Por Antônio Donizeti Beraldo1
No dia 24/07, na coletiva de imprensa da Organização Mundial do Comércio (OMC), após o fracasso da nova reunião ministerial do G-6 (Estados Unidos, União Européia, Brasil, Índia, Austrália e Japão), o diretor geral, Pascal Lamy, foi taxativo: “Hoje existem apenas perdedores”. Não há como deixar de concordar com este diagnóstico. Há, todavia, os que perdem mais ou menos com o atraso ou mesmo com a não conclusão da Rodada Doha. 0 Brasil, sem dúvida, está entre os maiores perdedores. Vários estudos do Banco Mundial e outras instituições como a Organização de Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE) já apontavam o País como o grande beneficiário de um acordo bem sucedido na OMC.
Dentro do Brasil também há aqueles que perdem mais ou menos com o fracasso. O setor agrícola é, indubitavelmente, o mais prejudicado com a falta de progresso nas negociações. Todos sabem que o foco da rodada estava centrado na redução das distorções do comércio agrícola mundial. Atualmente, o Brasil enfrenta uma enorme quantidade de barreiras para aumentar suas exportações devido a tarifas elevadas, concorrência desleal de exportações subsidiadas e políticas domésticas que isolam os produtores dos países ricos das flutuações do mercado mundial e provocam dumping no mercado internacional.
Estimativas preliminares indicam que deixaremos de exportar nos próximos anos cerca de US$ 10 bilhões em produtos do agronegócio, devido à continuidade das distorções atuais. O potencial de crescimento do agronegócio brasileiro hoje é amplamente reconhecido, pois somos competitivos nas principais commodities e ainda dispomos de amplas áreas agricultáveis, não incorporadas ao processo produtivo, que podem triplicar a nossa produção de grãos e de carnes em geral. Estudo recente conjunto da OCDE e FAO (*) apontam o Brasil como a potência agrícola nos próximos dez anos. Este cenário promissor, contudo, pode não se concretizar devido à continuidade do protecionismo agrícola mundial e não remoção dos entraves que impedem a ampliação do nosso acesso a mercados.
O novo acordo agrícola que poderia resultar da Rodada Doha seria particularmente importante para estancar a escalada crescente dos subsídios agrícolas nos últimos anos. Em 1995, quando foi assinado o primeiro acordo agrícola da OMC, os subsídios agrícolas eram estimados em US$ 305 bilhões. O acordo foi tão tímido e as disciplinas acordadas tão frouxas que os subsídios agrícolas, ao invés de diminuírem, acabaram aumentando. No período mais recente, de 2003 a 2005, os subsídios dos países ricos integrantes da OCDE foram de US$ 371,2 bilhões por ano, ou seja, a agricultura dos países desenvolvidos é subsidiada em aproximadamente US$ 1 bilhão por dia.
Faz parte do jogo diplomático identificar os culpados pelo fracasso da negociação. Na nossa avaliação, todos os principais atores da rodada têm sua parcela de culpa, inclusive o próprio Brasil. Desde o início da negociação para a definição das chamadas modalidades agrícolas, que é o estágio onde se definem claramente os percentuais de corte nas tarifas e no montante de subsídios a serem reduzidos, a União Européia (UE) foi quem mostrou mais resistência em abrir seus mercados, colocando na mesa uma proposta muito defensiva na área de acesso a mercados, prevendo um corte médio das tarifas agrícolas de 39%, considerado muito modesto pelos demais membros da OMC. Fortemente pressionada desde a reunião ministerial de Hong Kong, no final de 2005, os europeus vinham sinalizando melhorar um pouco sua proposta, aproximando-a do corte de 53% proposto pelo G-20, coalizão de países em desenvolvimento liderados pelo Brasil.
Os Estados Unidos apresentaram em outubro de 2004 uma proposta muito ambiciosa em acesso a mercados, na qual estava prevista uma redução média de 66% nas tarifas, mas extremamente defensivo em apoio doméstico, que engloba o conjunto de políticas internas destinadas a garantir a renda dos produtores. Atualmente, os americanos gastam US$ 21,4 bilhões nos vários programas incluídos na Farm Bill. Segundo sua proposta de outubro de 2004, os gastos permitidos seriam de US$ 22,4 bilhões, ainda US$ 1 bilhão acima do que é atualmente gasto. Portanto, não haveria redução efetiva do montante gasto com suas políticas distorcivas, algumas delas já condenadas em contenciosos da OMC, como no caso do algodão, em que o Brasil foi protagonista.
A proposta americana cortaria somente a “água” do montante de apoio global consolidado na OMC (US$ 47,7 bilhões) e o valor efetivamente gasto. Para o Brasil era indispensável forçar os EUA a melhorar sua proposta, pois os americanos são nossos competidores no mercado mundial e, conforme ficou provado no contencioso, suas políticas domésticos distorcivas provocam dumping no mercado internacional, prejudicando assim a rentabilidade das nossas exportações. A resistência dos EUA, em melhorar sua oferta em apoio doméstico, pode ser considerada a principal razão para o fracasso das negociações até aqui.
A grande novidade nesta rodada era a presença do G-20. O grupo foi uma coalizão de países criada a partir do fracasso da Conferência Ministerial da OMC, em Cancun, no México, no final de 2003, por iniciativa do Brasil. O grande mérito do G-20 foi colocar os países em desenvolvimento e o tema agrícola no centro da negociação. O G-20 foi desde o início uma coalizão “anti-subsídios”, uma vez que no pilar de acesso a mercado sempre existiram posições contraditórias, com alguns países defendendo posições ofensivas (Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, etc.) e outros com fortes interesses defensivos, como Índia e China. Além das suas divergências internas, a maioria dos países do G-20 assumiu posições pouco ambiciosas nas negociações de bens industriais (NAMA, na terminologia da OMC).
A diplomacia brasileira sempre vendeu a idéia de que, com o G-20, a possibilidade de concluir com sucesso a atual rodada seria maior. Não foi o que se viu. As divergências internas do grupo na área de acesso a mercados e a resistência de alguns dos seus membros, como Brasil e Índia, em aceitar cortes, mesmo que modestos, nas tarifas industriais, também dificultaram o avanço das negociações. O Brasil, como líder do G-20, também foi pouco ativo no sentido de conter o ímpeto protecionista da Índia em alguns temas agrícolas, como o estabelecimento das chamadas salvaguardas agrícolas especiais para os países em desenvolvimento, o que prejudicaria enormemente as nossas exportações para esses países que já alcançam mais de 50% das nossas vendas externas.
Hoje está claro que não há mais tempo hábil para concluir a Rodada este ano e tampouco no próximo. Assim, a continuidade das negociações dependerá da renovação da autoridade negociadora do executivo americano pelo Congresso, o chamado TPA, que se expira em julho de 2007. Devido à debilidade atual da administração Bush, é incerta a renovação do TPA. Alternativas que nos restam é a retomada de negociações com grandes parceiros comerciais como a UE, cujas negociações estão paralisadas desde o final de 2004. Para que essa negociação seja concluída com sucesso, contudo, é necessária uma mudança da postura negociadora excessivamente defensiva do Mercosul, o que tem inviabilizado a conclusão de todas as negociações com relevância comercial para o Brasil. Um complicador para a retomada das negociações com a UE é o redirecionamento das prioridades comerciais da Europa para Ásia, relegando à segundo plano o Mercosul e a América Latina. A incorporação recente pelo Mercosul da Venezuela é um outro complicador para recuperar a capacidade do bloco em melhorar sua inserção externa.
O caminho dos contenciosos comerciais é outra possibilidade que se coloca. Os produtores rurais estão bastante desestimulados em trilhar esse caminho, pois embora tenhamos sido bem sucedidos nos contenciosos anteriores com os EUA (algodão) e a UE (açúcar), os resultados não tem sido implementados até agora. Ou seja, ganhamos, mas ainda não levamos. O governo brasileiro, infelizmente, tem sido pouco firme em exigir o cumprimento das decisões do órgão de solução de controvérsias da OMC.
A OMC é mais uma frente negociadora em que o Brasil não obtém sucesso. Já fracassamos no contexto da ALCA e do Acordo Mercosul/UE. Em todas essas negociações, o Brasil poderia ser o grande beneficiário, principalmente no agronegócio, onde nossas vantagens competitivas são evidentes. Talvez tenha chegado a hora de repensar nossa estratégia de política comercial externa, já que até agora só temos colecionados fracassos.
________________________________________________________
1Assessor técnico da Comissão Nacional de Comércio Exterior da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA)