Desenvolvimento da biometria de focinho levou cinco anos de trabalho. Foto: Mônica Rossi/Agro Estadão
Uma tecnologia de identificação biométrica de bovinos por meio do reconhecimento do focinho do animal foi lançada durante a Expointer, em Esteio (RS). O sistema, chamado QR Cattle, utiliza um algoritmo para fazer a leitura e cadastro do gado, permitindo a identificação única e inequívoca de cada animal.
O desenvolvimento da tecnologia levou cinco anos de trabalho. O responsável pela novidade é um entusiasta dos sistemas de identificação que, antes do projeto, não tinha nenhuma ligação com o mundo agro. Flávio Mallmann saiu do trabalho em um tabelião para a inovação em agropecuária com uma missão em mente: criar um sistema de registro de animais que fosse além dos tradicionais brincos, como uma digital do animal.
“Escolhi ainda três pilares: velocidade e assertividade, já que o sistema precisava ter 100% de confiabilidade. O segundo era a possibilidade de uso offline, já que boa parte do nosso campo não tem internet. E o terceiro tinha que ser barato. Por isso, escolhemos um aplicativo que opere em qualquer celular mediano”.
Inicialmente, a equipe tentou utilizar a comparação de imagens para o sistema, mas percebeu que não atingia a assertividade desejada. Então, foi desenvolvido um algoritmo próprio e 100% nacional, que utiliza a biometria das “ranhuras” do focinho como identificador único. Em 2022, o governo do Rio Grande do Sul passou a apoiar a iniciativa e testes começaram a ser feitos em uma propriedade em Hulha Negra.
Segundo o empresário, “não existe comercialmente no mundo nenhuma solução similar com a mesma assertividade e dinâmica do QR Cattle”.
O cadastro inicial demora de 6 a 8 segundos, dependendo do comportamento do animal. Após essa primeira etapa, as próximas leituras caem para 4 ou 5 segundos. O cadastro é feito uma única vez na vida do animal, pois o sistema utiliza um algoritmo biométrico, similar à leitura de impressão digital. A captura da imagem é feita no focinho — região de padrões únicos com “comprovação científica por estudos internacionais”. Algoritmos de inteligência artificial processam esses traços e geram uma identidade digital exclusiva, o “RG animal”, que reúne todo o histórico do rebanho.
“É como a digital dos humanos. Mesmo que tu cresça, nunca muda. O aplicativo faz a leitura igual, independente da idade do boi. Ele acompanha o crescimento do animal porque essas ‘ranhuras’ não distorcem com o tempo”, explica o empresário. Esse identificador acompanha o bovino do nascimento ao frigorífico, assegurando rastreabilidade integral e transparência nas informações de manejo, sanidade e genética.
O produtor pode cadastrar até mil animais em um mesmo dia sem uso da internet e, depois, as informações são atualizadas no sistema quando o celular estiver online.
Segundo Mallmann, a ideia é integrar o QR Cattle aos sistemas já existentes de identificação animal modernos. “Eu pego o focinho, gero o ID daquele focinho e integro com o brinco. Seja o brinco eletrônico, seja o brinco de manejo. No dia a dia do manejo, ele vai poder ler, se por acaso ele utilizar o bastão de leitura, ele lê com o bastão. Essa leitura passa por dentro do aplicativo e cria o georreferenciamento. Então, consigo trazer segurança sem impactar no manejo”, afirma.
A Associação Brasileira de Angus e Ultrablack já está adotando a tecnologia em seus animais. “A identificação pelo focinho dos bovinos é um avanço enorme para o setor. Ao adotarmos essa tecnologia, damos um passo decisivo rumo à modernização da pecuária, com mais segurança, rastreabilidade e valorização da genética nacional. É uma ferramenta que fortalece a confiança do mercado e abre novas possibilidades para os nossos criadores”, afirma o presidente, José Cairoli. A associação é a responsável pelo Programa Carne Angus Certificada, maior programa de certificação de qualidade de raça do Brasil.
Nesta quinta-feira, 4, durante o lançamento do plano piloto de rastreabilidade do Rio Grande do Sul, com base no Plano Nacional de Identificação Bovina (PNIB), o QR Cattle foi apresentado como tecnologia complementar. O PNIB, iniciativa do Ministério da Agricultura, estabelece que a rastreabilidade individual do rebanho seja adotada gradualmente até 2032. Serão eleitas algumas propriedades no Rio Grande do Sul, onde serão implementados os brincos 076, integrados com a QR Cattle, para dar essa segurança total na identificação bovina.
“Nesse momento, a gente precisa saber o feedback do pessoal da pecuária. Porque vamos ter muitas variáveis conforme o produtor for usando a tecnologia. Então, a gente vai melhorando a experiência do usuário conforme a gente ouve do pessoal que utiliza”, relata Mallmann.
A parceria com o governo gaúcho vai permitir que os produtores usem o programa de graça por um período de 30 dias. O aplicativo já está disponível gratuitamente para download. Após o período gratuito, o sistema exigirá uma mensalidade para o uso contínuo.
“Eu posso te adiantar que isso vai ser centavos por animal. De forma que não traga impacto para o pecuarista e ele consiga entregar no final do dia, lá no frigorífico, tendo uma remuneração de prêmio que justifique essa implementação de tecnologia”, complementa o criador do sistema.
Para entender a importância de sistemas de rastreabilidade no agro, é só olhar para a relação comercial do Brasil com a União Europeia (UE), por exemplo. Somente no primeiro semestre de 2025, 37,5 mil toneladas de carne bovina in natura foram embarcadas do Brasil para a UE, o maior volume já registrado para esse período do ano. Mas, a partir de 30 de dezembro de 2025, entra em vigor o European Union Deforestation Regulation, nova regulamentação que estabelece mudanças na importação por países do bloco. A principal exigência será a rastreabilidade completa do ciclo de produção, acompanhando o animal desde o nascimento até o abate.
Atualmente, o acompanhamento é restrito aos últimos 90 dias de vida. Com a nova regra, será necessário comprovar que a criação ocorreu em propriedades sem desmatamento, sem uso de trabalho análogo à escravidão e com registro adequado de sanidade, incluindo vacinas e tratamentos ao longo da vida do animal.
“Com essa tecnologia, conseguimos garantir o acompanhamento completo ao longo de toda a cadeia produtiva, reforçar a segurança contra furtos e fraudes, além de assegurar a origem do gado com precisão”, conclui Mallmann.
Fonte: Estadão.