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A Revolução Vermelha

A pecuária de corte brasileira vem apresentando uma grande evolução nas últimas décadas, especialmente em termos de produtividade. Para elucidar esta evolução podemos citar o significativo aumento das taxas de desmame e desfrute de nosso rebanho, com redução constante da idade de abate e do início da fase reprodutiva de fêmeas. Isso vem acontecendo a partir da implementação de adequadas práticas de manejo sanitário e nutricional, além da intensificação dos programas de melhoramento genético, seja em raças puras ou pelo uso da heterose, através do cruzamento industrial. É importante mencionar que estas mudanças positivas aconteceram em um curto espaço de tempo, sendo talvez uma das mais rápidas mudanças de cenário produtivo da pecuária de corte que se tem notícia no mundo. Podemos dizer que, paralelamente a tão comentada revolução verde da agricultura, estamos vivendo uma verdadeira revolução vermelha, com aumentos de produtividade e qualidade da carne vermelha produzida no país.

Em meio a todo este sucesso alcançado, temos visto recentemente uma profusão de artigos com opiniões a respeito das vantagens e desvantagens do cruzamento industrial, discutindo a sua participação no cenário pecuário brasileiro e as perspectivas de utilização no futuro. Neste debate são freqüentes os argumentos sentimentais e ideológicos, algumas vezes apaixonados, o que desvia a discussão do tema principal, ou seja, o modelo adequado de produção de carne no país. Como premissa, é bom lembrar que o grande objetivo de nossa pecuária de corte deve ser o atendimento e a expansão da demanda de nossos consumidores internos e externos, com a oferta de uma carne saudável, segura e de elevado padrão de qualidade. Portanto, faz-se necessária uma avaliação mais ampla, contextual, avaliando a história da evolução genética de nosso rebanho, para que possamos então chegar a conclusões isentas de interesses comerciais e ideológicos.

Avaliando a evolução do rebanho brasileiro de gado de corte, pelo menos até a década de oitenta, podemos afirmar que o melhoramento aconteceu de forma muito lenta. Em termos de seleção, os parâmetros estavam baseados em aspectos visuais, em muitos casos distante das características produtivas e econômicas desejáveis pelos produtores comerciais. Até então, o uso da inseminação artificial tinha uma representação muito pequena e os programas de melhoramento estavam restritos a alguns criatórios de raça pura, que ofertavam touros para monta natural, com as dificuldades conhecidas para a distribuição geográfica destes animais. Com os índices de desmame e desfrute ainda baixos, a oferta de fêmeas era muito pequena. Essa limitada disponibilidade de material genético superior aliado as dificuldades de logística em um país continental como o nosso, dificultavam a evolução genética do rebanho.

O cenário começou a mudar a partir do início da década de oitenta, quando novas tecnologias e práticas de manejo passaram a ser disseminadas. Além da intensificação do uso da inseminação, o aumento da produtividade dos rebanhos proporcionou a oferta de um maior volume de fêmeas e touros, oportunizando o comércio e a distribuição de genes superiores em diversas regiões. Até então, o rebanho brasileiro era caracterizado por animais mestiços azebuados, com exceção do sul do país, onde as raças européias predominavam. A disponibilidade crescente de genética superior impulsionou o processo de melhoramento do rebanho e, aliado ao uso de novas tecnologias, fortaleceu o processo de intensificação do negócio pecuário no país. Durante esta década, começam as primeiras experiências de cruzamento industrial, tanto pelo uso da inseminação como pelo maior intercâmbio de animais entre o sul e o centro do país.

No começo da década de noventa, com a desregulamentação e abertura econômica promovida pelo Governo, o acesso a novas tecnologias e material genético importado foi ampliado. A partir de então a inseminação artificial, transferência de embriões e a fertilização in vitro apresentaram índices crescentes de utilização, facilitando a disseminação de genética superior em todas as regiões do país. Os programas de cruzamento industrial foram crescendo exponencialmente, com uma grande profusão de raças e modelos de cruzamento. A heterose foi reconhecida como uma importante ferramenta de melhoria dos índices produtivos e, talvez precipitadamente, “propagandeada” como a solução ideal para todos os sistemas de produção de norte a sul. Em função disso, ao longo dos anos, houve um significativo aumento de animais cruzados, seja pela introdução do nelore nos rebanhos de raças européias no sul como pela utilização de raças européias sobre os rebanhos anelorados do centro e norte do país. Um grande “misturamento”, em muitos casos sem o devido planejamento e adequação aos ambientes onde estavam sendo implantados.

Paralelamente a entrada maciça de genética européia, talvez pelo estímulo da concorrência e pela nova demanda criada junto aos criadores comerciais, os melhoradores da raça nelore passaram a reavaliar seus critérios de seleção. Tivemos uma rápida transição de critérios de “beleza racial” para valorização de aspectos com real importância econômica, como ganho de peso, fertilidade, rendimento de carcaça e qualidade de carne. No mesmo período, foram implementados vários programas de melhoramento baseados em provas de progênie, onde são valorizados animais que transmitem características superiores de performance a seus descendentes. A profusão destes programas foi tão significativa que chegamos ao final da década com mais de cinco sumários na raça nelore, uma situação única na pecuária mundial. Este movimento fortaleceu e disseminou o conceito da seleção por performance em condições de campo, oferecendo uma alternativa segura para os produtores comerciais. Para breve, é esperado que ocorra a consolidação destes programas, uma iniciativa da SBMA – Sociedade Brasileira de Melhoramento Animal – e dos vários organizadores destes sumários, devendo formar o maior programa de melhoramento de raça de corte no mundo.

É neste ambiente de grandes mudanças e evolução que a discussão sobre os rumos do cruzamento industrial se insere. Ao mesmo tempo que tivemos o rápido crescimento dos programas de cruzamento de várias raças européias sobre o rebanho azebuado brasileiro, acompanhamos uma extraordinária mudança e melhoria da raça nelore, buscando atender as demandas do produtor de carne em ambiente tropical. As vantagens do uso de heterose são reconhecidas e comprovadas, não apenas no Brasil como em várias regiões do mundo, mas estes programas precisam ser planejados e acompanhados, tendo em conta a maior demanda de insumos, manejo e gestão do sistema de produção. A fórmula não vale para qualquer empreendimento pecuário, portanto, não é uma receita de bolo que possa ser disseminada indiscriminadamente, especialmente em um país com tamanha complexidade de ambientes e modelos de gestão, que em parte têm até características extensivistas. Nestes casos, logicamente, não funciona. E não funcionou, o que motivou um movimento negativo em relação a estes programas, chegando ao ponto de termos desvalorização de animais cruzados (ou misturados) nas negociações de preço com frigoríficos. Em contrapartida, a safra de animais nelore oriundos da nova seleção implementada na raça começa a aparecer e, assim, competir em alguns quesitos que até então só eram oferecidos pelos animais cruzados.

Os dados estatísticos referentes ao uso de sêmen no país fornecidos pela ASBIA – Associação Brasileira de Inseminação Artificial – servem de termômetro e demonstram o movimento ocorrido nos últimos anos. Após um estrondoso crescimento do cruzamento industrial vemos uma recuperação consistente do uso das raças zebuínas. Este movimento pode ser uma onda, afinal de contas a base de fêmeas cruzadas precisaria retrocruzar com o zebu, mas, em muitos casos, temos visto um retorno definitivo ao sistema de produção de zebu sobre zebu. Seria esperado, afinal de contas a seleção implementada no nelore vem atender as demandas exigidas pelo produtor comercial, que até agora só era oferecida pela genética de origem européia. Com mais precocidade, fertilidade e qualidade de carcaça, o nelore passa a ser uma opção interessante e, em certos casos, em função da extensividade e falta de infra-estrutura no empreendimento, a única opção viável. Paralelo a isso, o marketing das associações de raça ou de grupos de criadores parece não ajudar na sustentação de crescimento dos programas de cruzamento. As raças européias continuam disseminando a idéia de que o cruzamento é a receita ideal para qualquer ambiente e modelo de produção. Buscam valorizar suas características positivas – e cada raça tem as suas – como sendo únicas e diferenciais em relação às demais raças européias “concorrentes”, tentando cativar o potencial interessado em utilizar o cruzamento industrial. Ao invés disso, deveriam canalizar esforços no sentido de demonstrar as vantagens do cruzamento em ambientes propícios, incentivando a melhoria dos sistema de produção em áreas de pecuária extensiva, para então introduzir a técnica. Por outro lado, as raças zebuínas, especialmente a nelore, focaram suas ações de marketing naquilo que realmente interessa, a demonstração de resultados e o investimento na integração e verticalização do sistema produtivo, partindo da genética e chegando ao consumidor, elucidando a padronização do produto final.

O que podemos esperar do futuro? Certamente uma concorrência cada vez mais acirrada pelo consumidor de genética – o produtor comercial – que precisa produzir mais carne de qualidade, com eficiência e produtividade, garantindo uma demanda segura pelo seu produto. O cruzamento industrial, certamente, terá uma fatia importante neste mercado, provavelmente mais concentrado em um menor número de raças. A fase de testes que vivemos na última década já demonstrou que muitas delas não agregam nenhum diferencial e, pela pequena base de seleção, estão fadadas a desaparecer ou ficar restritas a micro-regiões. O tamanho deste mercado vai depender muito do trabalho de divulgação e transferência de tecnologia para os pecuaristas, pois atualmente, parece que o número de produtores preparados para tirar proveito do cruzamento industrial está se esgotando. Na outra ponta, do lado do consumidor, as vantagens do cruzamento não foram aproveitadas, pois nosso consumidor interno ainda não valoriza uma carne de maior maciez, suculência e sabor, as apregoadas características da carne de raças européias. Infelizmente, os poucos programas de carne de qualidade, que poderiam viabilizar e fortalecer os programas de cruzamento, são lançados e não perduram, muitas vezes são anunciados apenas no papel, nas páginas de revistas. Foram vários exemplos nos últimos anos. Neste ambiente, o consistente trabalho de seleção e divulgação da raça nelore deverá continuar dominando o cenário da pecuária brasileira, pois atende a demanda atual e vem trilhando um caminho correto de seleção, antevendo as necessidades de nosso mercado interno e do extraordinário potencial de crescimento do mercado mundial de carnes, ao qual estamos condenados a liderar.

A revolução vermelha está acontecendo no Brasil, isso é fato. O uso de tecnologias e a melhoria das condições de infra-estrutura e gestão das propriedades asseguram este movimento, seja com o uso de raças puras ou cruzadas. O espaço de cada sistema de produção vai depender das condições impostas pelo mercado e da maneira como os participantes influenciarem estas decisões. No final das contas, o importante é valorizar o produto carne, informando o consumidor – seja interno ou externo – sobre as características e garantias de qualidade que nossa pecuária pode oferecer, garantindo resultados para todos os elos da cadeia da carne, e fortalecendo ainda mais o agronegócio em nosso país.

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