Por Pedro Eduardo de Felício – FEA/UNICAMP
Introdução
Os conceitos de “carne de primeira” e “carne de Segunda” são amplamente difundidos hoje no Brasil. Esta classificação já dá uma idéia sobre as características a esperar daquele corte de carne bovina, porém para muitos há também uma percepção implícita de que a “carne de Segunda” seja uma carne de qualidade inferior, não tendo a capacidade de produzir pratos macios e saborosos. Muitos acabam preferindo cortes de “primeira” até mesmo por desconhecimento de outras formas de preparo de carne além de um simples bife. Portanto, muitas vezes comete-se a injustiça de preterir a segunda alternativa enobrecendo a primeira, num ato “chique” de consumir filé mignon muito macio, mas muitas vezes com sabor não tão acentuado quanto um ossobuco.
Se fosse verdade que somente os cortes de “primeira” produzem bons pratos, os franceses, experts em culinária, não utilizariam tantos cortes de dianteiro em pratos extremamente requintados. Como exemplo disto, quando participei de um curso de culinária com um chef francês, durante a Feira de Gastronomia Boa Mesa no ano passado, aprendíamos a receita de um prato de carne bovina com molho muito interessante, de nome complicado e preparação cuidadosa, quando alguém decidiu perguntar como se traduziria o nome do corte utilizado. Cada um arriscou uma tradução, e após muita discussão o chef de cozinha batia em seu próprio rosto mostrando de onde vinha o corte. A conclusão surpreendente foi que se estava utilizando realmente bochecha de boi para aquele maravilhoso prato. Pergunto: quem de nós já utilizou bochecha bovina em algum prato?
A missão do SIC – Serviço de Informação da Carne é de informar ao consumidor as características, benefícios e qualidades da carne bovina, e isto engloba também a orientação a respeito de preparo de carne. Uma das questões que está sendo bastante trabalhada é o maior esclarecimento a respeito desta classificação da carne bovina. Disponibilizaremos várias receitas com cortes de dianteiro como forma de valorizar este produto, trabalhando também intensamente a orientação quanto à forma de preparo mais adequada para cada corte.
Para esclarecer melhor esta questão, o médico veterinário e professor da FEA/UNICAMP Pedro Eduardo de Felício, membro de nosso comitê técnico, preparou o texto que se segue.
De primeira & de segunda – A modernização do mercado de carnes tende a extinguir esta diferenciação
A elegante senhora, depois de mandar pesar uma peça de filé, pede um quilo de carne de segunda para preparar um delicioso guisado ao vinho tinto e ervas finas. O freguês menos sofisticado diz que vai levar uma carne de segunda porque sai mais barato e dá um excelente picadinho.
Ambos estão certos e é preciso respeitar a maneira do consumidor se expressar. Desnecessário explicar que não existe carne de segunda, que toda carne é de primeira se o gado for saudável e abatido em bons frigoríficos, ou como dizem alguns, o gado é que é de primeira ou de segunda, não a carne que, se for preparada por quem conhece alguns truques culinários, ficará ótima. O consumidor sempre tem razão, o importante é fazer a venda.
Embora justificável a proposição que alguns fazem de que é preciso acabar com a expressão “carne de segunda”, porque soa depreciativa, dificultando as vendas de alguns cortes cárneos ou contribuindo para manter baixos os seus preços, o fato é que as categorias de “primeira” e “segunda”, utilizadas no varejo há muitos anos, servem para resumir em poucas palavras o que demandaria tempo para explicar.
A explicação, provavelmente mais popular, diz que a de primeira é macia e a de segunda é dura. Cabe a ressalva de que ambas sejam preparadas com calor seco por um tempo curto, ou seja, por um método rápido de cozimento como fritar ou grelhar. Entretanto há exceções, por exemplo, um bife de chã de fora, que é um corte “de primeira”, não é recomendável para cozimento rápido, pois ficará mais duro do que um bife de paleta, que é uma carne “de segunda”. Porém se o cozimento for feito com calor úmido por um tempo longo, método lento, em que se acrescenta umidade ou impede-se a perda dela para o meio externo, por mais dura que seja a carne de segunda, como a de cupim, peito, costela ou músculo, ela ficará mais macia do que uma carne de primeira como a de contrafilé ou alcatra. E é por isto que dizem que o que vale mesmo é a habilidade culinária, mas o fato é que o método lento demanda tempo e hoje em dia ninguém quer gastá-lo na cozinha.
Pode-se, também, explicar que a carne de primeira é a do quarto traseiro, sem a ponta de agulha, denominado pistola ou traseiro especial (TE), e a de segunda é a do quarto dianteiro (QD) e da ponta de agulha (PA), ou seja flanco e costela. Nas carcaças de novilhos, o TE representa cerca de 48% e a de QD e PA, os 52% restantes. É assim que os frigoríficos dividem as carcaças e assim são dadas as cotações de preços da carne com osso, sendo a de TE mais cara do que as de QD e PA, que têm preços semelhantes. Mas aí vem uma ressalva: nem toda carne de TE é de primeira, pois a capa de contrafilé, o “músculo”, e os retalhos da desossa são considerados de segunda.
As duas explicações são válidas, porque os cortes do QD e PA, via de regra, são realmente os de carne mais dura na preparação com calor seco por tempo curto, e a razão para isso é o teor de colágeno, uma proteína abundante no organismo, que se gelatiniza pelo calor na presença de umidade, mas se contrai e enrijece com calor seco.
As carnes de segunda provêm de músculos relativamente pequenos, reunidos em grupos, que têm uma função importante na locomoção do animal e na sustentação de certas estruturas como a cabeça e os órgãos torácicos e abdominais e, por isto, têm um alto conteúdo de colágeno que lhes conferem resistência. Já as carnes de primeira provêm de músculos relativamente grandes e individualizados, situados nas regiões do dorso, da pelve e da coxa, que são pouco solicitados e, em geral, têm um teor de colágeno bem menor. Assim, na carne de primeira a maciez ou dureza depende mais das células musculares, enquanto na de segunda depende mais do colágeno.
O que fazer, então, se o objetivo é agregar valor à carne de segunda? A resposta talvez seja deixar o mercado seguir seu curso normal, porque a tendência de aumento das vendas em auto-serviços e as inovações nas técnicas de exposição das porções individuais ou familiares, mais o fato de que os filhos já não estão aprendendo com os pais a comprar e preparar a carne, irão se encarregar, com o passar do tempo, de extinguir a diferenciação entre “primeira” e “segunda”.
Mas é possível acelerar um pouco o processo, incentivando melhorias na apresentação e na exposição das porções pré-embaladas, segundo uma estratificação por método de cozimento, como carne “para assar”, “para grelhar”, “para assado de panela”. Também divulgando receitas culinárias, tendo como ingrediente principal as carnes que demandam mais tempo de preparação. Este tema do método de cozimento é da maior importância para não provocar a ira do consumidor que leva para casa uma bandeja com vistosas fatias de acém ou lagarto e, não sabendo, nem tendo sido instruído a respeito, se põe a fritá-las em frigideira ou chapa pré-aquecida.
A modernização do mercado tende a acabar com as expressões carne de primeira e de segunda, mas os cortes continuarão servindo a diferentes finalidades culinárias, porque são estruturalmente diferentes, e isto não se pode mudar.
Conclusão
Tanto a chamada carne de primeira quanto a carne de segunda podem produzir excelentes pratos, macios e saborosos. Tudo se resume a conhecer a melhor forma de preparar cada corte, pois toda carne pode ficar macia quando corretamente preparada. O osso também não deve ser desprezado, pois é um ingrediente com excelentes propriedades culinárias e que pode acentuar o sabor dos pratos.
É muito mais comum encontrar-se receitas com filé mignon e alcatra, cortes de “primeira” preparados rapidamente com calor seco, ou seja, sem água, que ficam macios com facilidade produzindo ótimos bifes, assados e picadinhos. Muito mais baratos, os cortes dianteiros são ricos em colágeno, substância que dá firmeza às fibras, e por isso precisam ser cozidos em água ou vapor por mais tempo. Os cortes de “Segunda” são geralmente mais baratos que os de “primeira”, o que pode gerar uma economia significativa para o consumidor.
Resumindo: são oferecidos no mercado vários cortes de carne bovina que podem gerar deliciosos e saborosos pratos, afinal não é somente “bife” que pode ser preparado a partir de carne bovina. Não se deve desprezar todas as outras formas de preparo de carne, que privilegiam os tais cortes “de segunda”, como ensopados, cozidos, guisados, almôndegas, hambúrgueres, quando na verdade o que existe – e muito – é cozinheiro de segunda, na mão do qual toda carne acaba resultando em um prato inferior. Basta conhecer-se a vocação de cada corte e prepará-lo de acordo.
Enfim: se você puder lembrar apenas de uma coisa após a leitura deste texto, que seja: “quando preparada adequadamente, a carne de segunda produz um cardápio de primeira!”