Há coisas que acontecem nesse país e que desafiam a lógica e o bom senso. Não estou falando dos problemas políticos que estamos vivenciando, mas não fica muito atrás: trata-se da lei Nº 11.977, de 25 de agosto de 2005, que institui o Código de Proteção aos Animais no Estado de São Paulo, de autoria do deputado Ricardo Trípoli e que foi APROVADA na data mencionada. A lei vigorará dentro de 45 dias e terá 180 dias para ser regulamentada.
Não sou advogado, mas entendo que a lei contém vários artigos de interpretação dúbia e outros distantes de realidade relativa ao seu objetivo, que é promover o bem-estar dos animais e evitar abusos.
Entre os artigos de interpretação duvidosa, está, por exemplo, o artigo 2º, que em seu parágrafo II, coloca que é “proibido manter animais em local desprovido de asseio ou que lhes impeça a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade”. Nesse item, a produção intensiva de aves, suínos e talvez os confinamentos de gado de corte e leite estariam incluídos e, portanto, proibidos em São Paulo, visto que, de alguma maneira, restringem o movimento dos animais, ainda que a lei dê margem a diversas interpretações. Se esse for o caso, teremos a curiosa situação em que será permitido manter animais soltos, porém sem tratamento sanitário adequado e desnutrição (a lei não coloca esses aspectos como importantes ao bem-estar), mas não será permitido manter animais confinados, com água à vontade, ventiladores e aspersores para controle de temperatura, dieta balanceada e todos os cuidados sanitários em dia. É um típico caso do tiro saindo pela culatra.
A lei veta também a adoção de determinadas tecnologias, como as descritas nos parágrafos II e III do artigo 18, que proíbe “submeter os animais a processos medicamentosos que levem à engorda ou crescimento artificiais” e “impor aos animais condições reprodutivas artificiais que desrespeitem seus respectivos ciclos biológicos naturais”. O uso de somatotropina bovina (BST), por exemplo, estaria proibido em São Paulo, assim como aditivos que promovam o crescimento e a engorda, além de terapias hormonais para reprodução (em relação à inseminação artificial, concordo com o zootecnista Cláudio Carvalho – clique aqui para ler a sua carta – não se trata de despeitar seus “respectivos ciclos biológicos naturais” e, portanto, estaria liberada).
O fato de eventualmente haver exageros na aplicação das técnicas ou de nem sempre as mesmas se justificarem tecnica e economicamente não pode ser motivo para que seu uso seja simplesmente banido, sob pena de piorar a eficiência produtiva e elevar custos, sem falar de poder prejudicar o próprio animal: se uma vaca se encontrar em anestro prolongado, pela lei não se pode interferir, sob o risco de “desrespeitar seu ciclo biológico natural”. Nesse caso, novamente a contradição: o melhor a fazer seria mandar o animal imediatamente ao gancho, visto que ninguém em sã consciência manteria um animal improdutivo na propriedade. Novamente, o tiro saindo pela culatra.
Há, ainda, uma faceta grave e que não foi mencionada na imprensa. Trata-se das restrições impostas às universidades e centros de pesquisa que trabalham com animais. Estes centros teriam de constituir as “CEUAs”, Comissões de Ética no Uso de Animais, que seriam formadas por médicos veterinários e biólogos, docentes e discentes, pesquisadores na área específica, representantes de associações de proteção e bem-estar animal legalmente constituídas e representantes da comunidade.
As CEUAs poderão, entre outras atribuições, “examinar previamente os procedimentos de pesquisa a serem realizados na instituição a qual esteja vinculada, para determinar o caráter de inovação da pesquisa que, se desnecessário sob este ponto de vista, poupará a utilização dos animais”. Também, poderão “notificar imediatamente às autoridades competentes a ocorrência de qualquer acidente com os animais nas instituições credenciadas, bem como a desobediência dos preceitos elencados na lei”, e “recomendar às agências de amparo e fomento à pesquisa científica o indeferimento de projetos (em determinadas situações)”.
A lei vai mais longe na questão da experimentação. Em seu artigo 42, parágrafos 2º e 3º, coloca que “as universidades deverão estipular como facultativa a freqüência às práticas nas quais estejam previstas atividades de experimentação animal”. E “no âmbito dos cursos deverão ser previstas, a partir do início do ano acadêmico, sucessivo à data de vigência da presente lei, modalidades alternativas de ensino que não prevejam atividades ou intervenções de experimentação animal, a fim de estimular a progressiva substituição do uso de animais“.
Fica evidente que faculdades de zootecnia, medicina veterinária e engenharia agronômica, além de centros de pesquisa e empresas de pesquisa, como o Instituto de Zootecnia e a unidades da Embrapa em solo paulista, estarão submetidas a uma legislação que, se não cerceia suas atividades, deixa implícito que o ensino e a pesquisa zootécnica de qualidade estão em segundo plano frente ao que se denomina bem-estar animal.
Não há nada de errado em propor um código de proteção aos animais. Aliás, todos aqueles envolvidos com a produção animal seriam, até por vocação, os primeiros a aplaudir tal iniciativa. O problema é quando a legislação é feita por quem não entende do assunto e coloca, por desconhecimento ou descuido, o joio e o trigo no mesmo saco. Ao que tudo indica, foi o que conseguiu o deputado Trípoli (PSDB). Talvez querendo coibir abusos que possam existir em determinadas situações, acabou atingindo instituições sérias de pesquisa, produtores tecnificados e empresas cujo objetivo é trabalhar para produzir um alimento de qualidade, ao menor custo possível. Para isso, em grande parte às vezes, o verdadeiro bem-estar animal é uma necessidade. Qualquer pessoa que conheça produção animal sabe que um desempenho superior só pode ser obtido se o animal for bem tratado. Não é possível imaginar uma vaca confinada produzindo 50 kg de leite por dia, se não estiver bem nutrida, confortável e com sua sanidade em dia.
A impressão que dá é que se trata de mais um daqueles “arroubos de civilidade” que temos de vez em quando, porém sem o conhecimento adequado dos fatos e da ciência. Parece uma tentativa de chegar ao futuro, em que consumidores são demandantes a ponto de interferir de forma radical no sistema produtivo, sem passar pelo presente, em que para grande parte da população o limitante ao consumo é a oferta de produtos de qualidade a preços acessíveis. Parece também que foi feita uma adaptação torta de demandas de grupos de consumidores de países mais desenvolvidos, como os países europeus e da América do Norte. Nestes países, há grupos que pregam o fim da produção animal comercial, sob a argumentação que os animais devem poder ir e vir e não podem ser criados para o abate. Há ainda grupos de consumidores que demandam sistemas de produção e práticas específicos, mas normalmente estão dispostos a pagar mais por produtos que incorporem suas necessidades.
Nesse ponto, me parece claro que o mercado é que deveria ser o balizador: se há consumidores interessados em adquirir animais criados à solta e sem aditivos, que estejam dispostos a pagar mais, como ocorre com os frangos caipiras, produtos orgânicos e afins. Isso vale também para consumidores em outros países, para os quais venhamos a exportar. Submeter todo o sistema produtivo a uma demanda de nicho resultará em custos mais elevados e na perda de competitividade do produtor paulista.
Além do desconhecimento da questão, o fato dessa lei ser aprovada em São Paulo remete para uma outra realidade. A produção animal não é prioritária como em outros estados, nos quais o peso econômico da atividade agropecuária é maior. Essa lei é tipicamente urbana e típica de um estado urbano e industrializado. Para o produtor paulista ser competitivo, as lideranças precisam se articular mais e evitar que excrescências como essa sejam aprovadas.
Essa lei seria, de fato, inimaginável em outros estados. Ao mesmo tempo em que a cadeia de produção animal de São Paulo se vê às voltas com essa peça, vejo, no jornal, duas notícias interessantes. Primeiro (Estadão de 20/09), a notícia da Sadia investindo R$ 1,5 bilhão em Mato Grosso, construindo três abatedouros e uma fábrica de rações, em um complexo industrial em Lucas do Rio Verde e Campo Verde. Diz a matéria que o investimento da Sadia irá gerar 8 mil empregos diretos e outros 24 mil indiretos, além de aumentar a demanda por milho e soja, estimulando a agricultura do estado. Logicamente, esse investimento não poderia ser feito aqui em São Paulo, porque a lei do deputado Trípoli tornaria tal investimento provavelmente ilegal.
A outra notícia é também do Estadão, do último domingo. A matéria fala sobre o grande desenvolvimento da atividade canavieira em São Paulo, com mais de 40 novas usinas projetadas para construção no estado, principalmente na região Oeste. A indústria canavieira é uma atividade que compete com o leite em São Paulo e oferece condições atrativas de remuneração. Todos os estudos e artigos que li sugerem que, para o leite competir com a cana, tem de ser intensificado, com maior produção por área, o que pode ser obtido por pastagens ou confinamento, mas sempre com o uso apropriado de tecnologia. A lei em questão contém elementos que se contrapõe a essa necessidade. Eis, enfim, a nova realidade de São Paulo: em nome do suposto bem-estar dos animais, sai a produção animal e entra a monocultura!
PS – Justiça seja feita: o governador Geraldo Alckmin havia vetado a proposta, mas a Assembléia simplesmente derrubou o veto e aprovou a lei.
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Quando pessoas ignorantes assistem a algum programa sensacionalista sobre o desmatamento ou péssimas condições nas quais animais são tratados, querem de alguma forma mudar esse quadro. Não me oponho, que fique bem claro, sou contra o desmatamento irracional e formas que agridam a fisiologia do animal. É importante deixar alguns pontos claros para essas pessoas sobre o que é criar animais para a produção animal.
Como foi dito no artigo, e particularmente o contrário eu ainda não vi, é impossível obter uma carne de qualidade maltratando bois, suínos e aves. Mesmo porque o descuido deixará evidências no produto final, a carne. Também é de difícil compreensão uma vaca que produza 40 Kg de leite tendo sua alimentação e ingestão de água restringida.
Participando de um congresso, aqui em Maringá, ouvi algo muito importante que o Prof. Dr. Mateus Paranhos disse e que me veio à mente enquanto lia o artigo, a frase é: “Bom senso”.
Quando não se tem equilíbrio e raciocínio, geralmente a razão dá lugar à desinteligência, e às vezes, associada com algum interesse, à retração de investimentos em um dos Estados mais importantes do Brasil.
Ainda sou estudante e sei que tenho muito a aprender, mas com certeza com toda minha falta de experiência sei que essa Lei foi uma péssima idéia. Eu sei, e muitos outros também, que a política é um jogo de interesses, às vezes bom outras vezes ruim. Entretanto, acima desse jogo existe algo muito maior: o desenvolvimento de uma região, com mais empregos, famílias seguras em seus lares, com educação de qualidade, se alimentando bem, enfim, vivendo bem. Estou certo que não foi isso o que nosso representante pensou ao defender tal idéia.
Bom senso e equilíbrio. Somente isso, mais nada.
Abraços e até mais.
Caro Marcelo,
A referida lei parece ser o cúmulo da irracionalidade no trato das políticas públicas.
A competitividade e a sustentabilidade dos nossos negócios de produção animal, até mesmo aqueles provenientes da pequena propriedade, passam necessariamente pela intensificação e otimização do processo produtivo.
A tecnologia gerada e validada pela ciência tem este objetivo a fim de promover o desenvolvimento socio-econômico, sem qualquer conflito com o bem estar dos animais.
Essa proposta satisfaz apenas nossos competidores internacionais, já que inibe todo o potencial do estado mais tecnificado do país.
É lamentável!
A. Carlos de Souza Lima Júnior
Resposta do Autor:
Caro Antônio Carlos,
Obrigado pelo comentário, você lembrou bem o fato da intensificação não escolher tamanho de produtor, mas sim uma necessidade em função da busca pela maior competitividade e utilização racional dos recursos.
Um abraço,
Marcelo
Prezado Marcelo,
Sou Méd. Veterinário com 16 anos de trabalho ininterupto em Produção Animal (corte e leite) aqui no Rio Grande do Sul, e confesso jamais ter imaginado que um dia nosso trabalho fosse tão desrespeitado por este Deputado aí de S. Paulo.
Caso este projeto seja transformado em lei, teremos uma insuportável queda na geração de riqueza do Setor agropecuário, o que jogará milhares de produtores rurais na extrema pobreza, além da diminuição brutal de impostos, afetando sobremaneira o Setor Agropecuário de S. Paulo.
Estamos totalmente solidários com o Setor Produtivo Paulista e rogamos a Deus que tudo isso não passe de um devaneio de alguém, que certamente tem interesses muito diferentes dos que querem produzir e gerar riqueza ao Brasil.
Um abraço,
João francisco S. Vaz
CRMV 4561.
Caro Marcelo, quando tomei conhecimento desta nova lei fiquei assustado. Torci para que fosse uma brincadeira de mau gosto, nem tanto pelo conteúdo, que versa sobre um assunto importante – bem estar animal – mas também pelo prazo: entra em vigor ontem.
Talvez seja uma destas leis, comuns no Brasil, que não viram nada. Acho que não. Não é brincadeira, por mais polêmicos ou confusos que possam parecer alguns artigos, a lei veio para ficar.
Pensei que ela traria uma forte reação do setor. Quais as conseqüências para os confinadores, criadores de animais de exposição e leilões? Podemos esperar reflexos negativos nas indústrias de insumos, como rações e medicamentos, nos frigoríficos, centrais de congelação de sêmen.
E os fornecedores destas empresas? Podemos considerar um desemprego em massa e em ritmo acelerado?
Procuro me manter informado, mas desconheço algum rebate a altura das nossas associações ou entidades que se mantém em evidência na defesa dos interesses dos produtores. Apenas algumas celeumas em rodas informais.
Em virtude do aparente imobilismo, fico tranqüilo – nada vai mudar – mas com um pé atrás, pois costumamos agir, gritar espernear quando estamos amarrados e com a faca no pescoço.
Da maneira como estamos sendo acuados pela cana, laranja, e outras culturas, sabemos que gradativamente a pecuária em São Paulo será para poucos e despreocupados produtores.
A pecuária vigorosa objetiva, profissionalizada e de escala, se firma em outras regiões no centro-oeste e norte. Estava me preparando para esta fuga gradativa da pecuária do estado de São Paulo. Nunca imaginei que fosse acontecer na velocidade anunciada pela nova lei. Deveria ser fruto de uma inviabilidade econômica e não legislativa.
Acho que não estamos acreditando no vigor desta lei. Devemos discuti-la de maneira a torná-la aplicável e sensata no que diz respeito à atividade e efetiva quanto ao bem estar animal.
Breno J P Barros
Caros amigos do MilkPoint. Não é a primeira vez que vemos “Leis” ridículas no nosso País e acredito que em outros lugares do mundo também aconteça isso. Geralmente é o que acontece quando um monte de gente que não tem muito (ou nenhum) conhecimento de determinados assuntos resolve fazer alguma coisa para ajudar.
O resultado geralmente é desatroso.
Será que está na lei também a legalização de experimentos com seres humanos para teste de drogas novas para uso em animais? Ou nas Instituições de ensino, a liberação do uso de seres humanos nas aulas de técnica cirúrgica? O que a lei diz também sobre os “Pit Bulls”? Não podem mais sair de casa com o uso de guias e coleiras, pois você estaria de alguma forma limitando sua liberdade? Eles não teriam nem o direito de dar uma mordidinha pequena que fosse, em uma criancinha para treinar seus instintos?
Ora, é claro que deve haver respeito e bom senso no trato com animais, mas o que deve acontecer após essa nova lei? São Paulo deve perder muitos empregos, muita geração e divisão de renda, muita produção na pecuária em geral, e talvéz com isso um maior custo para quem teimar em produzir por aqui.
Qual será a reação dos nobres deputados estaduais se aparecer um bando de animaizinhos como cachorros, gatos, vacas, ovelhas, cabras, etc no plenário da camara para aplaudir a promulgação da lei?
Mas depois de muito pensar, acho que descobri o verdadeiro motivo da promulgação dessa lei.
Mais uma vez, eles estariam legislando em CAUSA PRÓPRIA.
Abraços, Névio.