Por Pedro Eduardo de Felício – FEA/UNICAMP
Você conhece charque? E carne-de-sol?
Tanto o charque quanto a carne-de-sol são produtos típicos nacionais preparados com carne bovina submetida a dois processos: salga e secagem. O alimento passa a ter maior durabilidade sem a necessidade de refrigeração, diferentemente da carne fresca que deve ser refrigerada ou congelada até o preparo para consumo.
Qual a diferença entre charque e carne-de-sol? Como são feitos?
Para se fabricar a carne-de-sol, submete-se a carne bovina a um leve processo de desidratação e salga, obtendo-se um produto com características muito semelhantes à carne fresca que dura até 72-96 horas em temperatura ambiente. A carne-de-sol é bastante consumida na região nordeste do Brasil, onde se utiliza tanto carne bovina quanto caprina. Apesar do nome “carne-de-sol”, ela é raramente exposta ao sol no processo de desidratação; ao contrário ela é deixada em locais cobertos e bem ventilados, permitindo uma secagem gradual e controlada. Portanto o antigo nome “carne-de-vento” expressaria melhor o processo pelo qual a carne-de-sol é preparada. A carne de sol é feita a partir de cortes de toda a carcaça bovina, tendo umidade de 64-70% e teor de sal de 5-6%.
Nas mesmas condições, o charque tem processo de secagem e salga mais intensos, aumentando seu tempo de prateleira para até 3 ou 4 meses em temperatura ambiente e acentuando sabor e odor característicos. Os cortes têm tamanho uniforme e a carne segue os processos de salga úmida, salga seca, lavagem, secagem (que pode ser com exposição ao sol ou em estufa) e empacotamento. O charque é geralmente preparado de cortes do traseiro bovino e tem teor de umidade de 44-45% e de sal 12-15%.
E nas diversas regiões do Brasil, o nome é o mesmo?
O charque e a carne-seca são amplamente consumidos no Brasil e têm nomes diferentes conforme a região. Alguns dos nomes são:
CHARQUE: carne-seca; carne-do-sertão; xergão; tasajo, chalona, charqui, xarque, jabá.
CARNE-DE-SOL: carne-de-sertão, carne serenada, carne-de-viagem, carne-de-paçoca, carne-mole, cacina ou carne acacinado.
A salga e secagem são as únicas formas de conservação de carne?
Não. Além de salga e secagem, outras formas de conservação de produtos cárneos incluem o uso de conservantes como os nitratos e nitritos na chamada cura seca, cujo exemplo é o presunto cru, ou em combinação com uma fermentação lática, como nos salames, ou ainda com o cozimento, que resulta nos embutidos curados como as salsichas; há ainda a defumação geralmente associada ao cozimento, como no bacon, presunto natalino ou tender e uma variedade de embutidos defumados, e a esterilização de conservas enlatadas como o corned beef, que é uma carne picada, pré-cozida, curada com nitrito, enlatada e esterilizada.
Você sabia que o charque faz parte da história do Brasil?
O charque tem um papel muito importante na história e economia brasileiras, viabilizando a expansão da criação de gado e a fixação de habitantes em zonas rurais. Não é difícil imaginar que há até algumas décadas atrás não havia eletricidade em grande parte do país, particularmente nas zonas rurais, tornando o charque uma deliciosa opção de preservação de carne para quem não dispunha de geladeira. Além do que as famosas “charqueadas” do sul do Brasil no século 18 trouxeram desenvolvimento e riqueza para a região sul do estado do Rio Grande do Sul.
Hoje o charque ainda é bastante consumido, por ser uma carne muito saborosa e com excelentes aplicações culinárias. O charque permanece uma excelente opção para os consumidores que vivem em locais de difícil acesso ou com condições de transporte e refrigeração mais precárias, além de ser um bom produto de exportação para o Brasil.
CHARQUE
Um produto típico nacional que deveria receber mais atenção
O processo de salga e secagem ao sol é utilizado para preservar carnes desde o início da civilização. Há indícios de que essa técnica de conservação tenha surgido no antigo Egito, entre 4 e 5 mil anos atrás, quando começavam a ser desenvolvidos o transporte sobre rodas, as primeiras cidades e um escrita primitiva.
Na América do Sul, antes da chegada dos espanhóis, os incas, nos altiplanos andinos a mais de 4 mil metros de altitude, elaboravam um produto dessecado com carne de lhamas cortada em tiras, denominado charque. É provável que a técnica dos incas tenha chegado às regiões Nordeste e Sul do Brasil, por duas rotas distintas a partir de Cuzco: ao longo do rio Amazonas, e pela cordilheira dos Andes. Mas foi no século 18 que a produção de charque destinado a alimentar os escravos concentrados em torno da cultura da cana-de-açúcar, no litoral, e da mineração, no interior do país, deslanchou, primeiro no Rio Grande do Sul, e depois no Ceará.
As antigas charqueadas brasileiras – de triste memória devido à crueldade na matança do gado, falta de higiene, poluição ambiental e brutal exploração da mão-de-obra sazonal – multiplicaram-se até a metade do século 20, quando começaram a ser substituídas por matadouros-frigoríficos que continuaram fabricando charque, agora em condições higiênico-sanitárias adequadas. Surgia, assim, uma indústria nacional de carne bovina inspirada no modelo das multinacionais Anglo, Armour, Swift e Wilson, que aqui se estabeleceram na época da I Grande Guerra.
Atualmente, em várias partes do mundo, ainda são encontrados diversos produtos cárneos salgados e dessecados muito apreciados nas suas regiões de origem. Esses produtos constituem uma categoria à parte porque são feitos com matéria prima cortada em mantas ou em tiras, e têm como único ingrediente não cárneo, o sal, embora alguns sejam condimentados. No Brasil predominou o charque, que teve um papel importante na história econômica do país, viabilizando a expansão da atividade pecuária, antes do uso generalizado da refrigeração comercial e doméstica.
O charque, vulgarmente conhecido como carne-seca, sempre presente na culinária popular, em pratos tão apreciados como a feijoada e o arroz de carreteiro, vem conquistando ultimamente as cozinhas dos melhores restaurantes do país. Uma matéria recente do “Jornal do Brasil” (03/11/01) menciona alguns dos bons restaurantes do Rio de Janeiro, nos quais cresce rapidamente a saída de pratos como o risoto de charque desfiado, acompanhado de purê de abóbora e mandioca frita.
Na última estatística oficial, referente a 1986, constata-se que o charque foi o produto cárneo com maior volume de produção, 117 mil toneladas, a maior parte (71%) fabricada no estado de São Paulo. A evolução da produção daí em diante é desconhecida porque, lamentavelmente, o Ministério da Agricultura deixou de publicar o Anuário Estatístico do Serviço de Inspeção Federal.
Considerando-se a importância desse produto tipicamente nacional que chegou a ser exportado para uns poucos países em pequenos volumes, seria interessante promover alguma prospecção de mercado externo, aproveitando-se da crescente demanda por alimentos étnicos e das colônias brasileiras em países como o Japão e os Estados Unidos.
O charque é o produto cárneo ideal para ser exportado, pois é concentrado (45% de umidade), tem uma ampla vida-de-prateleira à temperatura ambiente, e agrega valor à carne de dianteiro e ponta-de-agulha de bois e vacas.
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Pedro Eduardo de Felício é membro do comitê técnico do SIC – Serviço de Informação da Carne.