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Como ultrapassar o falso dilema produção versus comercialização?

Por Francisco Vila1

No debate sobre um novo posicionamento dos produtores na cadeia da carne, a troca de opiniões tem focado, talvez de forma um pouco exagerada, no bipolarismo ´produção´ ou ´comercialização´. Como na maioria das coisas da vida, também na pecuária me parece ser mais saudável concentrar na complementaridade e não nos antagonismos entre estas duas funções de um mesmo processo. Ou seja, prefiro ver a temática ser abordada mais no sentido de ´produção E comercialização´ e menos na visão limitada de ´produção OU comercialização´.

Para aumentar a confusão vou introduzir ainda um outro binômio que tem torturado alguns setores que hoje já se encontram num estado mais avançado de maturidade de seus respectivos ´ciclos de negócio´. Trata-se do CRM versus o SCM.

Acabo de ler um livro interessantíssimo de Thomas Friedman com o título ´The World is flat´ (O mundo é plano). O autor, comentarista da New York Times, volta às origens pré-Galileu e afirma que o mundo não é redondo, mas sim plano. O que isto mostra é que a ´quebra de paradigmas´ é a moda da vez. Claro que ele não se refere ao nosso velho globo terrestre em sua configuração física. O mundo se tornou ´flat´ através da globalização que derruba espaços, tempo, culturas e até os preços da arroba. Os exportadores de carne do Rio Grande do Sul sentiram isso na pele quando foram impedidos de embarcar seu produto seguro e de alta qualidade devido a um foco de febre aftosa no outro extremo do mapa do Brasil.

Seguindo este exemplo de ´heresia criativa´ pretendo atacar o modismo do CRM que se instalou recentemente na discussão sobre a salvação da pecuária. Customer Relation Management pretende desviar o foco do primado técnico da produção para concentrar a atenção do pecuarista no relacionamento com o cliente como principal fonte de lucro e de sustentabilidade. Tudo bem.

Mas se for assim, teremos que definir: “Quem é o nosso cliente?” E vamos ver que, com as raras exceções de produtos que vão diretamente da fazenda para o prato do consumidor, como leite da fazenda, ovos e frango caipira, mel do campo, etc. O nosso cliente é o frigorífico. Ele que se entenda com o consumidor! E não nós, pois nós não conhecemos aquela senhora que compra apenas uma parte do nosso boi transformado em produto cortado e empacotado pelo frigorífico conforme segmento de classe de consumidor e conforme destino nacional ou internacional.

Ampliando um pouco o conceito de adicionar valor ao Boi (e não ao ´Beef´), abordado na carta do Mario Tavares de Moura, e pegando carona de algumas observações do eng. Fernando Penteado Cardoso, vou introduzir a segunda sigla. Trata-se do Supply Chain Management [SCM].

Esta orientação me parece muito mais relevante para uma distribuição mais eqüitativa de lucros ao longo da cadeia de valor da carne do que a preocupação com a preferência do consumidor [o CRM] por parte do fazendeiro de gado. O produtor deve produzir a matéria prima (o que já não é fácil) e o manufaturador deve comercializar o produto devidamente confeccionado. Cada um no seu galho. Algumas das dúvidas levantadas sobre a viabilidade e a eficiência das Novas Cooperativas [CNGs] são testemunhas desta ótica de deixar a especialidade para o especialista.

A Gestão da Cadeia de Valor [SCM] assenta-se no seguinte raciocínio da dinâmica e da interdependência do processo de transformação de matérias primas em produtos finais: cada elo da cadeia continua a focar em suas competências natas. Produzir adubo é um processo industrial. Produzir carne é um processo artesanal altamente sofisticado e padronizado. Transformar um animal em bife, novamente, é um processo industrial. Transportar insumos, animais, containers ou caixas de carne confeccionada para a gôndola é um processo de prestação de serviços. E, por final, a distribuição e comercialização do produto acabado é um outro tipo de atividade de serviços que requer uma cultura de relacionamento com o cliente que não tem nada a ver com a prática de venda de adubo, nem com os procedimentos de negociação do boi gordo com os frigoríficos da região.

Ou seja, ao longo da meia dúzia dos elos da cadeia produtiva da carne co-existem interesses, competências, práticas, bem como forças e culturas negociais bem distintos que precisam ser respeitados, pois eles são legítimos.

O valor do produto carne, incorporado no bife que se encontra no prato do consumidor, é fruto de um esforço coletivo e seqüencial. Em cada etapa cria-se um valor específico que é acrescentado ao valor acumulado nas fases anteriores. Assim, o preço final do bife paga todos os envolvidos nesta seqüência. O que se observa, no entanto, é que, enquanto os elos que compõem a cadeia até o momento da saída da porteira da fazenda suportam em torno de dois terços do custo final do produto, eles apenas conseguem ficar com um terço do lucro gerado ao longo do processo até o consumidor final. Em outras palavras, aqueles que desde o frigorífico até o varejista contribuem com um terço dos custos se apropriam de dois terços dos frutos do trabalho de todos.

Como, então, batalhar por uma distribuição mais equilibrada do lucro do processo? Parece pouco eficiente xingar os outros, pois na economia de mercado a ´divisão da caça´ e feita como antigamente, o mais forte leva o pedaço melhor. O diálogo democratizante também não leva muito longe, pois, enquanto houver dois seres humanos nesta terra, um levará vantagem sobre o outro. Faz parte!

Uma abordagem mais construtiva e comprovadamente mais eficiente é seguir uma estratégia dupla: (1) aumentar a transparência do processo e (2) juntar-se como ´parceiros antagônicos´ em vez de tentar combater o outro, onde normalmente ganha o mais forte em função de seu poder de barganha intrínseco devido à melhor organização ou concentração de forças mercadológicas. O primeiro passo é sempre entender e respeitar o adversário. Depois tenta-se uma convivência construtiva sem pretensões falsas de ´paz e amor´.

Com esta disposição de ´construir pontes´ vamos poder ultrapassar também os antagonismos artificiais entre ´produção´ e ´comercialização´, bem como entre a ´orientação no consumidor [CRM]´ e a ´orientação na cadeia de valor [SCM]´. A novidade é a constituição de mecanismos efetivos de comunicação e de cooperação entre os diversos elos da cadeia onde cada um participa com sua especialidade, no entanto com uma abordagem sistêmica.

Através deste mecanismo podemos, ainda, resolver a aparente contradição entre a afirmação de que ´o produtor de gado deve orientar-se nas preferências do comprador final´ (errada) e a colocação de que ´este produtor não tem nada a ver com o consumidor, pois o cliente dele é o frigorífico´ e ele nem sabe para onde a para quem vai o seu boi fatiado em dezenas de produtos e subprodutos (certo).

Aqui entra a gestão integrada da cadeia de valor que Alexandre Zadra da Lagoa da Serra mencionou em sua carta de leitor de 19/07. O transporte de informações e conceitos ao longo da cadeia, no sentido de trás para frente, ou seja, do consumidor para o criador, deve ocorrer através da ´aliança entre iguais´.

Não é o pecuarista que tentará (em vão) furar a fila para entender-se diretamente com o consumidor e nem é o frigorífico que imporá sua força e esperteza de negociador privilegiado ao produtor ou ao comerciante. Serão todos eles, agrupados em novos mecanismos de diálogo, que, voltando à guerra das metáforas, poderiam ser chamados de ´inteligência do compromisso´ ou de ´processo criativo coletivo´ e que promoverão a reengenharia do modelo de negócio de toda a cadeia de valor ao longo dos próximos anos.

E na prática, como poderia funcionar isso, estando nós no país onde estamos e reconhecendo a tradição cultural do setor que é diferente da realidade australiana ou holandesa?

A primeira regra é a de evitar a dominância de um elo sobre os outros. Isto se consegue mediante a criação de alianças verticais com desenhos homogêneos de interesses e poder, os chamados ´arranjos coletivos temáticos´.

O que é isso? Quando nós juntamos o representante de associações de fabricantes de insumos com representantes das associações de criadores e produtores de gado, com representantes dos frigoríficos e a ABIEC e com representantes dos distribuidores e da associação dos supermercados colocamos todos ao mesmo nível (um homem, um voto) enquanto, na verdade, temos vários formatos distintos de ´cartéis´ nas áreas de insumos, dos frigoríficos e também das grandes cadeias de varejo, de um lado, e um grupo altamente pulverizado de produtores de gado, do outro.

Para evitar o empate natural no diálogo entre ´representantes´ convém aplicar os ensinamento da aerodinâmica dos monopostos da Fórmula 1 onde cada elemento do conjunto deve ser minuciosamente formatado em função da otimização do conjunto. Muda uma peça, muda o conjunto. A aerodinâmica, como sugere o termo, é a afinação dinâmica das forças que constituem o processo. E este processo deve ser construído partindo do produto em direção do insumo e não, como acontece tradicionalmente, do boi para o bife.

Quem manda no futuro é o bife e não o boi. O animal, afinal nem mais, também não menos do que mera matéria prima, vai ser ´desenhado´ para produzir um determinado produto final que varia conforme nicho de preferência, segmento de demanda e região geográfica e cultural de comercialização.

Isto chama para a cena os arquitetos do desenho do produto. São facilitadores do processo de entendimento entre a inteligência localizada ao longo da cadeia de produção. Como é evidente, estas pessoas ainda não existem, pois as suas funções ainda não são nem reconhecidas, nem definidas e ainda menos aceitas. Trata-se de um equivalente do ´projetista dos carros da Fórmula-1´. Eles não pertencem aos fornecedores dos motores, não obedecem às regras dos fabricantes dos pneus, não seguem a orientação de ninguém. O compromisso deles é com o resultado.

O que o Zadra esboça em sua carta é a tentativa de se criar um ´think tank´ com profissionais comprometidos num âmbito de ´players de mercado´ que constituem a massa crítica que nós podemos reconhecer nos exemplo da Cooperativa Nova de Missouri e que vai, aos poucos, empurrar o petroleiro pesado da pecuária nacional para águas mais fluidas e cenários de maior eqüidade de distribuição de ganhos ao longo da cadeia de produção de valor.

Tudo passa a ser mais veloz e novo. Novos players (que vão ocupar pastos altamente tecnificados), novas arenas de negócio (os chamados ´clusters´ ou agrupamentos estratégicos ao longo da cadeia de valor) e novos processos, procedimentos e hábitos impregnarão uma nova maneira de produzir carne. E o melhor, tudo isto já está em pleno andamento no País.

Difícil? Improvável? Não vai funcionar no Brasil? É só estudar os casos da transformação das ´carroças´ em ´carros globais´ e do salto de modernização da agricultura de precisão para chegar à conclusão de que pode demorar, mas vai chegar, sim.

E no domínio do boi, os ´modelos de negócio´ inovadores da Cooperocarne, da Frigoclass, da COROL e de algumas outras iniciativas isoladas, cada um com sua própria ´aerodinâmica´ de um ´mudo mais plano´, já prenunciam a costura de uma rede que, no futuro próximo, interligará as ´ilhas de excelência´ que brotam aqui e acolá na geografia da pecuária nacional para, quando chegarem a um maior nível de maturidade, dinamizar o setor como um todo.

Este Espaço Aberto serve como observatório privilegiado e é só esperar para ver!

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1Francisco Vila é economista e consultor

0 Comments

  1. Miguel Barbar disse:

    A matéria exposta pelo Francisco Vila é realmente correta, clara e objetiva no que concerne a explanação sobre a cadeia da carne.

    No entanto, ver sentados em uma mesma mesa representantes de Frigoríficos, Insumos, Redes Varejistas e Produtores traçando uma estratégia comum e repartindo equitativamente os lucros é algo tão difícil de imaginar (pelo menos até médio prazo) quanto o fato que o Presidente Lula não saber de nada do que se passava em Brasília.

    Leiam a matéria da hoje sobre fraude na certificação da carne feita por uma grande indústria frigorífica de atuação nacional.

    Infelizmente, na cadeia da carne, convivem setores altamente profissionais e outros que de amadores passam a ser infantis.

    Um abraço,

    Miguel Barbar

  2. Márcio Cotini disse:

    Você fez realmente um panorama de tudo que acontece e como acontece no setor produtivo da carne, parabéns.

    Também acredito em mudança para o setor, principalmente na comercialização do boi gordo.

    Já trabalhei dentro de frigorífico e hoje atuo comprando boi gordo, mas acho que cooperativismo é uma boa saída para classe.