Por Octavio Mello Alvarenga1
Quem viu, ouviu e leu o que resultou da eleição de Lula; quem olhava a televisão no momento em que os óculos de Fernando Henrique desabaram, (e perguntou-se, em murmúrio psicanalítico, o que significou aquilo), quem ouviu o discurso de chefe de Estado do presidente eleito, quem se assustou quando aquele professor paulista burlou a vigilância e se atracou com seu ídolo – quem, afinal, deixou escapar uma furtiva lágrima, acompanhando a seqüência de emoções daquele dia, agora deverá preparar-se para outros tipos de emoções, no andar da carruagem.
Virão agora as decorrências das promessas de campanha, na execução dos programas ministeriais. Chegarão à tona, dentro de algum ou pouco tempo, as suspeitas, as desconfianças, os fatores negativos que Lula e sua equipe terão de enfrentar, a fim de manter sempre viva a flama da Esperança.
São dois os mais evidentes pontos que atraem a atenção popular, emergindo do programa de governo e da atitude política de Lula: o combate à fome e a segurança do Presidente – diremos destemor – na órbita internacional.
O programa específico de ações anti-fome, que tem início com uma viagem coletiva ao nordeste, corre o risco imediato da superposição de atribuições administrativas. Se fome significa falta de comida e alimento depende da agricultura, entende-se, em linha reta e desde o primeiro minuto, que a base de ações se apoiará no ministério comandado por Roberto Rodrigues. Em termos de logística do agronegócio, a seguir virão as facilidades para obter alimento, porém nenhuma delas se sobrepõe ao salário, suficiente para comprar o pão nosso de cada dia.
Claro que o assunto imbrica em políticas regionais, o que irá tocar em outros ministérios muito dependentes das possibilidades do Tesouro.
Passaram-se somente algumas horas da posse de Lula e já sentimos o retorno do equívoco “manalino” (pedir o maná que vem do céu) numa entrevista mal-preparada de um dos vinte e nove ministros de Estado. Colocar a esmola na base de um programa contra a fome significa retornar à primeira – e emocional fase de Betinho, quando Olacyr de Moraes ainda era o “rei da soja”.
É verdade que a Organização das Cooperativas, juntando-se ao Ministro Roberto Rodrigues ampliou seu programa de doações de maneira gigantesca. Um passo sério, louvável, mas que não altera a distribuição de renda. Como bem observou o historiador mineiro José Murilo de Carvalho, “dar dinheiro para distribuir comida, todo mundo dá. Mas, em se tratando de medidas destinadas a distribuir renda, não acredito que alguém esteja disposto a ceder espontaneamente”.
Iniciemos nossa agrilulagem pelo programa “fome zero”, recordando que Getulio Vargas deu ênfase à alimentação apoiando o Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico, elaborado por Horácio Lafer, que visava, inclusive “maior produção agrícola”. Mais recentemente, na transição de Jango para Castelo Branco, o Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) editou um enorme volume com letras vermelhas na capa amarela, onde dizia “Reforma Agrária”, cuja introdução inicia-se assim: “As reformas agrárias surgem no mundo de hoje como uma resposta à fome”.
A expressão “reforma agrária”, citada por Lula e alguns de seus ministros, pode ampliar a irritabilidade dos responsáveis pelo agronegócio. São contundentes os resultados do projeto “Conhecer – Para Representar Melhor”, promovido pela Confederação Nacional de Agricultura, de que resultou uma plaquete, editada em dezembro passado, cujos dados foram sintetizados no último boletim da CNA, sob o sintomático título “a confiança é o principal insumo da agropecuária”. Em suma, foram feitas 15.579 consultas a produtores cadastrados, após debate realizado em parceria com o Canal Rural/RBS e já depois da eleição de Lula. Os temas foram crédito rural, tributação dos alimentos, reforma agrários (e direito de propriedade), subsídios agrícola e meio ambiente.
74% dos produtores acham que o Presidente Lula desconhece os problemas rurais; 85% estão intranqüilos com a eleição; 80% duvidam que o atual Governo seja capaz de promover ampla reforma tributária, capaz de desonerar a produção primária.
Ocorreu também, uma divergência singular. Enquanto 74% duvidam que haja aumento de recursos creditícios para a “agricultura comercial”, 71% acreditam que o Governo irá direcionar recursos para a “agricultura familiar”, em detrimento do agronegócio.
Por baixo das mesas de negociações, e possivelmente por cima daquela onde está sentado o ministro da Política Agrária, falta alguma coisa: a concepção de justiça agrária, tanto por parâmetros econômicos quanto jurídicos. Ambos permeiam os alicerces de uma nova ciência criada por um Ato Constitucional que também abriu caminho para a promulgação do “Estatuto da Terra”, ao qual muito se deve ao recém-falecido ministro Nascimento e Silva: o Direito Agrário. Novidade em 1964, ele foi sendo criminosamente deixado de lado, enquanto a larva do anti-reformismo ia devorando as folhas tenras da melhor obra de Castelo Branco.
Num país que credencia 37% dos empregos e 25% do valor da produção nacional à agricultura, o estudo dos princípios básicos da ciência jurídica que orientam a vida agrária do País, são solenemente ignorados nos cursos jurídicos. O Direito Agrário é “matéria opcional”, num país “essencialmente agrário”!
Como pretender uma “política agrária”, sem o correspondente “direito agrário”? Tanto os responsáveis pelos superávites de nossa balança comercial, quanto os vigilantes do MST sentem e pressentem vários tipos de injustiça.
Diz o ministro Miguel Rosseto, que reforma agrária não é problema, é solução. Bom sinal. Certamente irá predicar disciplinas obrigatórias de Direito Agrário, e devolver para o Ministério da Agricultura o programa da agricultura familiar. A esperança agrarista, à mingua por inanição, há muito está passando fome.
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1Octavio Mello Alvarenga é presidente da Sociedade Nacional de Agricultura.