O Brasil tem mais bois do que pessoas. Pela pesquisa pecuária realizada pelo IBGE em 2021, são 224,6 milhões de cabeças de gado para 207,7 milhões de habitantes. Daí que uma conversa com o especialista em carnes Marcelo Vaz Shimbo pode ter interesse até para vegetarianos, veganos e afins. A experiência e o conhecimento que ele acumulou em 20 anos de atuação nesse mercado o habilitam para falar sobre o absurdo que é desmatar mais para produzir mais, sobre a diminuição do consumo de carne no mundo e a cultura de um país que produz baixa qualidade para produzir em escala.
“Eu sempre quis fazer coisas diferentes na produção de gado […] Eu era o cara que queria inventar alguma coisa diferente no agronegócio”, lembra. Até virar empreendedor, ele visitou inúmeras fazendas, estagiou no Brasil e mundo afora e foi executivo da JBS, onde criou uma divisão de carnes premium, a Swift Black.
Shimbo é paulistano, formado em zootecnia pela Universidade de São Paulo (campus de Pirassununga), e sua empresa de carnes premium, a Prime Cater, que completa dez anos neste mês, tem 210 funcionários e faturou R$ 140 milhões no ano passado. Seu trabalho é mais conhecido pela marca Empório 481, que comercializa os cortes já embalados para mais de 2.500 estabelecimentos somando restaurantes e mercados em todo o país, especialmente São Paulo e Rio.
O Empório 481 tem também um canal direto com o consumidor através de três butiques próprias (São Paulo, Brasília e Curitiba) e de um e-commerce. Todos os cortes são preparados no frigorífico da Prime Cater, em Louveira (SP), e adquiridos de 25 produtores, de sete países além do Brasil: Argentina, Chile, Austrália, Estados Unidos, Japão, Nova Zelândia e Uruguai.
A gente não precisa de um volume grande de carne, como pensava no passado. Esse também é um processo de evolução no universo da carne aqui do Brasil”
Nada mais adequado para um “À Mesa com o Valor” com Shimbo do que experimentar suas carnes, preparadas da maneira adequada. O almoço acontece na Fazenda Churrascada, um restaurante que ocupa o espaço da histórica Casa da Fazenda do Morumbi, um latifúndio do século XIX, tombado como patrimônio histórico de São Paulo. O restaurante é um de seus parceiros e ali mantém uma butique do Empório 481, onde um açougueiro prepara determinados cortes na hora e dá explicações aos clientes do restaurante que querem mais informações sobre a carne que vão comer. As carnes estão embaladas em pequenas porções e separadas entre resfriadas e congeladas.
O restaurante é grande, tem 350 lugares divididos em vários ambientes, e escolhemos uma mesa próxima à butique. Shimbo está de tênis, veste camiseta, jeans e um casaco de náilon com capuz que tem um discreto logotipo da empresa. Foi ele que preparou o cardápio, que começa com uma iguaria. Um corte finíssimo de Wagyu, importado do Japão, onde recebeu a classificação de A5, a mais alta que há em termos de qualidade.
A carne é fatiada numa máquina, ainda congelada, e é levemente maçaricada no prato, quando servida, já na mesa. É uma espécie de carpaccio, que pode ser temperado na hora com shoyu. Esse modo de preparo ele aprendeu no Japão e faz parte de sua estratégia de trazer não apenas cortes diferentes para o brasileiro, mas culturas diversas de consumo.
“Eu sempre quis fazer coisas diferentes na produção de gado”, diz Marcelo Shimbo, que é formado em zootecnia pela USP
“É um corte muito nobre, talvez um dos mais caros e valorizados do mundo, não é para comer um bifão. Viajando pelo Japão e fazendo essa imersão, vi que eles comiam assim para otimizar. A carne fica enrolada quando sai da fatiadora e o maçarico só derrete um pouquinho da gordura para dar esse sabor defumado.” A classificação A5 representa menos de 1% de toda a carne produzida no Japão. No 481, o preço de um wagyu A5 varia de R$ 1.290 por quilo do steak de chorizo a R$ 2.800 por quilo da ponta da picanha.
Uma das premissas de Shimbo é a de que se coma menos carne e se coma melhor. Claro que isso tem um custo e seu negócio é de nicho, para um público de alto poder aquisitivo. Mas há na seleção das carnes e dos cortes uma preocupação em eliminar o desperdício. “A gente não precisa de um volume grande de carne, como pensava no passado, e ia em grandes rodízios, onde comia um quilo de carne. Esse também é um processo de evolução no universo da carne aqui do Brasil.”
Não há números exatos, mas numa churrascaria rodízio o calculo é de um quilo de carne por pessoa. A quantia não se refere ao que é consumido, mas à previsão do que é necessário disponibilizar por cliente contando o desperdício, a carne que não agrada e a que esfria no prato. É nessa análise que ele situa a mudança de consumo do rodízio para a steak house, embora ainda existam muitos rodízios.
“No rodízio você comia um pedacinho de várias, não gostava de algumas, mas o volume era tanto que saía satisfeito. Na steak house há um prato só, o que obriga o restaurante a trabalhar com carne de melhor qualidade. E, agora, a evolução nos leva para este modelo de compartilhar, como estamos fazendo aqui, que continua a ser uma steak house, na qual duas, três ou mais pessoas pedem vários pratos e têm a oportunidade de experimentar coisas diferentes.” Na mesa há quatro pessoas: o almoço é acompanhado pelo seu diretor de marketing e pela assessora de comunicação.
Filho de mãe portuguesa e de pai de linhagem japonesa, Shimbo acredita ter adquirido na origem duas grandes influências, que lhe ensinaram o trabalho duro e a disciplina. “Cresci numa família supersimples, de feirantes, de imigrantes que vieram para o Brasil para fazer a vida acontecer. Meu avô era japonês e tenho esse lado da paciência, da atenção aos detalhes.”
Os pais tinham barracas de frutas e de legumes e sempre houve fartura de alimentos em casa. “A gente tinha essa coisa da qualidade e da gastronomia. Quando moleque eu tinha uma minichurrasqueira, punha três ou quatro pedras de carvão e fazia meu próprio bifinho. Os portugueses comem muita carne: suíno, coelho, fui acostumado assim. E sempre fui apaixonado por animais: era o paulistano que gostava de animais, do campo, e que vivia dentro de São Paulo.”
“Entendo o pensamento do pecuarista, o que ele valoriza de verdade, o que quer”, diz Shimbo — Foto: Carol Carquejeiro/Valor
Na época, zootecnia era um curso novo, que durante alguns anos havia sido uma disciplina da veterinária. Ao descobri-lo, primeiro pensou fazer piscicultura. Foi na faculdade que se encantou com o universo bovino e passou a direcionar seu conhecimento, especialmente, para a produção de carne.
O Brasil é o segundo maior produtor de carne no mundo, logo atrás dos Estados Unidos, e o terceiro maior consumidor, precedido pela Argentina e pelos EUA. O consumo de carne bovina, porém, está diminuindo. De 2010 para cá, houve uma redução de cerca de 30% no consumo per capita no Brasil. “A vocação natural do Brasil sempre foi produzir grandes volumes a baixo custo, nunca para produzir carnes de qualidade”, diz.
Trinta e oito por cento da pecuária brasileira está concentrada no Centro-Oeste. Trata-se de um modo de produção extensivo, que ocupa grandes áreas de terra desmatadas, com um gado de raças zebuínas, a maioria nelore, proveniente da Índia, um gado mais rústico e que necessita de poucos cuidados. “Essa combinação com um tipo de capim vindo da África, chamado braquiária, fez o Brasil ser um grande produtor de carne, e caracteriza hoje o cenário da pecuária. A carne é tratada como commodity e o pecuarista faz com que o boi seja mais produtivo, mais barato, mais lucrativo, e meio que empurra isso para o frigorífico”, explica.
Diferentemente da Argentina, diz, que produz uma carne de melhor qualidade e busca nichos que pagam melhor. É por isso que os maiores compradores do Brasil são Rússia, Irã, Egito, “exceto agora que há uma onda muito forte da China”, países que são menos exigentes, pois precisam de grandes volumes para abastecer a população. Ele faz uma comparação com a experiência que teve na Austrália, onde viveu entre 2001 e 2002 trabalhando em fazendas.
“Lembro que você perguntava para um pecuarista no Brasil o que ele fazia e ele respondia: crio boi da raça tal. Quando você pergunta pra um pecuarista da Austrália o que ele faz, ele diz: produzo carne para o mercado do Japão, pra Coreia do Sul [] Ele tem uma visão de mercado, uma conexão com o consumidor, sabe o que está fazendo, pra quem, e direciona melhor a produção. O que torna a vida dele muito mais fácil, porque mais fácil é vender alguma coisa para alguém que queira consumir.”
Por ser muito competitivo em preço, o Brasil tem uma baixa preocupação com o consumidor, diz. “Porque a gente sabe que vai empurrar isso para alguém e consegue achar sempre um país ou um player que está disposto a pagar custo baixo”, acrescenta.
Antes de criar a Swift Black na JBS (onde ficou do início de 2010 ao fim de 2012), Shimbo havia tido um aprendizado importante com carnes premium, em 2007, quando ajudou a trazer para o Brasil a carne sul-africana do gado Bonsmara, conhecida por sua alta qualidade. “Foi a primeira raça criada pela ciência e tive contato com ela enquanto trabalhava na Austrália. Hoje é uma loucura, você carrega uma fazenda inteira num bujãozinho de nitrogênio líquido, porque o embrião é microscópico e você só precisa dele para colocar numa vaca que funciona como barriga de aluguel para daqui uns anos ter um rebanho.”
O negócio da Bonsmara não deu certo por questões de sociedade, mas aí ficou mais claro para ele que seu interesse era atuar no mercado premium. Já sabia que para o consumidor brasileiro comprar carne bovina é uma compra de alto risco. “Ele tem medo de errar, porque um dia está boa, outro não. No restaurante, acontecia o mesmo, e essa era a realidade no ano 2000.”
Outra coisa que o motivou foi a conclusão de uma pesquisa que mostrava que o consumidor estava disposto a pagar mais se não tivesse risco de errar. Assim, ao sair da JBS, apostou suas fichas na Prime Cater, onde trabalha apenas com raças de gado britânico, que garantem maciez da carne e que no Brasil estão concentradas, principalmente, no sul do país.
No início da empresa tinha um sócio, depois ficou sozinho e, recentemente, em 2020, teve um aporte da Baraúna Investimentos, fundo de private equity. A porcentagem, não revela. Diz apenas que continua como controlador da companhia. “O primeiro sócio era muito financeiro e queria seguir uma linha de expansão. Um dos grandes motivos para a gente ter escolhido a Baraúna foi o fato deles terem um pensamento de longo prazo. Acho que não estaríamos nesta mesa conversando se isso não tivesse acontecido. Talvez a gente continuasse menorzinho no nosso cantinho.”
Ao comentar o que mudou, explica que a empresa era muito centralizada na sua pessoa. “Eu tinha que ir ao Uruguai comprar carne, vir aqui atender o cliente, pensar na campanha de marketing, desenvolver o corte da carne [] Passei a delegar e aprendi muita coisa. A Baraúna trouxe um aporte importante de conhecimento, de gestão, de governança, de como selecionar pessoas, de que tipo de pessoas a gente precisa trazer.”
As carnes chegam à mesa fatiadas numa tábua que é colocada no centro. Durante o almoço ele apresenta três cortes: denver, que aprendeu nos Estados Unidos; fralda, uma fraldinha com a melhor parte e sem gordura; e o steak 481. Os acompanhamentos são variados: beterraba assada na brasa com creme azedo, salada Juliana, farofa da granja, batata doce assada e arroz biro-biro.
“Viajei todos os países com os quais a gente tem acordos comerciais para entender como é a cultura desse país. Fiquei vendo fazendas no Uruguai, na Austrália, nos Estados Unidos, vou em frigoríficos e steak houses pra entender como esses caras preparam a carne, né? Como cortam as carnes, que cortes fazem e o que o consumidor gosta de comer lá.”
Ele conta, então, uma curiosidade. A picanha, corte historicamente muito valorizado pelo brasileiro, nem era conhecida pelos argentinos e americanos até há poucos anos. “Lembro que não valia nada. Acho que nas primeiras importações de picanha, valia, sei lá, um dólar o quilo. Era o mesmo preço da carne que eles vendiam pra produção de hambúrguer. O mais doído é que tiravam aquela capa de gordura inteira pra vender pra carne de panela, de hambúrguer, de qualquer coisa assim. Com o processo de globalização da gastronomia alguém mostrou um dia pro pessoal como se comia.”
Nessa época, conta, 100% da picanha do mundo vinha para o Brasil. “A JBS chegava a importar 500 toneladas todo o mês, 500 mil quilos! Vinha picanha da Argentina, do Uruguai, da Austrália, dos Estados Unidos, porque o Brasil pagava muito mais do que qualquer outra indústria. Então, acho que alguém começou a se perguntar: mano, por que esses caras comem tanta picanha? Aí começaram a vir aqui e viram como é que a gente preparava, aprenderam e hoje se você for nos Estados Unidos, na Europa já tem steak de picanha […] Nós exportamos know-how e começou a ficar caro.”
A 481 comercializa 650 itens e o que vende mais são os cortes de churrasco clássicos: ancho, chorizo, fralda e picanha. Nesses 20 anos ele acompanhou a evolução do paladar do brasileiro e explica que a histórica predileção pelo filé-mignon é fruto de uma produção de carne mais dura e de menor qualidade, na qual o filé-mignon era a parte mais macia.
Com o aumento do vegetarianismo, diz ter ficado apreensivo apenas no início, quando hamburguerias introduziram opções vegetarianas. Mas ficou surpreso, logo em seguida, porque passou a vender mais à medida que o lugar se tornou mais inclusivo e atraiu mais clientela. Já com relação ao desmatamento, afirma que o Brasil tem capacidade, se fosse necessário, de aumentar, duplicar ou triplicar a produção de carne com zero desmatamento. “A gente já tem as áreas e quando você faz alguns processos de integração entre lavoura e pecuária, torna esse mesmo espaço muito mais produtivo com rotação das culturas. É só um processo de ajustar as técnicas que a gente tem.”
A partir deste ano ele pretende lançar vários microlotes, nome que dá a cortes excepcionais, de um pecuarista específico, de uma região específica. “Vou buscar o que de melhor aquele produtor faz e contar porque ele faz aquilo.” O microlote vai custar em média de 40% a 50% mais.
Diante da mesa, avista-se a fachada da loja, onde há fotos de três personagens: o criador, o açougueiro e o assador. O quarto personagem tem um espelho em vez de rosto: é o “meat lover”. Muita gente vai ali, se olha no espelho e tira uma selfie. Shimbo se considera um pouco de todos. “Sou o cara que faz todo mundo conversar e, talvez, eu seja um pouquinho de cada um. Definitivamente sou um ‘meat lover’, também sou um assador, não sou profissional nisso, mas sei fazer coisas do açougueiro também. Nas horas vagas faço meu corte e sou assador.”
No fim, resume seu papel ao de um interlocutor entre todos. “Na Austrália trabalhei numa fazenda onde a cidade mais próxima tinha 26 habitantes. Tive a chance de ver diferentes raças de gado serem produzidas em diferentes condições no Brasil inteiro. Culturalmente o pecuarista do Pará é diferente do Rio Grande do Sul. Vi diferentes culturas do pecuarista, diferentes raças de gado, diferentes pastagens, sistemas de alimentação, o que me deu uma visão muito ampla de como é essa cadeia de produção de gado.”
É por isso que ele olha um boi no pasto e já sabe a quem vender e como vender. “Entendo o pensamento do pecuarista, o que ele valoriza de verdade, o que quer e quais são suas dores.” Seu sonho de criar gado, por enquanto, está projetado para o futuro. “Não sou criador ainda porque demanda um pouquinho mais de investimentos.” Dá uma risada: “Ah, eu adoraria, sou apaixonado, nasci profissionalmente na fazenda, né? Tenho vontade de criar gado, mas não de forma intensiva. De fazer apenas microlotes. Coisas pequenas, muito específicas e muito bem-feitas. Um dia chego lá”.
Fonte: Valor Econômico.
4 Comments
Perfeito.
acompanha mercado
Sou supervisor de açougues aqui em Salvador e é um assunto q tenho muito interesse.
Vejo que manipulação do mercado de proteína
Deixo o maior país que consumidor de carnes que é o Brasil sem condições de poder consumir por manter os preços altos, no passado as pessoas andavam no fds sentia o cheiro de carne assadas nos bairros, hoje as pessoas senti o espetando de gato nas esquinas,isso é triste estão perdendo o maior mercado do mundo que é o Brasil.