes hidrossolúveis do músculo. Estes componentes são mantidos pela retenção da água durante o cozimento. Os componentes do produto, como enxofre e nitrogênio, podem resultar ainda em sabores levemente diferentes.
Em relação às espécies, cada qual tem um sabor levemente diferenciado, que pode ser atribuído à gordura contida no músculo. A gordura derrete durante o cozimento e dá a cada espécie seu sabor distinto.
A mudança dos métodos de cozimento pode também alterar o sabor entre os músculos. O cozimento em calor seco, por exemplo, modifica o sabor das porções externas dos músculos, enquanto o cozimento úmido modifica mais o do tecido interno. Produtos reaquecidos têm um sabor distinto, em geral, menos atraente. Este sabor desagradável é causado pela mudança dos componentes da carne durante a refrigeração. Produtos defumados e curados também possuem sabor diferenciado.
Trabalhos realizados por Jeremiah et al. (2003) observaram que o m. Supraspinatus (peixinho) e o m. Longissimus foram considerados mais suculentos que os demais. Porém deve-se levar em consideração as diferentes espécies (ovinos, por exemplo) e os diferentes métodos de cozimento. Especificamente, músculos menos macios e suculentos, tais como, m. Semitendinus (lagarto) não deveriam ser comercializados para grelhar, churrascos, mas preferivelmente preparados em baixas temperaturas e por períodos longos de cozimento. Ainda, Jeremiah e & Gibson (2003) relataram que o grau de satisfação em relação a palatabilidade do m. Semitendinosus aumentou em 15% e a porcentagem de insatisfação foi reduzida em 1/3, quando se utilizou o método adequado de cozimento.
Uma prática comum na indústria da carne consiste no congelamento e descongelamento dos produtos cárneos. É comumente utilizado para a preservação da qualidade da carne, pois estende o período de conservação da mesma, além de causar o mínimo de alterações, tais como, deterioração na cor, sabor e textura. Porém, o processo de descongelamento não deve provocar alterações microbiológicas, assim como as perdas de água, e reações de deterioração dos produtos. Entretanto, uma maior perda de água durante o cozimento, e maior requerimento de energia são necessários no cozimento Obuz & Dikeman, (2003).
Esses mesmos autores avaliaram, através de painel sensorial, alguns atributos de palatabilidade dos músculos Longissimus lumborum (Ll) e Bíceps femoris (picanha) e concluíram que o (Ll) foi considerado mais desejável nos atributos sensoriais, que o (BF). Isso poderia atribuída à maior presença de gordura e menor tecido conjuntivo presente do (Ll). Outros estudos, como o conduzido por Rhee et al. (2004) também observaram amplas diferenças nas características de maciez entre vários músculos. Os fatores responsáveis por essas diferenças estariam relacionados às alterações bioquímicas, que, são variáveis dependendo do músculo.
Outro fator importante na avaliação dos atributos relacionados a palatabilidade, trata-se do fornecimento de alto teor e concentrado na dieta para bovinos. Myers et al. (1999) trabalharam com Simental, Angus e Wagyu e constataram que à medida em que aumentavam os níveis de concentrado na dieta, as carnes foram consideradas mais macias, com melhor sabor e aroma, que a carne de bovinos alimentados somente a pasto.
Andrae et al. (2001) observaram alteração da deposição de lipídeos na carne de novilhos alimentados com dietas de alto valor energético. Porém, a suplementação desses animais com óleo ou sebo não elevou o grau de marmorização da carne. Por outro lado, o fornecimento de soja alterou esses padrões de marmorização. Ainda, outra fonte de energia, como o milho de alto teor de óleo modificou o tipo e a quantidade de gordura depositada em novilhos terminados em confinamento, além de elevar o teor de ácidos graxos polinsaturados em relação ao grupo controle. Porém, não houve diferença na suculência, e sabor das carnes avaliadas.
A inclusão de gordura protegida na dieta de bovinos, milho úmido ou caroço de algodão como fontes alternativas de energia protegida, visando o aumento da porcentagem de ácidos graxos polinsaturados (favoráveis à saúde humana) alterou pouco ou nada a percepção dos consumidores sobre os atributos sensoriais testados (Shibuya., 2004).
Blumer (1963) relatou que a gordura intramuscular contribuía apenas em 7 a 11% e Koohmaraie et al. (1993) em 5% na variação da textura da carne bovina. Porém, por contribuir com a palatabilidade geral da carne, a gordura intramuscular tornou-se um importante parâmetro para a classificação de carcaças, como ocorre no sistema norte-americano.
Sem considerar os manejos pré e pós-abate, sabe-se que a o fator genético tem considerável influência na palatabilidade da carne, principalmente em relação ao sabor, pois podem influenciar no perfil lipídico dos ácidos graxos depositados na carne. Diversos trabalhos foram realizados principalmente na Austrália e EUA, e alguns no Brasil, que demonstram que a utilização de raças taurinas no cruzamento com zebuínos melhora de forma significativa a palatabilidade da carne, devido ao aumento da maciez. Este atributo, segundo Crouse et al. (1989) é muito importante para determinar a aceitabilidade pelo consumidor.
Diversos mecanismos que contribuem a fim de melhorar a palatabilidade da carne de Bos indicus têm sido estudados. Segundo Thompson, 1999, à medida que o grau de sangue Bos indicus, aumentou, houve redução do escore de palatabilidade. Porém, há uma ampla variação nos resultados de muitas pesquisas, indicando que o efeito do grau de Bos indicus na palatabilidade varia de acordo com as condições de processamento da carne, e com determinados cortes da carcaça. Dessa forma, o mecanismo que envolve a palatabilidade da carne desses animais ainda não é claro, pois há uma combinação de diversos fatores.
Esses mecanismos envolvem o sistema proteolítico, em que Bos indicus contêm elevados níveis de calpastatina (inibidora das enzimas calpaínas, que atuam na maturação da carne). Outras influências podem ser atribuídas ao tecido conjuntivo (solubilização e termoestabilização durante o cozimento) e ainda à composição dos componentes fosfolipídeos das membranas celulares. Thompson (1999) ao avaliar banco de dados do MAS (Meat Australia Standart) observou que em condições comerciais a % de Bos indicus (zebuínos) nos cruzamentos apresentavam grande efeito na palatabilidade da carne. Carcaças de animais com 75% ou mais de sangue zebuínos apresentaram baixa palatabilidade em 63% dos casos de acordo com testes com consumidores, enquanto que em animais com menos de 25% de sangue zebu apenas 11% das carcaças foram reprovadas no teste. Contudo, é importante considerar que o efeito da raça na palatabilidade não foi constante em todos os cortes.
Bidner et al. (2002) estudaram características relacionadas à palatabilidade, em novilhos Angus, Beefmaster, Brangus, Gelbray e Simbrah e não observaram diferenças na maciez do m. Longissimus maturado por 3 dias. Entretanto, as carnes de novilhos Angus obtiveram menores forças de cisalhamento e maiores escores de maciez em análise sensorial, que a carne de bovinos cruzados com Brahman, quando maturadas por 10 dias.
O sabor natural e característico da carne de uma determinada espécie se desenvolve quando o animal atinge sua maturidade, embora possa existir uma variação individual, devido ao desenvolvimento fisiológico. A idade que a maioria dos autores considera para o desenvolvimento do sabor característico é dezoito meses para bovinos. Ainda, a idade também influencia no sabor e aroma característicos da carne de cada espécie. Porém, as diferenças em função do sexo aumentam diretamente com a idade.
Outros fatores como o aparecimento de cortes escuros na carne, (DFD), quando animais são submetidos ao estresse pré-abate, em que as reservas de glicogênio são utilizadas e após o abate, ocorre queda anormal do pH, em que este permanece elevado, principalmente em bovinos inteiros, resulta em problemas de palatabilidade. Wulf et al. (2002) observaram que a maciez, através de painel sensorial, foi menor em carcaças DFD nos músculos Longissimus, Gluteus medius (alcatra) e o Semimembranosus (coxão mole) em relação aos músculos de carcaças normais. Além disso, os músculos de carcaças DFD foram mais relacionados à “off-flavors”, em relação aos demais.
Considerações finais
A relação entre palatabilidade e a aceitação do consumidor é uma avaliação extremamente importante. Ainda que as implicações no marketing sejam pequenas, certamente é significativa. Diferenças na gordura intramuscular, valores de força de cisalhamento (maciez), painel sensorial são medidas a fim de avaliar a palatabilidade da carne. Porém, ainda difíceis de se interpretar.
É importante considerar o fator genético dos animais. Porém é essencial levar em consideração fatores como as condições pré e pós-abate. Controlar esses fatores é responsabilidade de toda a cadeia. Assim, há uma maior otimização e aumento da satisfação dos consumidores.
Referências
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1Angélica Simone Cravo Pereira é pós-graduanda na FZEA/USP
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Muito bom.
Precisamos de mais informação nesses temas para direcionar a produção pecuária para o que o mercado deseja.