Cana-de-açúcar tratada com cal virgem: fatos & mitos

Por Patrick Schmidt 1, Lucas José Mari 1 e Luiz Gustavo Nussio 2

1. Introdução

Recentemente o questionamento sobre as possibilidades e benefícios do tratamento de cana com cal virgem vem ganhando importância e atenção de técnicos e produtores.

Freqüentemente tem-se observado uma pergunta comum nos eventos técnicos como simpósios e palestras: o tratamento de cana-de-açúcar com cal virgem é compensador?

Quando se analisa a história é fácil deparar-se com ao menos uma dezena de soluções milagrosas que agitaram o setor pecuário nos últimos anos: raças de animais, medicamentos, aditivos alimentares etc.

Pensando mais especificamente em suplementação volumosa, essa tendência é bem marcante. Foi assim em meados dos anos 70 com a ensilagem do Capim Elefante. Foi assim com a suplementação volumosa com bagaço de cana tratado, durante os anos 80. O mesmo ocorreu em anos recentes, com um novo interesse em silagens de capins tropicais. Nos últimos anos, a possibilidade de ensilagem da cana-de-açúcar tem despertado atenção de muitos pecuaristas. O mesmo é notado agora, com o uso da cal virgem para tratamento hidrolítico da cana-de-açúcar.

O uso de cal virgem na cana é um exemplo claro de tecnologia que surge e se propaga entre os produtores anteriormente à vinda de evidências científicas da pesquisa. Assim, os dados experimentais disponíveis sobre esse tipo de tratamento ainda são escassos, o que dificulta a geração de uma resposta definitiva.

Algumas equipes de pesquisa têm concentrado esforços na tentativa de avaliar e otimizar o uso desse produto para alimentação animal, tendo gerado alguns dados que serão aqui discutidos.

2. Ação hidrolítica

Antes de se preocupar com quanto, quando ou como usar a cal virgem junto com a cana, é preciso entender o que vem a ser a “hidrólise” da cana, bem como quais seriam os possíveis benefícios dessa hidrólise sobre o consumo e o desempenho dos animais.

O termo hidrólise, em forragens, refere-se à quebra da estrutura da fibra, o que sugere a solubilização de componentes e, por conseqüência, aumenta a digestibilidade do alimento como um todo. Isso pode apresentar como conseqüência maior consumo e melhor desempenho do animal.

A fibra dos tecidos vegetais, de maneira simplista, pode ser comparada às paredes de uma casa. Essa fibra é formada por três componentes principais: a celulose (tijolos), a hemicelulose (cimento) e a lignina (colunas de concreto). Os dois primeiros compostos (celulose e hemicelulose) são potencialmente digestíveis pelo ruminantes, enquanto a lignina é praticamente indigestível. Nesse sistema, as cadeias de celulose estão unidas entre si e unidas à lignina pela hemicelulose, em camadas sucessivas. Juntos, esses compostos formam uma estrutura complexa e rígida, que dá suporte ao crescimento dos vegetais (Terashima et al., 1993).

Alguns agentes alcalizantes têm sido usados para melhorar a digestibilidade de alimentos fibrosos por meio da hidrólise. Desses, os compostos químicos mais comumente testados são o hidróxido de sódio (soda cáustica – NaOH), hidróxido de cálcio [Ca(OH)2], amônia anidra (NH3+) e, mais recentemente, o óxido de cálcio (cal virgem – CaO). Esses agentes atuam solubilizando parcialmente a hemicelulose, promovem o fenômeno conhecido como “intumescimento alcalino da celulose”, que consiste na expansão e ruptura das moléculas de celulose (Jackson, 1977).

De acordo com Klopfenstein (1980) o teor de lignina normalmente não é alterado pelo tratamento químico, mas a ação desse tratamento leva ao aumento da taxa de digestão da fibra, provavelmente devido às quebras das ligações entre as frações celulose e hemicelulose. Usando o exemplo da parede, esses agentes alcalinos quebram parcialmente o “cimento” em pequenos pedaços, separando os tijolos das colunas de concreto. Assim, essas frações de cimento e tijolos se tornam mais “disponíveis” pelos animais em relação à parede em sua forma íntegra.

3. Cal virgem

O uso do óxido de cálcio (CaO), ou cal virgem, para tratamento hidrolítico de forragens tem por base a formação de hidróxido de cálcio [Ca(OH)2], um agente alcalino com moderado poder de hidrólise da fibra (Berger et al, 1994). Embora essa ação hidrolítica possa ocorrer, ela é menos intensa que a experimentada usando bases fortes, como o hidróxido de sódio (NaOH) ou de potássio (KOH). Esse fato remete á pergunta inicial: a hidrólise realmente ocorre no tratamento da cana-de-açúcar com cal virgem?

A resposta a essa pergunta poderá ser dada tão logo se disponha de avaliações de composição bromatológica, digestibilidade e, principalmente, desempenho (ganho de peso, produção de leite, conversão alimentar) de animais que consumirem esses alimentos. Essas avaliações estão em andamento em alguns centros de pesquisa, porém, ainda sem resultados conclusivos. Trabalhos de pesquisa com outros volumosos (Bass et al., 1982) mostram baixa eficiência do hidróxido de cálcio em realizar a hidrólise. Na cana, a dúvida permanece, pois os resultados ainda são erráticos.

4. Perguntas freqüentes envolvendo cal virgem

Qualquer tipo de cal pode ser usada para hidrólise da cana?

A cal microprocessada ou micropulverizada é o produto recomendado para o tratamento da cana. Esse é um produto totalmente diferente da cal virgem utilizada em construção civil, que é inadequada para a alimentação animal, por conter substâncias tóxicas como dioxinas e furanos.

A cal virgem é mais eficiente que a soda para o tratamento da cana-de-açúcar?

A soda cáustica (NaOH) é um agente alcalino forte, com comprovada ação sobre a fibra de volumosos (Berger et al., 1994), inclusive cana-de-açúcar (Ezequiel et al., 2003). Contudo, os riscos de toxicidade e o elevado custo tornam proibitivo o uso desse produto.

A cal virgem oferece risco menor e custo inferior ao da soda. Contudo, conforme já mencionado, sua ação é moderada, e seus efeitos sobre o consumo e desempenho de animais ainda não foram adequadamente estudados.

Avaliando o efeito da hidrólise com 2% de soda na massa verde de cana, Alves et al. (2001) verificaram aumento de cinco unidades percentuais na digestibilidade da matéria seca (MS), de 62,8 para 68,2%. Provavelmente, com a cal, a magnitude desse incremento seja inferior.

A cal pode ser aplicada diretamente na colhedora/picadeira de forragem?

Sim, pode-se adaptar a aplicação de cal diretamente na colhedora/picadora, para facilitar a distribuição do produto. Inclusive existem comercialmente implementos para essa finalidade. Contudo, alguns cuidados devem ser tomados:

– A cal não é completamente solúvel, formando depósitos sólidos no tanque de armazenamento da solução. Por isso é necessário um sistema de agitação constante da solução.

– Resíduos incrustados de cal aderem nas facas e no rotor do sistema de picagem da máquina, causando desbalanceamento do rotor e risco de danos ao conjunto. Dessa forma, recomenda-se a lavagem diária do implemento após o uso.

– A vazão da solução de cal deve ser acompanhada com freqüência, para evitar-se sub ou superdosagem.

O mercado, recentemente, passou a contar com equipamentos cuja aplicação é realizada por aspersão de baixo volume, no fluxo de forragem picada na altura da bica da colhedora. Esse equipamento se encontra em período de avaliação.

Estratégias de aplicação da cal virgem em pó estão sendo avaliadas em algumas instituições de pesquisa ainda sem resultados conclusivos.

Quanto tempo a cana com cal pode permanecer picada?

Em recente experimento desenvolvido na ESALQ, a cana-de-açúcar tratada com doses de 0; 0,5; 1,0 e 1,5% da massa verde de cal virgem foi acompanhada por 10 dias, em relação às perdas de MS (tabela 1).

Tabela 1. Perdas de matéria de cana-de-açúcar com óxido de cálcio.


Observa-se que as perdas de MS, decorrentes da oxidação de substrato e perda de açúcar, são maiores na fase inicial (cinco primeiros dias). A aplicação de doses de 1,0 e 1,5% de cal na massa verde reduziu essas perdas em relação à cana não tratada. Mesmo assim essas perdas representam cerca de 11% da MS.

Pode-se afirmar que mesmo a cana picada tratada com cal virgem está sujeita à perdas e que o tempo de permanência do material picado deve ser o menor possível, algo entre dois e três dias. Esses resultados concordam com observações informais realizadas à campo por empresas do setor pecuário.

Qual o ganho logístico da utilização da cal virgem para o tratamento da cana?

Eis aqui, talvez, o principal atrativo dessa modalidade de utilização desse volumoso. O apelo de se poder armazenar a forragem tratada com cal virgem por até três dias tem surtido efeito de “conveniência” em se evitar o corte da cana durante o final de semana. Contudo, esse tipo de comodidade deve ser usado apenas em períodos críticos ou emergências, visto que as perdas de MS, mesmo na cana tratada, são significativas.

O desempenho dos animais será melhorado ao se substituir a cana fresca pela cana tratada com cal?

Embora possa desapontar a muitos, a resposta é NÃO. O objetivo principal da hidrólise da cana não é de permitir que o animal aproveite melhor a fibra da cana, e sim fazer o animal consumir mais cana, consequentemente mais energia (açúcar), que é o principal nutriente dessa planta.

Mesmo a hidrólise da cana com agentes oxidantes fortes, como a soda cáustica, acarreta pequena alteração no desempenho dos animais, principalmente em rações com maior presença de concentrado.

Então, por que usar a cal? Uma possível resposta foi dada no item acima, quando mencionada a possibilidade de se aumentar o intervalo entre colheitas. Da mesma forma, em sistemas de produção mal equacionados, onde a cana é cortada fora do ponto ideal de maturidade e/ou é mal picada (tamanho de partícula grande, acima de 3 cm), a hidrólise possibilita elevação do consumo, e assim, melhora no desempenho.

Usando mais de uma variedade de cana, cortando a cana no período certo e regulando e afiando facas, pode-se atingir praticamente o mesmo resultado, de forma mais prática e eficiente.

A escolha de variedades mais interessantes para a alimentação animal, por si só, demonstra efeito melhor que o próprio tratamento hidrolítico da cana. Os resultados obtidos pela equipe da Unesp/Jaboticabal (Silva et al., 2005), comparando as variedades RB 835453 e IAC86-2480 (variedade destinada à alimentação animal) mostram que a digestibilidade da fibra (FDN) da variedade IAC86-2480, mesmo sem hidrólise, foi superior à digestibilidade da outra variedade industrial hidrolisada (42,0 vs 36,6%).

O tratamento com cal funciona na ensilagem?

Sim, alguns estudos, inclusive de desempenho de animais em confinamento, começam a apontar a cal virgem como aditivo interessante na ensilagem da cana, com objetivo de reduzir a produção de etanol e as perdas totais decorrentes da fermentação (tabela 2). Os resultados até então tem sido bastante satisfatórios.

Tabela 2. Perdas e produção de efluente da silagem de cana-de-açúcar tratada com aditivos químicos e microbianos.


Na tabela 2 verifica-se que as doses de 1,0 e 1,5% de cal virgem na massa verde foram efetivas em reduzir as perdas de MS e a produção de gases nas silagens de cana. Os resultados de ensaios em andamento com bovinos de corte, poderão contribuir para a tomada de decisão do uso de cal virgem como aditivo em silagens de cana-de-açúcar.

Para finalizar, deve-se reafirmar que, embora muito tenha se falado sobre o uso da cal virgem como agente de hidrólise em cana-de-açúcar, ainda são poucos os resultados de pesquisa que tenham avaliado o desempenho de animais.

Ao pecuarista, adepto da cana-de-açúcar, cabe buscar a melhoria do sistema de produção de forragens como um todo, priorizando aspectos agronômicos, a colheita e fornecimento desse volumoso de forma eficiente, entendendo tratamentos, como a hidrólise, como “ajuste fino” do consumo e desempenho de animais, sem gerar expectativa demasiada nessa estratégia.

5. Referências bibliográficas

ALVES, J.B.; GODOY, M.M.; BERGAMASCHINE, A.F. et al. Digestibilidade da cana-de-açúcar hidrolisada e in natura. In: REUNIÃO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ZOOTECNIA, 38., Piracicaba, 2001. Anais… Piracicaba: SBZ, CD ROM, 2001.

BASS, J.M.; PARKINS, J.J.; FISHWICK, G. The effect of calcium hydroxide on the digestibility of chopped oat straw supplemented with a solution containing urea, calcium phosphorus sodium, trace elements and vitamins. Animal Feed Science and Technology, v.7, n.2, p.93-100, 1982.

BERGER, L.L.; FAHEY, G.C; BOURQUIN, L.D. et al. Modification of forage after harvest. In: FAHEY, D.C. (Ed.) Forage quality, evaluation, and utilization. 1.ed. Madison: American Society of Agronomy, Crop Science Society, Soil Science Society, 1994. p.922-966.

EZEQUIEL, J.M.B.; QUEIROZ, M.A.A.; MENDES, A.R. et al. Taxa de passagem, consumo, e digestibilidade da fibra da cana-de-açúcar in natura ou hidrolisada, em bovinos. In: REUNIÃO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ZOOTECNIA, 40., Santa Maria, 2003. Anais… Santa Maria: SBZ, CD ROM, 2003.

JACKSON, M.G. The alkali treatments of straws. Animal Feed Science and Technology, v.2, n.2, p.105-130, 1977.

KLOPFENSTEIN, T. Increasing the nutritive value of crop residues by chemical treatment. In: HUBER, J.T. (Ed.). Upgrading residues and by-products for animals. Boca Raton: CRC Press, 1980. p.40-60.

SANTOS, M.C.; NUSSIO, L.G.; SOUSA, D.P. et al. Estabilidade aeróbia e perda de matéria seca de cana-de-açúcar in natura tratada com níveis crescentes de óxido de cálcio. In: REUNIÃO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ZOOTECNIA, 42., Goiânia, 2005. Anais… Goiânia: SBZ, CD ROM, 2005.

SILVA, T.M.; OLIVEIRA, M.D.S., SAMPAIO, A.A.M. et al. Efeito da hidrólise de diferentes variedades de cana-de-açúcar sobre a digestibilidade ruminal in vitro. In: REUNIÃO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ZOOTECNIA, 42., Goiânia, 2005. Anais… Goiânia: SBZ, CD ROM, 2005.

TERASHIMA, N.; FUKUSHIMA, K.; HE, L.F. et al. Comprehensive model of the lignified plant cell wall. In: Jung et al. (Ed.). Forage Cell Wall Struture and Digestibility. Madison: American Society of Agronomy, Crop Science Society, Soil Science Society, 1993. p.247-270.

____________________________________
1 Doutorandos em “Ciência Animal e Pastagens” – USP/ESALQ – patrick@esalq.usp.br; ljmari@esalq.usp.br.
2 Professor Associado do Departamento de Zootecnia – USP/ESALQ.

0 Comments

  1. Marcos Fernando Chaves disse:

    Achei interessante este assunto, sendo mais uma alternativa de alimentação em períodos críticos do ano, principalmente no que se refere a cana. Gostaria de aproveitar e sugerir uma matéria relacionando a hidrólise à adição de uréia, uma vez que esta também melhora a qualidade deste volumoso.

    Obrigado.

Maílson da Nóbrega: projeções otimistas para a economia
13 de janeiro de 2006
RS: frigorífico amplia bonificação à carne Angus
17 de janeiro de 2006