Por Francisco Vila 1
Após digerido o apagão temporário do surto de aftosa e contabilizando os prejuízos (que devem ser menores do que inicialmente imaginado) podemos ver o mundo novamente com um olhar mais objetivo. Desta forma, convém constatar de que a agropecuária brasileira continua na trajetória para a liderança mundial.
Pequenos percalços podem desacelerar ou desviar esta linha ascendente, mas dificilmente vão inviabilizar o percurso. Já tivemos problemas sanitários no passado e certamente teremos outros no futuro. Isto também se dá na América do Norte, na União Européia ou no Japão, que está novamente batalhando com o problema da vaca louca.
Assim, devemos estudar sem ´Schadenfreude´ (uma palavra que só existe em alemão e que descreve o prazer que alguém possa ter com a desgraça do outro, porém com atenção, o que ocorre em outros mercados e como aqueles países gerenciam as suas crises. Enquanto nós olhávamos para o umbigo de nossa aftosa rebentou um escândalo muito mais nocivo no suposto “paraíso do consumidor”, como a Alemanha costuma ser chamada. O que aconteceu?
Em fins de outubro, funcionários de uma fábrica de processamento de carne denunciaram práticas ilegais de ´reclassificação´ de produtos. Esta empresa, com filiais em diversos estados, especializou-se na compra de lotes de carne que estão se aproximando da data limite de sua validade.
Sem especificar a finalidade (e sem que as cadeias de varejo que embarcaram neste esquema quisessem saber maiores detalhes!) a empresa recolheu grandes quantidades desta carne ainda legal para ou (1) recauchutar o produto e destinar para outro tipo de uso ou (2) para simplesmente substituir os códigos de barra e re-canalizar a carne rejuvenescida para outros distribuidores dentro e fora da Alemanha. Nada que não possa também acontecer abaixo do Equador, mas o que interessa é que o fato se deu na Alemanha.
Para melhor compreender a seriedade do assunto convém lembrar que a aftosa é uma “doença econômica” que, antes de tudo, faz mal à rentabilidade do produtor, mas que não afeta a saúde humana, enquanto a manipulação de carne processada influencia direta e imediatamente o bem estar das pessoas.
Quais, então, as lições que podemos tirar da comparação do nosso problema com a situação recente na Alemanha?
Primeiro, como a aftosa teve o seu lado útil para a conscientização do nosso setor bovino (vide artigo de 14/10/2005) o “escândalo da carne”, como este incidente é rotulado na Alemanha, está servindo para a revisão de todo o arranjo de segurança em torno da cadeia alimentar no contexto comunitário, nacional, estadual e municipal do mercado europeu.
Ou seja, enquanto nós nos irritamos com comentários na imprensa inglesa ou com manifestações de pecuaristas na Irlanda e na Escócia contra a importação de carnes brasileiras (que não obstante disso cresceram continuamente até o momento do “surto da aftosa”) gangues criminais européias provocam um verdadeiro “surto de insegurança” entre os consumidores daquele continente. Resumindo, ninguém está imune contra problemas localizados que provocam um desequilíbrio do setor como um todo.
O que podemos aprender com este exemplo é que independentemente da legislação, da prática de multas ou da vigilância de associações de consumidores do tipo “food watch” sempre existem e existirão imperfeições na periferia legal dos sistemas de controle.
Ainda mais, quando foi noticiado o escândalo, imediatamente foram detectados outros 50 (!) “focos” de ilegalidade, entre empresas de transformação e armazenamento, naquele país tão perfeitamente (“quase!!!”) cuidado pelas autoridades públicas e tão exemplarmente controlado pela sociedade atenta. (Fonte: Revista Der Spiegel, 26/11/2005)
A segunda lição diz respeito ao risco coletivo sobre-proporcional de práticas de descuido ou mesmo criminosas que costumam ocorrer em qualquer elo da cadeia alimentar.
O princípio de solidariedade, no sentido inverso, de “todos pagam pelos erros de poucos” funciona muito mais no setor alimentar, onde o “fator confiança” é uma das principais ferramentas de marketing. Isto significa que a vigilância coletiva que identifica possíveis infratores deveria tornar-se uma cultura intrínseca do setor de produção de carne.
Conforme o número de participantes nos diversos elos e conforme a extensão da cadeia produtiva esta vigilância coletiva torna-se uma questão crucial de competitividade.
Com centenas de milhares de produtores de gado, com meio milhar de frigoríficos e abatedores e com outros milhares de empresas de transportes estamos perante uma estrutura da cadeia bovina excessivamente complexa. Já as cadeias de aves e suínos encontram-se num cenário mais ordenado e, por conseqüência, mais facilmente controlável.
Terceiro, nem o estado, nem a sociedade nem os sistemas de auto-controle dos elos produtivos conseguem garantir a segurança alimentar se não houver um esforço contínuo no aperfeiçoamento dos mecanismos de rastreamento e de informação e comunicação contínua entre todas as partes envolvidas. Já que sempre existe um pequeno grupo de infratores, seja qual for o país, a solução para melhorar a segurança alimentar passa por duas estratégias que precisam ser implementadas em paralelo.
O apelo ao bom senso e à responsabilidade dos membros dos diversos elos da cadeia produtiva, bem com a criação de mecanismos eficientes de comunicação voluntária criará uma cultura de co-responsabilidade de todos, desde o fornecedor de insumos até o consumidor que reclamará com o supermercado quando observar irregularidades no manuseio de produtos. A esta atitude de vigilância coletiva podemos chamar de ´auto-controle de segurança´.
Outra fonte de maior segurança para os produtos alimentares é o aumento no rigor do ´controle legal´ produzido por um sistema completo e universal de rastreamento de qualidade e de origem dos produtos. O SISBOV, mesmo com todos seus problemas de nascença, a definição de normas de boas práticas do tipo SAPI, a obrigatoriedade de classificação de carcaça (com premiação dos produtores mais eficientes) e, finalmente, a divulgação de marcas e selos de qualidade certamente contribuirão para padronizar cada vez mais a produção, o processamento e o transporte da carne bovina, seja com destino a compradores internacionais, seja para o consumidor brasileiro.
Todas estas iniciativas estão em concordância com a norma comunitária da Unidade Européia 178/2002. Sua cada vez maior implementação não só consolidará a posição brasileira como líder de exportação de carne bovina, mas sim elevará, um pouco a cada ano, o preço unitário de venda de nosso produto de alta qualidade (natural), mas de ainda pouca grife em termos de comercialização.
A qualidade da carne tem a ver com a sua segurança e este critério depende exclusivamente da percepção do consumidor. No mercado globalizado o comércio com produtos rastreados e apresentados com selos de qualidade é condição indispensável para a criação de confiança do consumidor.
Assim, em vez de reclamar sobre o infortúnio da recente calamidade deveríamos canalizar nossas energias para o aperfeiçoamento da nossa cadeia de produção como um todo.
O fato de que mesmo os países supostamente melhor estruturados continuam expostos a descuidos e ações criminosos não deve gerar a tal de ´Schadenfreude´, mas sim lembrar que o caminho para a competitividade internacional ainda é bastante longo. Melhor começar, já hoje, com a parte que diz respeito ao nosso universo imediato de responsabilidade. E o ´escândalo do cartel´ que certamente merece ser o tema da semana não deve desviar o nosso foco daquilo que falta a fazer para robustecer a nossa competitividade internacional.
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1 Francisco Vila é economista e consultor