Há um famoso discurso do presidente norte-americano Roosevelt, feito em 1921, que diz: “O mérito é do homem que está na arena, lutando, cansado, com o rosto sujo de suor, sangue e poeira. O valor é de quem está na briga, e não de quem está na platéia, apenas assistindo ou criticando”. Eu admiro muito esse discurso e me faz lembrar sempre que o mais importante é fazer, e não apenas falar.
Eu me lembrei exatamente dessa passagem na minha recente viagem ao estado de Rondônia para palestrar na cooperativa de produtores de carne bovina do estado, a Cooperocarne, que desde 2003 vem realizando feitos considerados impossíveis por muitos.
A Cooperocarne é uma cooperativa de produtores que nasceu, como sempre, de um problema sem solução. Por volta de 2003, a oferta de gado no estado de RO era muito maior do que a capacidade de abate dos frigoríficos. Com isso, o preço do boi gordo no estado era bem abaixo das regiões próximas, como o Mato Grosso.
O problema era tão grande, que as pastagens do estado começavam a se degradar com o aumento da carga animal, além da rentabilidade reduzida dos produtores. O ICMS para saída de gado em pé para outros estados também ajudava a inviabilizar o ajuste de mercado. Ou seja, os frigoríficos da região tinham a oportunidade de comprar a preços bem abaixo de outras regiões. Ótimo para quem comprava, péssimo para quem vendia.
A saída encontrada para esse problema foi construir um frigorífico. Isso mesmo, um grupo de produtores resolveu criar uma cooperativa e construir do zero um frigorífico. Um plano altamente improvável, que se mostrou mais difícil do que se imaginava. Foi muito mais demorado e complicado conseguir um financiamento no BNDES (que não saiu) e depois no BASA (apenas quando colocaram as fazendas de alguns produtores como garantia).
O frigorífico demorou, mas saiu. Começou a operar no segundo semestre de 2007. Entre 2003 e 2007, muitas outras empresas perceberam que havia uma “mina de ouro” em RO, ou seja, muito gado barato, e foram para lá construir, comprar e ampliar frigoríficos.
Nesse período pré-crise de 2008, muitos frigoríficos conseguiam vultuosos financiamentos de bancos privados, fundos de investimento, abertura de capital na bolsa (JBS, Marfrig e Minerva) e também do BNDES. Nesse período pré-crise, o mantra de muitas empresas em crescimento, não apenas dos frigoríficos brasileiros era: “cresça rápido”. Ou seja, naquele momento era mais importante ganhar participação de mercado do que ter rentabilidade.
Com menos de um ano de operação, o cenário mudou para o Cooperocarne. Não havia mais abundância de gado barato e a diferença de preço do boi gordo em RO com a carne no atacado de SP diminuiu muito.
Além disso, os frigoríficos viram como uma ameaça esse novo entrante no mercado – uma cooperativa de produtores – e faziam “ofertas irrecusáveis” aos cooperados. E você imagina a tentação que um pecuarista sente ao ser ofertado R$1,00/@ a mais…
Em pouco tempo, o novo frigorífico estava com margem negativa e seus diretores perceberam que o cenário tinha mudado mesmo. Resolveram por outra decisão corajosa: iam buscar um comprador para o frigorífico. Depois de muitas negociações, com várias empresas, fecharam negócio com o Bertin, em 30 de agosto de 2008. Ou seja, apenas 15 dias antes da data que é considerada o início da crise econômica mundial. Tiveram muita sorte. Tinham conseguido parar suas atividades sem dever para nenhum produtor e ainda reter dinheiro em caixa.
Depois de setembro de 2008, quase 20 frigoríficos brasileiros entraram em recuperação judicial, deixando muitos e muitos pecuaristas com dinheiro a receber. Muita gente está até hoje sem ver a cor do dinheiro (que não será recuperado). Em setembro de 2009, o JBS comprou o Bertin e com isso a planta mudou de mãos. Os pagamentos da venda da indústria estão terminando nesse ano de 2013. E agora a cooperativa começa a planejar seus próximos passos.
Alguns podem olhar para essa história e pensar que foi um fracasso, uma derrota. Eu vejo que foi tudo menos isso. Um grupo de produtores conseguiu fazer o impossível e no meio da maior crise do século (comparada apenas ao crash de 1929), conseguiram se manter firmes e sem dever ninguém – o que inúmeros frigoríficos com anos e anos de experiência e atividade não conseguiram.
E os próximos passos? Não faz mais sentido agora ter um frigorífico em RO. A capacidade de abate agora é de quase o dobro do abate anual. A situação se inverteu, pois todas as empresas ampliaram, construíram, cresceram, sem prever que os concorrentes também fariam isso.
Por outro lado, muita coisa se mantém igual. A concentração da indústria aumentou e junto com isso seu poder de barganha, capacidade de gestão e gerenciamento de riscos. Os frigoríficos tendem a ficar cada dia melhores em comprar o que representa 80% do seu custo – o boi. E com isso, se o produtor não souber se adequar a essa realidade, terá sua rentabilidade achatada, mesmo que seja muito eficiente dentro da porteira.
Como disse um palestrante num dos nossos workshops ano passado: o mais importante trabalho da assistência técnica nos dias de hoje é ensinar a comercializar, não apenas a produzir.
O que a Cooperocarne precisa fazer daqui em diante é preparar seus cooperados para o futuro. Um futuro de mais competição, de margens mais apertadas e também um mercado que deve priorizar e quem sabe até exigir uma maior qualidade. Quem vai produzir carne barata não é mais o Brasil, mas a Índia e quem sabe a África. E carne barata não vem do boi, mas do frango ou do peixe.
E como atuar nesse mercado que vai exigir mais qualidade? Será preciso aprender a medir seus resultados, para saber em que patamar estão em 2013, e poder visualizar os avanços ano a ano. Também será preciso criar mais proximidade, confiança, lealdade. Eu vejo a Novilho Precoce MS como um exemplo de sucesso nesse assunto.
O profissionalismo junto com visão de futuro alinhada e ações em conjunto vão dar um poder muito grande a qualquer grupo de pecuaristas daqui em diante. Lembrando que a qualidade da carne é criada dentro da fazenda. Pode ser apenas preservada pela indústria. Ou seja, um boi bom pode originar carne boa, mas não dá para fazer carne boa de boi ruim.
Mas o desafio é enorme. Como criar um relacionamento de longo prazo com seu parceiro comercial, quando em todo o Brasil, não se tem ainda um elevado grau de confiança na balança dos frigoríficos. Se uma medida universal – peso – ainda é motivo de disputas e reclamações, é sinal que ainda precisamos melhorar muito essa relação negocial. Como ouvi ano passado, a briga produtor-indústria é fratricida. Imagine dois irmãos bons de briga como esses.
Aproveito para deixar um recado para empresas que oferecem produtos e serviços ao pecuarista. Sua melhor contribuição vai ser incluir nas suas propostas um plano de treinamento e capacitação. Mais do que descontos, precisamos nos preparar, precisamos de mais gente sabendo e fazendo mais e melhor.
Não consigo ver outra saída. Investimento em qualidade, em capacidade de medir seus resultados e avanços e investimento em organização e negociação, além de alinhamento e visão de futuro compartilhada. Quem quer estar na pecuária de corte do futuro vai precisar seguir esse caminho. Pode parecer impossível, mas tenho certeza de que é “apenas” difícil.
E depois de passar alguns dias vivendo o dia-a-dia do pessoal da Cooperocarne, volto mais animado com a possibilidade de se construir hoje a pecuária do futuro. Volto com a certeza de que temos em nossas mãos uma grande oportunidade de fazer uma pecuária rentável e sustentável, hoje e amanhã.
14 Comments
Fantástico, Miguel! Totalmente de acordo: “Aproveito para deixar um recado para empresas que oferecem produtos e serviços ao pecuarista” e “o mais importante trabalho da assistência técnica nos dias de hoje é ensinar a comercializar, não apenas a produzir”.
Amigo Miguel,
É fato que quem não se profissionalizar esta fadado ao fracasso. Nós técnicos e demais prestadores de serviços devemos enxergar o mercado de forma diferente: Melhorando nossa forma de assistir o pecuarista. Fundamentalmente o produtor necessita entender que ao invés de pedir um grande desconto depreciar o produto, tanto na compra de insumos quanto na prestação de serviço, deve refletir e analisar a conjuntura e pensar na seguinte frase: O que este insumo ou serviço implicará na qualidade final do meu produto? Seja, uma simples reforma de pasto, boi gordo, bezerro de qualidade, melhora da produtividade leiteira e reprodutiva, etc. Garanto a todos que se fizerem conta em cima desta pergunta terão ótimos resultados e ficarão satisfeitos com o valor pago pela assitência e pela qualidade do seu produto final.
Parabens Miguel
Excelente texto Miguel. Acredito que essa é mais uma das mudanças culturais pelas quais passaremos nos próximos anos: a mudança no relacionamento pecuarista x indústria (tanto fornecedores com frigoríficos). Como toda mudança cultural ela leva tempo e exige pessoas que trabalhem a seu favor para que aconteça. Estamos trabalhando para isso.
Bonito discurso, implementar isto é que é o problema.
Seu relato mostrou um trágico caso de falta de visão estratégica e de planejamento, posso imaginar o custo dessa aventura tropical.
Olá Nelson, muito obrigado pela participação. Acredito que seja incorreto e leviano dizer que faltou planejamento e visão. Conheço o trabalho deles de perto e posso garantir que sobrou os dois. Volto a frisar aqui que tudo aconteceu no período de maior turbulência da economia mundial dos últimos quase 100 anos. Não dá para prever um “cisne negro” como é o termo usado pelo mercado. Foi uma tempestade perfeita e mesmo assim eles se mantiveram firmes e conseguiram parar as operações com dinheiro em caixa e sem dever ninguém. Quantos frigoríficos entraram em recuperação judicial nesse período e estão devendo muitos frigoríficos. Mas eu concordo com você que a história não tem (talvez ainda) um final feliz, nem é um conto de fadas. Mas eu não consigo ver o que eles poderiam ter feito de diferente, que traria melhores resultados. E desconfio que as pessoas envolvidas nesse projeto vão se lembrar dessa época com orgulho, mesmo daqui a 50 anos. Grande abraço, Miguel.
Bom dia
Gostei da matéria e seguindo a Cooperocarne criamos a Cooperari em Ariquemes RO construímos uma planta para abater 1000 bois dia, tudo com recurso próprio, somos 160 pecuaristas, a planta esta pronta a 3 anos e não abatemos ainda pois o cenário não tem viabilidade mas vamos aguardar e ainda acredito que pode ser a salvação da nossa pecuária em Rondonia
Antonio Custódio
Presidente
Frigoari S/A
Excelente artigo, parabéns Miguel. Uma lição de coragem dos pecuaristas de Rondonia num empreendimento talvez arrojado, considerando a crise da economia global. Posso imaginar o benefício que tiveram os cooperadors em resultados em suas propriedades, tanto pelo fato de ter aonde comercilizar os seu gado como simplesmente por não levar calote. Criaram uma situação sólida de produção pecuária numa fronteira nova e sem amparo oficial. Parabéns outra vez mais, ótima reportagem.
Parabéns Miguel, sua avaliação histórica da “empreitada Cooperocarne” está correta. Aqui em Presidente Prudente tentou-se o mesmo há mais de trinta anos atrás, e creio que houve muitas outras tentativas pelo Brasil afora, que infelizmente, não foram perenes, por diferentes motivos.
Apesar de tudo, como técnico e produtor rural, ainda acredito que seja uma excelente ideia, e tento ver, como você, sempre o lado bom de qualquer coisa e situação. Admiro e respeito à todos que vão à luta, pois estes sabem que os sonhos são inúteis e fazem mal à saúde se não forem transformados em obras e realizações.
Como você mesmo diz: “Deve ser muito difícil, mas não é impossível fazer isto”. Parabéns a todos realizadores, são estes que entram para a História e deixam seu legado para a pecuária brasileira.
Fernando Carvalho
Miguel
Parabéns, ótima matéria.
Acompanho algumas cooperativas, esta é uma organização que, de fato, distribui melhor os lucros.
O setor irá crescer e se consolidar quando os elos estiverem fazendo seu papel e distribuindo o recurso adequadamente, conforme a atividade que exerce.
Temos que produzir com qualidade, garantir a sustentabilidade e evidenciar ao mercado as boas práticas realizadas.
Parabens Miguel,estive no dia da assembléia geral e tive o prazer de participar da sua palestra.Concordo plenamente com voce,no dia em que a maioria aprovou a venda da industria eu era contra,na minha opinião nós paravamos e aguardavamos um pouco.
Caro Miguel, primeiramente gostaria de cumprimenta-lo e parabenizá-lo pela abordagem!! Gostaria de lembrar aos colegas leitores que a iniciativa da Cooperocarne talvez não tenha saído 100% como sonhada e planejada pelos cooperados e diretoria, porém além de aspectos econômicos, vejo neste episódio um mérito imensurável devido a iniciativa destes produtores, pois acredito que este seja o caminho correto a ser seguido na pecuária moderna, pois como diz o ditado popular “a união faz a força” e sabemos que somente através desta união podemos mudar o contexto de produção e até mesmo de nosso mercado.
Sebastião Neto
Médico Veterinário
Meta Pecuária – Assessoria de Resultados
Desculpem todos, Miguel inclusive, mas discordo. Estão sonhando que num jogo Corinthians X Linense pode dar o timinho (perdão a eles). Zebras acontecem mas apenas isso. A relacão é totalmente desigual. Mas temos sim que nos profissionalizar e garantir qualidade do produto.
Falta aprender a comercializar num oligopsonio.
Olá Ruy, obrigado pelo comentário.
Acredito que fazia todo sentido fazer o que foi feito, em 2003-2007.
Agora a realidade é outra, e não vejo que eles estão planejando construir outro frigorífico, muito pelo contrário.
E o caminho é o que você apontou mesmo – aprender a negociar com os grandes.
Obrigado, abs, Miguel