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Ditadura tecnológica

Por Xico Graziano 1

Um gatilho armado poderá detonar verdadeira explosão no campo. A arma se encontra nas mãos do governo. No front da reforma agrária, o MST pressiona para alterar os índices de produtividade da terra. Qual o motivo dessa encrenca?

Acontece que o Incra não está conseguindo avançar no processo de desapropriação. Por quê? Simplesmente porque, nas vistorias, não encontra mais terras improdutivas. A agricultura nacional conseguiu vencer seu passado latifundiário, tornando-se eficiente. Uma vitória sobre o atraso.

Resulta que, quase meio século depois, os preceitos do Estatuto da Terra foram superados. O êxodo rural levou as pessoas para a cidade, e o capitalismo modernizou a produção. Acabou a era da enxada. Começou o ciclo da biotecnologia.

Nesse processo, não se eliminou a pobreza rural. Criou-se a urbana. Tampouco se poderá afirmar que desigualdades históricas, como a concentração fundiária, foram eliminadas. Uma coisa, porém, não se pode negar: a produção agropecuária se elevou substancialmente.

Por incrível que pareça, hoje, o grande problema na Nação reside na demanda, e não na oferta de alimentos e matérias-primas agrícolas. Quer dizer, a capacidade de produção no campo é maior que a possibilidade dos mercados, interno e externo, absorverem os produtos. Decorre daí crises de preços, comprometendo a renda e o emprego no campo.

Basta ir à roça e conversar com o agricultor, especialmente o pequeno. Ele lhe dirá que produzir, ele consegue, mas vender é que está difícil. No mais das vezes, os preços do mercado não compensam os custos. No final das contas, o trabalho despendido parece vão.

Quem mora na cidade se lembra daquela época boa quando da terra se extraia a riqueza da sociedade. Tempo bom. Era produzir e lucrar. Famílias progrediam. Esse mundo acabou. Agora, alta tecnologia com mercados seletivos, o sucesso está difícil. Exige gestão profissionalizada, certificação de qualidade, integração produtiva, cooperativismo.

Surge, nesse contexto, a polêmica sobre o cálculo da terra produtiva. Quer o MST, numa só canetada, elevar os índices de produtividade. Com isso, fazendas hoje impedidas poderiam ser desapropriadas para atender a volúpia agrarista. Como funciona esse cálculo?

Através de um índice, chamado GEE-Grau de Eficiência da Exploração, que deriva da comparação entre os níveis de produtividade física do imóvel com valores estabelecidos pelo poder público. O GEE de uma fazenda deve ultrapassar 100%, ou seja, suplantar o parâmetro oficial.

Trata-se de um critério primário, uma conta matemática. Se o GEE de uma propriedade for, por exemplo, de 99%, ela será desapropriada pelo Incra. Como se percebe, é um número cego, seco, calculado na prancheta, com bases em notas fiscais de venda de produção, ou de atestados de vacinação de rebanhos. Pior, vale apenas o último ano agrícola.

É verdade que os atuais índices estão velhos. Atualizá-los, porém, vai piorar o problema, porque existe um equívoco de origem. Útil no passado, o GEE tornou-se obsoleto face à complexidade do mundo rural. Está na hora de aposentá-lo. É fácil explicar o porquê.

A terra, reza a Constituição, precisa cumprir sua função social e ser produtiva. Tudo certo. O dilema do agricultor, todavia, é elevar sua produção e ver o mercado lhe arrebentar a cabeça. Sem demanda garantida, quanto maior a safra, menor a renda. Como sair dessa?

Vejam o mercado da mandioca. Milhares de pequenos agricultores, muitos dos quais assentados de reforma agrária, entraram no ramo da fécula. Entupiram o mercado de tubérculo, o preço caiu. O raciocínio é básico: sem planejamento de mercado soçobra a economia rural.

Atentem para o paradoxo da fartura. Nos últimos 10 anos, cerca de 25 milhões de hectares foram destinados para projetos de reforma agrária. Se apenas 25% dessa fabulosa área começasse a produzir para valer, os mercados desabariam. Levariam ao fracasso os 600 mil assentados e, de roldão, os 5,5 milhões de produtores rurais. Todos quebrariam.

A definição sobre o cálculo da terra produtiva não comporta mais simplismo. Elevar os índices deteriora a equação da renda no campo, aumentando o dilema do agricultor. Se eleva a produção, entra no prejuízo do banco. Se reduz, cai na garra do MST. Sai dessa!

Uma proposta inovadora será apresentada na Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, modificando a metodologia de cálculo sobre a terra produtiva. Ao invés de um único índice, como o atual GEE, deverá contar uma avaliação mais completa. O laudo técnico sobre a produtividade dependerá de quatro funções: a qualidade do solo, o clima, a tecnologia e o mercado.

A produtividade por área de uma fazenda, tanto na área animal quanto vegetal, depende da fertilidade do solo e do regime de chuvas da região. Exigir um mesmo patamar de produção significa ditadura tecnológica. Ora, quem obriga o uso intensivo de fertilizantes químicos aos defensores das tecnologias brandas? E a produção orgânica, pode?

Essa visão medíocre, que atribui índices fixos de produtividade sem considerar os recursos naturais e a economia rural, facilitou a desapropriação de imóveis rurais em áreas inférteis, como na serra da Bodoquena, em MT. Transformados em assentamentos, tornaram-se uma tragédia ambiental e social.

Como se percebe, mais uma vez o raciocínio polarizado machuca a inteligência no campo. Manter ou elevar os índices de produtividade não resolve nada. Serve apenas à ideologia barata.

________________
1Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98).

0 Comments

  1. Alexandre Foroni disse:

    Parabéns Xico,

    É isso aí, neste país o empresário rural trabalha, dá duro, faz de tudo para melhorar, aumentar produtividade, tenta melhorar renda, enfim, faz uma boa parte.

    E o governo ou instituições públicas “na maioria das vezes”, ficam discutindo, analisando, pensando, brigando por interesses políticos partidários e/ou individuais e quando tem que por em prática o que aprovaram já é ou está ficando ultrapassado.

    Infelizmente neste país é assim.

    Temos muito que fazer, mas não podemos desanimar. Um dia teremos que ter respeito, ética, comprometimento, profissionalismo nos órgãos públicos.

    Sei que temos exceção, mas parece que cada dia fica mais difícil.

    Parabéns pelo artigo.

  2. Fernando Affonso Ferreira disse:

    Deputado,

    Parabéns pelo raciocínio. Porque será que o Governo tem tanta dificuldade para entender essa situação? Quanto deverá ser o GEE de assentamentos com mais de cinco anos de implantados?

    Resposta do autor:

    Vai saber o que pensa o governo. Pequenas propriedades não precisam comprovar GEE.

    Abs,

    Xico Graziano

  3. Bruno de Jesus Andrade disse:

    O principal problema quando generalizamos alguma coisa é o que usamos como referência.

    Tenho um exemplo de uma propriedade que está rodeada por assentamentos e corre o risco de também ser desapropriada. Caso a forma de avaliação sobre a produtividade da terra não se altere, é muito provável que a fazenda seja desapropriada. Entretanto, como foi dito no artigo, dados como fertilidade do solo, clima e mercado afetam muito essa região e portanto devem ser considerados para que uma grande injustiça não seja cometida.

    Infelizmente, o governo não tem sido eficiente em suas decisões, o que pode comprometer seriamente aqueles que hoje estão tentando produzir. Digo tentando, pois os custos estão mais altos e o lucro menor, não se tem dinheiro para investir na terra e essa não produz adequadamente.

  4. Francisco Pereira Neto disse:

    Pois é meu Exmo xará, a situação no campo continua uma bagunça, e não é de hoje! Que governo teve coragem de mudar essa situação? Nenhum. Instrumentos técnicos científicos existem, É só ter vontade política, e procurá-los!

    Meu cunhado, recém falecido, lutou a vida inteira para ver seu projeto implantado. Ele sempre me dizia: vivo ou morto um dia isso terá que acontecer. Ele foi um dos maiores especialistas em área fundiária, e o seu projeto chegou até as mãos de alguns deputados do Congresso Nacional na 2ª gestão de FHC. Pesquise Kenard da Silva Balata, ex-funcionário do antigo IBRA, hoje INCRA, comendador da Ordem Cartográfica do Brasil. Estão lá, em seus trabalhos, o projeto de implantação do Cadastro Técnico Rural, que se fosse aplicado, não teria MST que resistisse. Aliás, a quem interessa esse movimento crescente e progressivo?

    Para mim, é muito estranho! Pelos meus parcos conhecimento na área, eu digo que o pequeno e o médio produtor rural tem que ser subsidiado de forma direta sem “intermediários” com interesses escusos. O projeto do meu cunhado acabaria com isso, e portanto não vingou.

    É por isso que os projetos da minha área de trabalho não decolam: O PNCEBT, Febre Aftosa, BSE, rastreabilidade etc. Como é que um micro produtor de leite (50 a 100 l/dia) pode pagar um Médico Veterinário vacinar, ou fazer exames de brucelose e tuberculose em seu animais? Os grandes amigos do poder continuam ditando as regras; as grandes redes de laticínios, frigoríficos, de insumos agrícolas etc. Vossa Excelência foi meu Secretário da Agricultura em S. Paulo.

    M.V. Francisco Pereira Neto – SAA/CDA/EDA de Botucatu

  5. Heleno Guimarães de Carvalho disse:

    Inicialmente gostaria de parabenizá-lo pelo brilhante texto, segundo vale a pena chamar a atenção para alguns fatores que transformaram a relação do homem com a terra. Anos atrás, a simples posse da terra já garantia ao homem o seu sustento, assim a solução aos problemas sociais do campo se resumiam a posse da terra como uma forma de garantir o sustento de milhões de famélicos que migravam do campo, inchando as cidades em busca simplesmente de uma forma de subsistência.

    Nos dias atuais acreditar que a posse da terra é a solução para todos os problemas sociais rurais chega a margem da ignorância de quem não conhece a realidade do campo, que a cada dia que passa se transforma, exige mais tecnologia e conforme escrito demanda cada dia mais investimento. Soma-se a isto que tivemos uma completa alteração dos paradigmas no campo, ao invés, do sucesso estar relacionado exclusivamente a produtividade, hoje está principalmente centrado na questão da competitividade, e em algumas cadeias produtivas os investimentos no campo esbarram na rentabilidade das atividades.

    Assim, sem sombra de dúvidas o produtor detentor da terra hoje não é mais produtivo na maioria dos casos simplesmente por que altos índices de produtividade demandam altos investimentos e custos, o que torna sua atividade não competitiva e portanto o tiraria do mercado. Tempos atrás, a necessidade de crédito era um dos grandes limitantes ao aumento de produção, hoje a necessidade de atividades rentáveis o bastante, para o pagamento dos financiamentos, inibe uma maior oferta do crédito, sem contar o problema dos altos juros, pois juros de 8,75 % se tornaram caros em função da deflação dos produtos agrícolas.

    Existe também a questão da qualidade de vida no campo, a simples posse da terra não seduz tanto quanto seduzia a anos atrás, sobretudo os mais jovens, que cada dia mais procuram a cidades em busca de qualidade de vida, e não mais da simples subsistência.

    Há necessidade de uma grande reforma nos conceitos do campo, o que já aconteceu no meio urbano, é nítida a necessidade de investimentos maciços em educação e informação, os chamados bens intangíveis e mudança dos paradigmas de produção, devemos criar novas alternativas de meios de produção, barateando o custo da produção e sem sombra de dúvidas a agricultura familiar é imbatível em algumas atividades sobretudo naquelas que exigem mão-de-obra, assim a simples mudança de índice não será a solução para campo, pois problemas complicados tem soluções complicadas, colocando todos nós em uma grande encruzilhada. Qual o rumo devemos tomar?

  6. Plácido Borges Campos disse:

    Tenho sempre prestado atenção nas falas e textos de Xico. Às vezes, o acho muito tendencioso e por isto olhava para ele com certo descrédito. Este texto atual mostra realmente um grau de questionamento moderno que precisa balizar os novos debates da área rural. Onde está realmente a evolução necessária para o campo?

    Concordo plenamente com seu raciocínio. Acho muito moderno e espero que lute em todos os meios de comunicação divulgando esta visão, que chamaria de pós-moderna e balizadora do verdadeiro desenvolvimento sustentável.

    Parabéns,

    Plácido Borges Campos