Por Angélica Simone Cravo Pereira1
Atualmente, várias estratégias têm sido utilizadas com a finalidade de aumentar proporção de músculo e a qualidade da carne.
Algumas características, como a deposição de gordura na carcaça depende do potencial e precocidade da raça, ou do cruzamento utilizado, além da idade, peso ao abate, normalmente fixado de acordo com a exigência, ou demanda de determinados mercados.
A raça, assim como o peso ao abate, influencia nos parâmetros de qualidade, incluindo a estrutura e a fisiologia muscular.
Por outro lado, a inconsistência da carne tem sido associada especialmente com a falta de qualidade no setor da indústria. Muitas pesquisas têm relacionado essa inconsistência com a qualidade gustativa. Porém, esse termo depende da combinação de diversos fatores, tais como, suculência, sabor e maciez. Em relação a alguns atributos de qualidade, a maciez é a característica mais importante para os consumidores.
Para a determinação da maciez são realizadas análises instrumentais (Warner Bratzler Shear Force, por exemplo) e sensoriais (painel de pessoas treinadas). Entretanto, há dificuldade em avaliar essa característica, pois está diretamente relacionada com uma série de fatores pré e pós-abate. Além disso, a textura depende ainda do estado e interação entre diferentes componentes musculares, em especial, tecido conjuntivo e miofibrilas (Campo et al., 1999). No entanto, esses mecanismos podem ser alterados após o abate dos animais.
O amaciamento da carne, que ocorre pós-morte, é resultado de uma série de processos, que envolve um sistema enzimático cuja finalidade é degradar a estrutura miofibrilar (Roncáles et al., 1995). Da mesma forma, o tecido conjuntivo também consiste em um elemento determinante no amaciamento da carne, porém é parcialmente degradado na maturação da carne (Campo et al., 2000).
Segundo Campo et al. (1999) esse conjunto de fatores deve ser considerado de extrema importância na avaliação da qualidade final do produto, levando a uma diferenciação do produto final, agregando maior valor a ele, além de satisfazer o consumidor final. Além disso, a produção e o manejo, incluindo a raça dos animais, idade, sexo, manejo pré-abate e pós-abate, dieta podem determinar a qualidade da carne. Ainda, a temperatura da câmara e as condições de armazenagem dos produtos influenciam de maneira direta neste processo, além da maturação, que é importante acompanhar durante o período pós-morte.
A utilização da maturação pode reduzir a força de cisalhamento, favorecendo, portanto, a maciez da carne, resultado da proteólise miofibrilar, mediada pelas proteases cálcio dependentes.
Além da maturação, a raça do animal tem um importante efeito na maciez da carne percebida sensorialmente. Porém, ainda poucos estudos têm avaliado a influência da raça na palatabilidade da carne.
A variação genética das características quantitativas e qualitativas da carne bovina difere entre raças, cruzamentos e linhagens dentro da mesma raça. Existem fatores intrínsecos que podem alterar a qualidade do produto final, como: idade, sexo e peso ao abate. Além disso, animais mais pesados tendem a apresentar cortes menos macios, mas esses estudos foram, em grande parte, realizados em sistemas extensivos de produção (Sañudo et al., 2004).
Diversas raças têm um amplo espectro de variedade de tipos de fibras musculares (Gil et al., 2001). Entretanto, nem sempre são refletidos em diferenças observadas em análises objetivas (Warner Bratzler Shear Force). As diferenças na maciez da carne entre as raças podem ser devido a diferenças genéticas na atividade enzimática do músculo e na composição bioquímica, principalmente em relação à proporção de gordura, ou tipos de fibras presentes no músculo (Kemp & Allen, 1997; citado por Sañudo et al., 2004).
Sañudo et al. (2004) mensuraram algumas características físico-químicas do músculo Longissimus de 103 bovinos e observaram diferenças na maciez para as características de peso vivo, raça e efeitos de maturação. Contudo, as diferenças entre os tipos de raça tenderam a diminuir ou desaparecer, à medida que se prolongou o período de maturação da carne. Essas diferenças entre raças foram mais evidentes em períodos mais curtos de maturação, mas desapareceram aos 21 dias, implicando que cortes submetidos a períodos mais longos de maturação tendem a homogeneizar o produto, principalmente em animais mais pesados, que de certa forma, são mais homogêneos, independente do tipo de raça utilizado. Ainda, animais com maior peso ao abate e cortes maturados por períodos mais extensos resultaram em produtos mais homogêneos, independente da raça.
Por outro lado, Shackelford et al. (1991) relataram, que a raça tem um efeito significante no colágeno total e insolúvel, podendo ser mais importante do que a característica de peso, ou sistema de produção utilizado.
As diferenças na maciez da carne fresca de Bos indicus e Bos taurus e de seus cruzamentos são devido a vários fatores, tais como, grau de acabamento, marmorização, quantidade e tipo de tecido conjuntivo presente. No entanto, as principais diferenças relacionadas à maciez final da carne, estão ligadas à degradação enzimática das proteínas miofibrilares.
De acordo com Miller, (2001) os tipos biológicos de bovinos Bos taurus resultado do cruzamento com raças zebuínas, no abate influenciam na maciez, principalmente em relação às diferenças na velocidade de crescimento, no peso de abate e na relação carne/gordura. Ainda, animais zebuínos tendem a apresentar maior altura, carcaças mais pesadas a um nível de engorda constante e requerem um período mais extenso de fornecimento de energia a fim de alcançar um determinado grau de gordura final quando comparado aos animais cruzados com raças britânicas. Da mesma forma, o nível de gordura da carcaça e seu peso podem influenciar no encurtamento causado pelo frio (cold shortening). Porém, outras variáveis, como nível de gordura intramuscular, tecido conjuntivo, período de maturação, atividade das proteases (calpastatina e calpaínas) devem ser considerados.
Em estudos realizados por O´Connor et al. (1997) comparando-se Bos taurus e Bos indicus foram observadas diferenças na atividade da calpastatina, 24 horas pós-morte e na gordura intramuscular. Por outro lado, não foram encontradas diferenças em relação à maciez da carne desses animais. Comparando-se com Bos taurus, a carne de bovinos 3/8 Bos indicus apresentou escores de gordura similares. Entretanto, foi observada maior atividade de calpastatina 24 horas pós-morte. Ainda, a carne de animais 3/8 Bos indicus maturou mais lentamente de 1 a 7 dias e foi menos macia, aos 4, 7, 14, 21 e 35 dias que a carne de Bos taurus. No entanto, carnes provenientes de bovinos 3/8 Bos indicus foram consideradas macias, quando maturadas por períodos de 21 dias (Tabela 1). Ainda, comparações entre raças Simbrah, Senegus x Simbrah, e Red Angus x Simental mostraram que a inclusão de raças Bos taurus adaptadas (Senepol) resultariam em estratégias efetivas na prevenção de problemas relacionados à maciez da carne bovina. Em se tratando da deposição de gordura intramuscular na carne, ainda O´Connor et al. (1997) relataram que bovinos Hereford e Simental apresentaram menor propensão para a deposição de gordura intramuscular, em comparação a bovinos Red Angus. Por outro lado, interessantemente, bovinos Brahman e Red Angus tiveram habilidades semelhantes em relação à deposição de gordura intramuscular na carne. Porém, estudos prévios têm observado que animais Brahman têm menor habilidade para marmorização (Crouse et al., 1989; citado por O´Connor et al. 1997).
Pesquisas realizadas por Dickeman (1995) concluíram que a redução da maciez é um problema com bovinos que possuem 50% ou mais de composição Bos indicus. Por essa razão, bovinos não deveriam exceder mais de 25% de Bos indicus na composição racial, embora animais compostos de 3/8 ou 5/8 Bos indicus seriam aceitáveis desde que apresentassem alto potencial genético para as características de marmorização e maciez de carne.
Alguns trabalhos como o de Restle et al. (1999), avaliando as características de carcaça e da carne de novilhos Hereford, 5/8 Hereford 3/8 Nelore, 1/2 Hereford1/2 Nelore,1/4 Hereford 3/4Nelore e Nelore, confinados dos 20 aos 24 meses observaram que à medida que se aumentou o grau de sangue Nelore houve redução da maciez da carne não-maturada de novilhos abatidos com 24 meses de idade. Posteriormente, Restle et al. (2001) avaliaram as características de carcaça e da carne de novilhas Charolês e 3/4 Charolês 1/4 Nelore terminadas em confinamento e não observaram diferenças para maciez avaliada por painel sensorial e por força de cisalhamento entre os grupos genéticos.
Outros estudos realizados por Vaz et al. (2002a) avaliando a composição física da carcaça e a qualidade da carne de novilhos puros das raças Charolês e Nelore e novilhos de cruzamentos entre estas raças (F1) relataram que não houve diferença na maciez entre animais puros e cruzados, entretanto, a carne de bovinos Charolês foi mais macia que a de animais F1 e a destes, mais macia que a de bovinos Nelore.
Faturi et al. (2002) compararam a substituição do grão de sorgo do concentrado por aveia preta nos níveis de 0, 33, 66 e 100 em novilhos das raças Nelore, Charolês e cruzamentos e observaram que a carne de bovinos Nelore foram mais duras em avaliação objetiva. Porém, quando essas análises foram realizadas com painel sensorial (avaliação subjetiva) não foram encontradas diferenças entre raças.
Pesquisadores do Meat Animal Research Center (USA), durante 33 anos, em oito experimentos, avaliaram 34 raças bovinas e observaram que a média da força de cisalhamento, medida através do Warner-Bratzler Shear Force no músculo Longissimus aumentava à medida que a aumentava também a porcentagem de Bos indicus. Além disso, o músculo Longissimus de bovinos com genótipo 50% ou mais Bos indicus, como Brahman e Sahiwal, Nelore e Boran comumente apresentaram carnes mais duras que o músculo Longissimus de bovinos Bos taurus. Ainda, algumas raças (Jersey, Pinzgauer, South Devon, Red Poll e Piemontês) tenderam produzir carnes mais macias em relação às raças taurinas. Outro fato interessante é que a miostatina inativa, que causa “dupla musculatura” em bovinos da raça Piemontesa favoreceu a maciez da carne resultando em cortes mais macios. Ainda, segundo os pesquisadores, dentro da própria raça há uma maior variação da maciez, do que em diferentes raças.
De acordo com Miller (2001) entender o efeito do reprodutor dentro de uma raça auxiliaria a compreensão dos efeitos da raça na qualidade da carne e forneceria uma ferramenta aos produtores na seleção para a melhoria da qualidade da carne.
Algumas práticas de produção podem ser aplicadas na indústria, com o intuito de melhorar a maciez incluindo: 1) seleção de raças 2) redução do estresse pré-abate a fim de evitar os “cortes escuros” (embora esses cortes sejam às vezes considerados mais macios, usualmente apresentam sabor desagradável 3) uma considerável quantidade de trabalhos indica que a alimentação de bovinos com alto grão (elevada energia na dieta) por um período mínimo, 75 dias pré-abate, favorecem a maciez da carne 4) a prática da castração de machos deve ser realizada ao redor de 7 meses, para evitar a redução da maciez 5) abate dos animais (no máximo aos 30 meses).
Em relação ao consumo, a pesquisa indicou que 36% dos consumidores ingleses estariam dispostos a pagar US$2.22 a mais por carnes seguramente mais macias.
Considerações Gerais
Há variação na maciez da carne entre diferentes raças e dentro da própria raça.
O processo de maturação da carne de bovinos consiste em um importante efeito a qualidade da carne, assim como o tipo de raça utilizado. Além disso, alguns fatores relacionados com a genética do animal, como composição do tecido conjuntivo pode alterar de forma significante a textura da carne.
Nos sistemas de produção que desejam maximizar as características relacionadas à qualidade do produto final, bovinos Bos indicus tem o seu lugar.
É essencial o controle e criação de estratégias para redução da variação da qualidade, principalmente no que se refere à maciez, já que é um fator determinante no preço final.
Porém, identificar e controlar os diversos mecanismos responsáveis é responsabilidade de toda a cadeia da carne bovina.
Tabela 01- Comparação de bovinos 3/8 Bos indicus
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1Doutoranda. Laboratório de Tecnologia de Alimentos Universidade de São Paulo FZEA-USP
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Sempre ouvi comentários de que boi que engorda em região de morros não produz carne macia. Gostaria de saber se esta afirmação é verídica e, se for, se existe meios de melhorar a macies da carne produzidas em regiões serranas.
Ricardo de Morais Franco
Aguas de Lindóia SP
Parabenizando a autora pela importância do tema escolhido e pela qualidade da redação do texto por ela elaborado.
Angélica é uma pessoa de grande potencial na Ciência da Carne deste nosso país tropical tão carente de talentos acadêmicos no setor.
Caro Professor Pedro,
Agradeço muito o elogio e certamente o senhor é um grande exemplo de dedicação e competência para todos nós estudantes e pesquisadores. Apesar da dificuldade que enfrentamos nesse país carente de incentivo à pesquisa ainda acredito na música: “Dias melhores virão”…
Um grande abraço,
Angélica S.C. Pereira.