Por Dave Infante, para a Thrillist.
É difícil imaginar Babe Ruth fazendo a viagem do Yankee Stadium até o trecho da 36th St, para comer uma costeleta de carneiro no Keens. Talvez seja por causa do McDonald’s na esquina ou das lojas vistosas cheias de blusas com strass, ou ainda, das legiões de turistas com paus de selfie. Nos dias de hoje, essa cena é decididamente impensável.
Mas antes disso tudo surgir, o Bambino apareceu. Assim como Albert Einstein, J. P. Morgan, e Teddy Roosevelt, que ainda tem um salão que leva seu nome – o Bull Moose Room. Eles vinham fumar cachimbos e comer costeletas de carneiro. Isso é simplesmente o que os nova-iorquinos importantes faziam no Keens.
Nova York era a cidade do steak muito antes de Babe se unir ao famoso Clube do Cachimbo do Keen. O Upper West Side já era cheio de leilões de gado nos anos de 1800s. A famosa sociedade política Tammany Hall comprou seus votos na indústria de carne bovina até o século XX.
Cachimbos de personalidades históricas do Keens
E Nova York tem sido uma cidade de steakhouses desde sempre. A steakhouse de Nova York é uma das instituições culturais mais veneráveis da cidade. Ela sobreviveu a multidões, aos Dodgers, e até mesmo à chegada da Linha da Segunda Avenida do metrô, com séculos de atraso. Trata-se de um monumento “carnudo” de auto-importância e excesso de abundância que somente poderia existir no centro do universo. “As steakhouses não são como outros restaurantes”, disse Nick Solares, da Eater, em 2014, “e as steakhouses de Nova York não são como as outras steakhouses”.
Então, há quanto tempo você não come em uma? Um mês? Um ano? Mais tempo? Talvez você nunca tenha estado nesses velhos locais. Talvez você nunca tenha desejado estar. Afinal de contas, o cabernet é caro, os tapetes são surrados, e o fato de os garçons agirem de forma tradicionalmente rude não os torna realmente menos rudes. Os salões de jantar com a iluminação escura são horríveis para o Instagram. A carne raramente é de animais criados a pasto ou obtidos localmente – e, além disso, você não deveria estar comendo menos carne atualmente?
Como disse o crítico de restaurantes do The New York Times, Pete Wells, em um post em seu blog em 2013, as steakhouses “podem parecer fora de sintonia com os apetites dos nova-iorquinos modernos, que fazem fila para comer flores e brotos arranjados em desordem artística sobre um pedaço de proteína do tamanho de um botão de casaco”.
À medida que a segunda década desse século chega ao final, sua palavras soam mais verdadeiras do que nunca. As steakhouses de Nova York vivem um paradoxo espinhoso. São muito velhas, nobres e respeitáveis para morrer, mas são muito esotéricas, fora de tendência e regressivas para viver?
O início dos bifes
Antes da chegada das steakhouses em Nova York, havia o jantar de bifes bovinos (beefsteak dinner). “Uma forma de glutonaria tão estilizada e regional como a fritura de peixes do rio, o clambake de rocha quente ou o churrasco do Texas”, escreveu o jornalista Jospeh Mitchell em uma história de 1939 para o The New Yorker sobre o assunto. Os beefsteaks eram basicamente enormes banquetes privados, com fileira após fileira de mesas alinhadas com centenas de homens comendo milhares de quilos de bife em uma única sessão.
Este formato festivo – uma “bastardização” das tradições teutônica e anglo-saxônica trazidas sobre o Atlântico pelos imigrantes – tornou-se um ritual glutão, masculino, essencialmente de Nova York em meados do século XIX.
Para consolidar e manter seu domínio sobre o governo da cidade, clubes políticos e sociais ofereciam bifes regularmente, enchendo salões com milhares de homens em idade de votar, quantidades enormes de carne e cerveja, e não muito mais que isso. “Facas, garfos, guardanapos e toalhas nunca foram permitidos”, escreveu Mitchell. Os móveis eram esparsos.
“Quem quer toalhas de mesa brancas? Isso é coisa de mulher”, disse Betty Fussell, historiadora de alimentos e autora do Raising Steaks: The Life e Times of American Beef. “O objetivo era comer muito”, explica, e celebrar a fraternidade da masculinidade operária. Quando os homens foram às urnas, eles foram preparados para votar em qualquer candidato que tivesse oferecido o bife mais recente e melhor.
Como se viu, o anfitrião do beefsteak mais prolífico de Nova York, Tammany Hall, introduziu a neutralidade de gênero à tradição na década de 1920. Nessa época, o consumo de bebidas alcoólicas tornou-se cotidiano e o sufrágio feminino tornara as mulheres recém-atrativas para os encarregados da pesquisa do Tammany. Um chef anônimo comentou a Mitchell em 1939 que “as mulheres não sabiam o que era um beefsteak até que obtiveram o direito de votar”.
Esta mudança marcou o início do fim do beefsteak. “À medida que as mulheres se juntavam aos jantares […], todo teor glutão deles começou a se acalmar”, explica Debra Schmidt Bach, curadora da New York Historical Society. Aperitivos de camarão encontraram seu caminho no menu, juntamente com coquetéis para pessoas que não gostam de cerveja. Surgiu a prataria, bem como, os pratos. “A maioria dos beefsteaks degenerou em banquetes polidos em que sanduíches de carne abertos de bife grelhado passou a ser o prato principal”, lamentou Mitchell.
A tradição do beefsteak de New York estava crescendo, e a steakhouse de New York City seria sua próxima forma.
Mudança para a steakhouse moderna
Danny Kissane trabalhou na Smith & Wollensky por 35 anos, começando pouco depois de Alan Stillman abri-lo em 1977. Entre seu sotaque do Bronx, risadinha áspera e simpatia, ele é a visão de todos os diretores de elenco para o autêntico “nova-iorquino sem tempo”. Quando ele fala, é fácil imaginar Babe Ruth vindo à Smith & Wollensky para comer um bife maturado a seco pelo avô de Kissane. De pé na majestosa sala de jantar, dá a impressão que a Smith & Wollensky existe desde os dias do beefsteak.
O Delmonico’s, inaugurado em William St em 1827, na verdade existe; ou quase isso. Embora tenha gerado uma série de steakhouses na cidade de Nova York, popularizado o “corte do Delmonico’s”, e atualmente opere como uma steakhouse em William St, o Delmonico’s original começou como o primeiro restaurante fino em estilo francês da América. A carne era largamente ausente durante suas primeiras décadas.
Paul Freedman, professor de história de Yale e autor de Dez restaurantes que mudaram a América, disse que os primeiros menus de Delmonico’s apresentavam “patos selvagens […], tartarugas e pratos franceses de um estilo elaborado e elegante”.
Mas como os jantares de beefsteak desapareceram na primeira metade do século XX, e a proibição acabou com a renda de vinhos do Delmonico’s, a cidade entrou em uma idade dourada das steakhouses e o primeiro restaurante francês fino encontrou sua segunda vida como uma steakhouse. Como o Delmonico’s, a steakhouse original de NYC que originalmente não era, cada estabelecimento de longa data contribuiu com seu próprio paradoxo definidor ao arquétipo que Ruth Reichl, escrevendo para o New York Times em 1994, codificou como “um lugar rústico e confortável onde as pessoas podiam se deleitar com tudo o que gostavam”.
O Peter Luger (1877) desenvolveu o que Fussell chama de “a contradição viva no Brooklyn”, casando o steak de alto nível com maneiras de obtenção de baixo nível, “aquela combinação maravilhosa do mais chique e mais proletariado”.
O Keens (1885) aperfeiçoou o ambiente do clube dos cavalheiros que inspirou muitas imitações, mas começou realmente a admitir mulheres 15 anos antes de elas ganharem direito ao voto.
O Palm (1926) pendurou caricaturas de seus clientes famosos em suas paredes, o que atraiu hordas de clientes não famosos. O Gallaghers (1933) colocou o seu refrigerador de dry-aging na frente, um toque brilhante dos shows da Broadway (é no distrito dos teatros, afinal) o que, no entanto, torna mais difícil regular a carne que está dentro dele.
O Sparks (1966) era um aglomerado, e por um tempo, legitimamente perigoso – os chefes do crime de Gambino foram excutados em suas escadas em 1985, supostamente por ordens de John Gotti – de forma que, naturalmente, era uma emoção para as pessoas normais comerem lá.
O paradoxo do Smith & Wollensky é o anacronismo. Apesar de sua decoração pesada e antiga, de meados dos anos 50, Danny Kissane é mais velho do que o próprio restaurante, tornando-o um mero adolescente em comparação com as steakhouses mais antigas Nova York. Isto é design. “Queremos que você pense que ele está lá há 150 anos”, diz Michael Stillman, presidente e fundador da Quality Group, a matriz do estabelecimento.
Então, por que as steakhouses de NY tendem a se agrupar na linha do paradoxo? “A América é contraditória sobre tudo”, disse Fussell, e como uma de suas tradições mais antigas, as steakhouses de Nova York testemunham isso. Quantos clientes de steakhouses, ela pondera, “sabem de onde vem seu bife ou se importam com isso? Isso faz parte. Eles não querem saber, eles só querem os direitos de se gabar: ‘Fui ao Peter Luger na noite passada’”.
Mark Schatzker, produtor e autor de Steak: One Man’s Search for the World’s Tastiest Piece of Beef, concorda – o steak de uma steakhouse é muitas vezes secundário. “O melhor bife que você encontrará na cidade não será em uma steakhouse. A maioria das steakhouses de Nova York compra o que eu chamaria de ‘carne bovina commodity’, dos principais frigoríficos”, o que significa que os animais são terminados com milho, e não a pasto. A carne bovina commodity não é necessariamente “ruim”; na verdade, é o que permite que você entre na Smith & Wollensky, peça um bife de 1 quilo que Danny Kissane amavelmente maturou a seco por 30 dias e saia de lá gastando menos de US$ 60. É toda a conveniência do consumismo americano, na forma de carne.
Porém, nos últimos 30 anos, os gostos mudaram. De acordo com o Departamento de Agricultura dos EUA, os americanos estão comendo menos carne vermelha do que nunca. Quando comem, estão prestando atenção à sua proveniência. “Local” e “grass-fed” estão em alta; “de confinamento e anônimo” estão em baixa. Isso coloca as steakhouses de Nova York em uma situação complicada, diz Schatzker. “Eles têm que servir tanto bife [para fazer lucro] e não há uma fonte suficientemente grande do que eu consideraria uma carne realmente boa para eles servirem. E se houvesse, seria muito, muito caro, e isso meio que acaba com seu modelo”.
Em Nova York, a mudança cultural com um afastamento das steakhouses é ainda mais pungente. Seu feed do Instagram, por exemplo, provavelmente não está cheio de fotos de porterhouse. E para os consumidores mais críticos, a falsa equivalência de idade e qualidade piora mais ainda isso. “Peter Luger? Você pode tê-lo”, escreveu Anthony Bourdain em um ensaio de 2010 para The Guardian. “Só porque é uma ‘instituição de Nova York’ não significa que você queira comer lá”.
Assim, como ficaram as steakhouses de Nova York e o que se tornaram?
Período de inovação
“Lembro-me de ir ao Keens quando era mais nova, com meu pai”, lembra Angie Mar, chef executiva e proprietária da icônica Beatrice Inn de West Village, que ganhou a aclamação recém-descoberta de meca da carne. “Adoro o Keens. Eu amo o Smith & Wollensky. São instituições de Nova York. Eles têm que sobreviver”.
Não é uma coisa estranha de se ouvir, mas à primeira vista, pode ser estranho ouvir dela. Mar, considerada a Chef do Ano de 2016 em Nova York pela Thrillist, é especialista em carne inovadora que, francamente, poderia ser qualificada como um sacrilégio em steakhouses mais dogmáticas de Nova York.
Seus pratos “brincam com influências masculinas e femininas”: grandes pedaços de carne servidos com manteiga de baunilha defumada ou crème brûlée de medula óssea. Dificilmente a “combinação totalmente machista de violência e nostalgia”, que é como Fussell caracteriza o apelo cultural das steakhouses de Nova York.
Então, novamente, o mesmo ocorre no Quality Eats. Inaugurado em 2015 pelo Quality Group, a steakhouse de West Village serve muita carne bovina fina, mas isso parece quase antiético para seu pedigree de steakhouse nova-iorquina. Isso é intencional, diz Michael Stillman.
“Tentamos manter algumas dessas características das steakhouses clássicas, mas a tornamos um pouco menor, mais acessível e mais adequada ao que chamo de geração Whole Foods”. Isso significa que seus excelentes bifes (a maioria de cortes não tradicionais) não são dry-aged e muito menos, caros: um bife de US$ 26 é top de linha aqui, enquanto na maioria das steakhouses tradicionais, a carne de frango assada custa mais do que isso. Toda a parte de decoração do ambiente e dos utensílios também é bastante diferente do tradicional Smith & Wollensky. Em uma revisão do Quality Eats para o New Yorker no ano passado, Shauna Lyoon disse: “Glutões reformados, uni-vos”.
Mar salientou a simbiose entre o foco de carne contemporânea da cidade e sua fundação carnívora. “Só porque o meu restaurante não é aquela clássica steakhouse de Nova York, e nós ultrapassamos os limites, não significa que eu acho que todo mundo deva fazer o mesmo”, disse ela.
Em outras palavras, ela pode pendurar uma pintura de um gummy-bear de WhIsBe sobre a lareira porque o Keens coloca seus cachimbos. O fato do Peter Luger não servir – nunca serviria – uma carne maturada a seco embebida em whisky por 120 dias é precisamente o que permite que o seu restaurante faça isso.
O que resta
Angie Mar pode ficar tranquila, no entanto. Atualmente, o Keens está indo bem. “Ao longo dos anos, ganhamos impulso”, disse o chefe executivo Bill Rodgers, refletindo sobre seus 12,5 anos no comando do ícone de Herald Square.
No momento, os principais ícones do setor de steakhouses de Nova York estão se mantendo bem. Houve saídas ao longo do caminho, certamente – o Ben Benson’s fechou em 2012 e o restaurante original do The Palm, na Segunda Avenida, fechou em 2015 – mas também houve ressurreições, como o Gallaghers (relançado em 2014) ou o próprio Keens , que, lembra Rodgers, permaneceu meio apagado por um tempo nos anos 70 antes de ser remodelado por seus proprietários atuais.
E, além do surgimento de conceitos carnívoros, ideologicamente delineados como Beatrice Inn e Quality Eats, a cidade ainda vê novas aberturas de steakhouses regularmente. American Cut, Bowery Meat Company, Wolfgang e Benjamin entraram na briga nos últimos doze anos, apenas para citar alguns destaques.
Então, se não vão morrer, as steakhouses de Nova York viverão como uma instituição cultural? Como? “Será que se tornaram como um daqueles delis, que são apenas um tipo de experiência de Nova York?” perguntou Schatzker. Talvez sim. As delis judaicas são indiscutivelmente ainda mais apreciadas nesta cidade do que as steakhouses, e mesmo quando nós lamentamos o fim da Carnegie Deli, é difícil pensar no néon da Katz como algo menos que permanente. Talvez as steakhouses da cidade de Nova York sejam da mesma maneira.
Veja abaixo um vídeo que mostra a trajetória das steakhouses de Nova York (em inglês):
Por Dave Infante, para a Thrillist.