O Brasil está vivendo o momento mais importante da história da sua política comercial. São três negociações simultâneas que podem redefinir nossa inserção internacional e trazer mudanças fundamentais no comércio internacional: a Rodada Doha, da OMC (Organização Mundial do Comércio), a Alca e o acordo UE-Mercosul.
Só que as coisas vão de mal a pior. Em 2001, o ambicioso projeto da Alca descarrilhou por conta de resistências nos EUA e no Brasil. Agora, é o projeto UE-Mercosul que começa a fazer água, com a UE resistindo em apresentar uma oferta decente em agricultura e o Mercosul em serviços e compras governamentais. Tudo indica que a meta de concluir as negociações em 2005 está definitivamente comprometida e que a continuidade dependerá das prioridades dos futuros dirigentes da UE ampliada e dos EUA. O próprio Mercosul enfrenta crescentes dificuldades para se firmar como zona de livre comércio com um mínimo de credibilidade. A única frente com chances de avanço neste ano é a Rodada Doha.
A OMC é, de longe, o fórum mais importante para o Brasil, não apenas pelo seu potencial de criação de comércio, mas principalmente por ser a única instituição capaz de definir regras mais justas em áreas sensíveis, como o uso de subsídios agrícolas, antidumping e salvaguardas. Com 148 membros e 19 temas em negociação, a Rodada Doha nasceu com a ambição de promover o desenvolvimento dos mais pobres.
O primeiro documento apresentado pelo presidente do Comitê Agrícola, Stuart Harbinson, trazia um esboço de acordo para a agricultura bastante razoável, que hoje deixa saudades, mas que na ocasião foi sumariamente rejeitado por todos. A indecisão que se seguiu a esse documento abriu espaço para que EUA e UE se acertassem e apresentassem um documento totalmente defensivo na área agrícola, que basicamente preservava o status quo da Lei Agrícola americana, de 2002, e da tímida reforma da Política Agrícola Comum, de 2003. Dos protestos generalizados que se seguiram, nasceu o G20, a coalizão de 19 países em desenvolvimento que vem sendo habilmente coordenada pelo Brasil. A 5ª Ministerial da OMC, em Cancún, fracassou não apenas pelos desacertos na agricultura, mas também pela insistência dos países desenvolvidos em agregar à agenda temas como investimentos, concorrência e compras governamentais.
O fracasso de Cancún fez brotar uma nova dinâmica nas negociações, pautada pela harmonização das posições mais divergentes na agricultura. Surgiu, assim, o intrigante Não-Grupo dos 5 (NG5), formado por UE, EUA, Brasil, Índia e Austrália. No último dia 16, o presidente do Conselho Geral, Shotaro Oshima, apresentou o esboço de um acordo-quadro que tenta harmonizar as principais posições nos três pilares da negociação agrícola -acesso a mercados, apoio doméstico e subsídios às exportações-, além de uma proposta para bens industriais, serviços e facilitação de comércio. O texto será discutido nesta semana em Genebra.
Minha leitura é que o novo papel só foi possível graças aos esforços do G20 e, no jargão da OMC, pode “decolar” se forem feitos alguns ajustes importantes na parte de acesso a mercados e apoio doméstico agrícola, desarmando algumas armadilhas que significariam um claro retrocesso ao mandato de Doha.
A questão crucial, porém, é que a própria OMC corre sérios riscos de sobrevivência como instituição reguladora do comércio mundial. A expressão “cupins no porão” foi cunhada pela canadense Sylvia Ostry, no livro “The Post-Cold War Trading System”, e sintetiza o risco iminente de erosão das fundações do sistema multilateral de comércio. Os cupins no porão da OMC são a visão mercantilista e míope de que “exportação é bom e importação é ruim”, a imoralidade de não dar à agricultura o mesmo tratamento conferido a outros setores, a explosão das exceções e da defesa comercial, as falhas do mecanismo de solução de controvérsias e a proliferação de preferências comerciais e de acordos regionais e bilaterais discriminatórios.
Interessa ao Brasil manter o edifício da OMC em pé. O texto que está sendo discutido reduz o escopo das negociações e atende a uma parte importante das nossas reivindicações. Somos membros fundadores do GATT e em diversos momentos ajudamos a dedetizar cupins que queriam minar o sistema. Hoje, ocupamos uma cadeira central nas negociações e somos co-responsáveis pelos rumos da Rodada de Doha e da própria organização. Se a OMC ruir, certamente figuraremos na lista dos maiores perdedores. O descarrilhamento da Alca e do acordo UE-Mercosul e a dificuldade de tratar temas como subsídios agrícolas e antidumping nas negociações regionais provam o quanto a Rodada de Doha é, atualmente, crucial para o Brasil.
Tudo indica que vamos ganhar os casos do algodão contra os EUA e do açúcar contra a UE na última instância, e não podemos correr o risco de morrer na praia. Esse risco certamente existe se as armadilhas que estão no documento do presidente não forem desarmadas. Existe, também, se a rodada fracassar e os países ignorarem ainda mais as decisões do órgão de solução de controvérsias. Não podemos deixar de enxergar esses dois lados da questão. O melhor resultado que podemos esperar para os contenciosos agrícolas é o aprimoramento das regras do jogo e o fortalecimento do sistema multilateral, como um todo, e do mecanismo de solução de controvérsias em particular.
Em Cancún, acertamos ao optar por nenhum acordo em vez de um mau acordo. Neste momento, estou convencido de que é melhor darmos um passo à frente, ainda que vago ou neutro em algumas áreas, porém apontando para o rumo correto, do que corrermos o risco de um segundo fracasso, que talvez seja definitivo, com conseqüências desastrosas para o país.