Mercados Futuros – 18/02/08
18 de fevereiro de 2008
Um manual com 8 capítulos
20 de fevereiro de 2008

Carne bovina – dos tempos do fogão à lenha à gastronomia molecular

Recentemente tivemos a visita ao Brasil do cientista Hervé This. Toda a mídia divulgou bastante este acontecimento, e as palestras do renomado divulgador da gastronomia molecular. Este termo "gastronomia molecular" foi coletado pelo próprio This em 1988 e pelo físico húngaro Nicholas Kurti, para denominar a aplicação de modernas técnicas científicas à cozinha. Mas será que seus novos métodos ficaram limitados às criações exóticas de espumas e formatos inusitados para velhas fórmulas? É claro que não. Um dos estudos feitos pelo grupo baseou-se na estrutura da carne e como o cozimento a afeta, para poder chegar às conclusões de temperaturas ideais para se obter assados perfeitos. Um resumo desta técnica é explicada neste artigo.

A evolução da cozinha

Recentemente tivemos a visita ao Brasil do cientista Hervé This. Toda a mídia divulgou bastante este acontecimento, e as palestras do renomado divulgador da gastronomia molecular. Este termo “gastronomia molecular” foi coletado pelo próprio This em 1988 e pelo físico húngaro Nicholas Kurti, para denominar a aplicação de modernas técnicas científicas à cozinha. Definiu-se então seus aspectos fundamentais como a investigação de métodos culinários, explorando as receitas existentes, introduzindo novos métodos, inventando novos pratos e usando as descobertas para ajudar o público em geral a entender a contribuição da ciência para a sociedade.

Mas será que seus novos métodos ficaram limitados às criações exóticas de espumas e formatos inusitados para velhas fórmulas? É claro que não. Um dos estudos feitos pelo grupo baseou-se na estrutura da carne e como o cozimento a afeta, para poder chegar às conclusões de temperaturas ideais para se obter assados perfeitos. Um resumo desta técnica é explicada abaixo.

Tive o prazer de estar presente à palestra de Hervé This. Apaixonado por culinária, é o primeiro cientista do mundo a obter o título de Master em Gastronomia Molecular. E na verdade, a conclusão que tirei de tudo isso, teria estarrecido o próprio This: esse resultado maravilhoso do cozimento da carne em temperaturas baixas não é novidade. Afinal, nossas antigas cozinheiras (e mesmo novas em alguns locais do Brasil) não o executavam no forno a lenha, assando pernis, carne assada, cabritos e outras delícias, em temperatura baixa, forno lento, por horas a fio, resultando no mais apetitoso assado que se pode saborear? É a ciência comprovando, com seus métodos incontestáveis, o que já sabíamos de maneira empírica.

Cozimento em baixas temperaturas

A maioria das pessoas pensa que é necessário dourar primeiramente a carne em alta temperatura antes de deixá-la cozinhar. Embora esta seja a maneira que muitos assados são ainda cozidos (na panela), na realidade não tem de ser feito deste modo. Nos últimos anos, alguns chefes, incluindo Heston Blumenthal, têm verificado que o cozimento de carnes para torná-las macias, pode acontecer em temperaturas relativamente baixas, antes da peça estar dourada no exterior. Entendendo um pouco da química e da física que acontece quando cozinhamos explica o porquê pode ser assim.

Na realidade, o cozimento de carne em temperaturas baixas não é uma nova invenção. O cientista inglês Benjamin Thompson no final do século XVIII descreveu como ele havia deixado uma peça de carne no forno quente desligado por uma noite e ficou espantado quando, na manhã seguinte, ele encontrou a carne macia e inteiramente cozida, embora não estivesse dourada. Ele ficou totalmente perdido, sem saber explicar o que tinha acontecido.

Seu experimento foi repetido pelo prof. Nicholas Kurli da Universidade de Oxford durante uma releitura no Instituição Real em 1969, quando ele demonstrou que a temperatura da carne no experimento de Thompson nunca ultrapassou os 70°C, muito abaixo da temperatura que assamos a maioria das carnes, a 200°C ou mais.

Mitos da carne

A idéia que a carne tem de primeiramente ser dourada para “selar” os sucos durante o cozimento é totalmente errônea – apesar do que já ouvimos e lemos a respeito, mesmo vindo de chefes notáveis.

Basicamente, há 3 motivos porque cozinhamos a carne: torná-la macia, dar sabor de assado a ela e eliminar as possíveis bactérias perigosas que estejam presentes. Contudo, apesar da crença popular, as mudanças químicas que acontecem quando a carne é cozida para torná-la macia, e o que dá a cor dourada escura e seu sabor maravilhoso de assado, não estão relacionados entre si, e os 2 processos acontecem em temperaturas bem diferentes. As bactérias perigosas são eliminadas em temperaturas entre estes dois extremos.

É útil entender portanto a diferença entre estes 3 processos: tornar a carne macia, dar sabor de assado e eliminar bactérias perigosas.

O poder dos músculos

A carne é constituída de músculos que o animal utiliza para se movimentar. Estes estão ligados aos seus ossos por fortes tendões. A carne contém diferentes tipos de proteínas: cada uma é destinada a trabalhos bem diferentes.

Os músculos devem seu poder de empuxo às fibras protéicas longas chamadas de actina e miosina. Estas fibras correm ao longo uma da outra quando estimuladas pelos impulsos nervosos, o que acaba transformando o músculo em mais curto e gorduroso. Se os músculos são utilizados para energia rápida e curta, então a glicose do sangue fornece o combustível. Se os músculos têm de sustentar atividade longa, então a gordura fornece a energia e neste caso outra proteína, chamada de mioglobina, é necessária para ajudar a oxidar a gordura e fornecer a energia.

Podemos dizer de que tipo de tecido muscular é constituída a carne que estamos cozendo, só olhando para ela. Mioglobina é vermelho brilhante, assim os músculos que trabalham mais são vermelhos, enquanto que aqueles usados em movimentos menos regulares, súbitos, são pálidos e até mesmo brancos.

Os tecidos fibrosos que rodeiam os músculos e os conectam aos tendões e ossos têm de ser bem fortes, duros o suficiente para movimentar o animal sem se esticar ou quebrar no processo. Estes tecidos, e os tendões por si mesmos, são feitos de outra molécula protéica chamada de colágeno. Em geral quanto mais colágeno há na peça de carne, mais dura é.

Cozimento da carne

As diferentes proteínas da carne são afetadas pelo calor em temperatura bem baixa, bem abaixo do calor de um forno normal. As moléculas da miosina começam a se encolher e espremem os sucos para fora das moléculas celulares quando atingem por volta de 55°C, ao passo que as moléculas do colágeno começam a mudar quando a carne está levemente mais aquecida, a 60-65°C mais ou menos.

Embora o encolhimento das fibras tenha tendência a tornar a carne mais firme e elástica, o colágeno reage de modo diferente. Começa a se quebrar para formar gelatina. Isto é o que acontece quando a carne é cozida por tempo longo em baixa temperatura. As moléculas duras de colágeno, que mantêm as fibras musculares juntas, vagarosamente se desintegram e a gelatina dissolve no líquido adicionado, o que ajuda a formar um molho enriquecido.

A carne cozida em água quente não tem uma aparência dita apetitosa. Não tem a cor dourada esperada e não tem sabor de assada. As reações que produzem as cores douradas e os sabores ricos de uma peça assada acontecem em temperaturas muito mais altas, e é por isso que não é possível obter-se esse resultado numa carne cozida em água.

Quando fritamos ou assamos a carne, as camadas da superfície ressecam e sua temperatura aumenta acima de 100°C, temperatura na qual a água ferve. Uma química bem complicada começa a acontecer então, porque os açúcares presentes nas células da carne, particularmente um açúcar chamado de ribose, começa a combinar-se com os aminoácidos. (Basicamente, os aminoácidos são os blocos construtores da proteína). Quando as proteínas são cozidas, elas se quebram e liberam os aminoácidos individuais. São eles que reagem com os açúcares da carne.

Os cientistas vêm estudando este processo por mais de 100 anos, mas ainda não compreendem completamente tudo o que acontece. O que eles sabem é que estas reações provocam a cor dourada e muitas, mas muitas mesmo, moléculas odoríferas – aprendemos a gostar desses aromas e os associamos à carne assada. Os cientistas sabem também que os átomos sulfúricos são muito importantes, ajudando a produzir os aromas, e é por isso que com frequência adicionamos alho e cebolas aos pratos de carne, porque estas hortaliças são relativamente sulforosas.

As reações entre os açúcares e as proteínas são importantes para muitos procedimentos de cozimento. É o que dá cor e sabor, por exemplo, à crosta do pão, torradas, biscoitos e caramelo, assim como à carne. Coletivamente são conhecidas como reação de Maillard embora não sejam somente uma reação.

Cozinhando a carne com segurança

Além do cozimento da carne tornar mais fácil de ingeri-la e dar um delicioso sabor, também o fazemos para eliminar as bactérias perigosas que possa conter. Peças grandes de carne estão relativamente livres de bactérias no interior, mas com frequência estão presentes na superfície. Este é o motivo porque devemos sempre lavar as mãos após tocar carne crua.

Muitas bactérias são relativamente perigosas embora possam ocasionar a deterioração da carne. Contudo, algumas bactérias como a Salmonella e a E. Coli podem também causar envenenamento alimentar. Estas bactérias são eliminadas a temperaturas acima de 68°C, assim durante o cozimento, qualquer parte da carne que possa conter estas bactérias, deve ser aquecida acima desta temperatura. Em carne moída ou picada, onde a bactéria da superfície pode ter sido misturada com o restante da massa, deve-se cozê-la de forma a assegurar que esteja inteiramente aquecida à temperatura adequada.

Cozimento em 2 etapas

Agora podemos entender o cozimento lento defendido pela gastronomia molecular. O cozimento lento permite que o colágeno da carne se quebre em gelatina e as fibras da carne encolham e liberem os sucos da carne. Isto torna a carne tenra. As fibras se separam facilmente e ficam deliciosamente suculentas por conta da gelatina liberada do colágeno.

A selagem da superfície da carne em alta temperatura seguida após o cozimento lento cria muitas moléculas aromáticas quando a ribose e os aminoácidos liberados da carne reagem em conjunto, e estes acrescentam seu rico sabor. O aquecimento final também elimina qualquer bactéria que possa ter sobrevivido ao cozimento lento.

• 55 – 60°C – encolhimento das fibras da carne e liberação dos sucos dela.

• 60 – 65°C – quebra lenta do colágeno para se transformar em gelatina, que se dissolve na água do cozimento;

• 65 – 70°C – eliminação das possíveis bactérias perigosas;

• 100 – 120°C – formação da cor do assado e dos sabores quando a ribose e os aminoácidos da carne reagem em conjunto.

0 Comments

  1. jucelia antonia da silva disse:

    Sem qualquer termo científico, aprendi fazer carne cozida lentamente no fogão a lenha ou mesmo a gás com minha vó e tenho certeza que é muito saudável e gostozíssima.

    Ela dizia “postas de carne”. Do coxão mole – patinho – lagarto – coxão duro – tudo muito bom. No final do dia, aquela carne que ficou o dia inteiro no fogão só com um pau de lenha, para que o fogo não apague, mas também não de brazeiro, é um sabor incrível.

  2. Licinia de Campos disse:

    Cara Jucélia Antonia da Silva,

    Obrigado pelo comentário!
    Realmente a ciência vem comprovar aquilo que as cozinheiras mais antigas já sabiam: que o cozimento lento e prolongado da carne faz com que ela se desmanche na boca e fique com um sabor incrível, tomando os temperos plenamente, absorvendo-os, aromatizando-os.

    No final, ficamos mais enriquecidos. A ciência e a experiência estão de mãos dadas.

    Abraço
    Licinia

  3. Luiz Alves de Oliveira disse:

    Gostei muito das informações pois se o brasileiro é realmente carnivoro e eu adoro os segredos de preparar carnes.

    Obrigado.

  4. Angélica Simone Cravo Pereira disse:

    Parabéns pelas informações sempre construtivas!
    Um grande abraço!

  5. Sergio Dornelles Leães disse:

    Parabéns pelo o artigo bastante elucidativo.

    Tenho uma dúvida que pode parecer um contra-ponto, mas na verdade gostaria de poder entender melhor o processo da referida selagem da carne.

    Em cortes para grelha frequentemente tenho observado que, diferente do apresentado, se consegue sobre tudo em carnes de novilhos jovens que sabidamente possuem mais água e menos gordura que as demais, muito bons resultados quando se submete pequenas porções à altas temperaturas com o assado muito próximo da brasa, lacrando ou selando a peça.

    Me parece que os sucos que ficam retidos dentro pelo efeito da selagem, em função da pressão alcançam temperaturas bem além de 100 graus.

    O resultado invariavelmente tem sido picanhas, maminhas e vazios dourados, macios e suculentos além de extremamente saborosos.

    Gostaria de seus comentários à luz da ciência.

    Obrigado e um abraço

  6. Licinia de Campos disse:

    Prezado sr. Sergio Dornelles Leão,

    De acordo com o explicado acima, o efeito da selagem não se realiza totalmente. Logicamente a capa dourada faz com que os sucos tenham menor escape, mas ainda assim não é garantia total de selagem e se o assado (grelhado no caso) for submetido a altas temperaturas por tempo excessivo, ficará seco, esturricado, sem sabor pela perda dos sucos flavorizantes naturais.

    O único aparte que posso fazer é lhe dar os parabéns por ser um bom churrasqueiro, conseguindo reter a umidade e a suculência no grau certo, no tempo certo, que é uma das técnicas mais difíceis de serem conseguidas no churrasco ideal.

    Porém deve-se salientar que nenhum tipo de carne está livre da formação de compostos carcinogênicos (hidrocarbonetos policíclicos aromáticos e compostos N-nitrosos ou aminas heterocíclicas) pela exposição da proteína animal à temperaturas muito altas.