O atual momento da pecuária de corte, de preços baixos, alta de custos de produção, aumento das exportações e valorização do real, vem pressionando o produtor de uma forma cada vez mais forte. Atualmente vivenciamos um aumento contínuo e sustentado de produção. A falta de estatísticas confiáveis e atualizadas não permite fazer uma análise precisa da conjuntura, mas é possível analisar uma série de fatos, que impactam diretamente no setor.
Contra o aumento de custos, o produtor tem hoje uma única arma, o aumento da eficiência, uso de insumos de forma inteligente e aumento da produtividade, de forma que a conseqüência natural é o aumento da produção. Muitos alegam que há grande abate de fêmeas, o que irá em breve (2006) inverter o ciclo de produção, gerando aumento do preço. Os dados divulgados ontem pelo IBGE indicam que o abate de fêmeas no primeiro trimestre desse ano representou 39,2% do abate total.
No entanto, como a produtividade média brasileira é baixa, há um grande número de fêmeas improdutivas, que podem ser abatidas. Outro fator é que em muitas fazendas, o problema é uma oferta de forragem menor que a necessidade para o rebanho atual. Por isso observamos tantos pastos “rapados” às margens das rodovias. O abate de fêmeas improdutivas pode até aumentar a produção, se o aumento de forragem for proporcionalmente maior.
Supondo que o aumento da produtividade é maior que o abate de fêmeas produtivas, apesar da fragilidade estatística de nossos dados, conclui-se que ainda há espaço para incremento da produção. Nesse cenário, temos a pergunta, o que fazer, com preços baixos, produção aumentando e consumo interno estável/caindo e exportações em alta, mas dólar desvalorizado?
O grande desafio hoje, na maioria das empresas e setores da economia, não é aumentar a capacidade de produção, mas a capacidade de comercialização. Em outras palavras, o limitante não é mais a produção, mas a venda.
Na cadeia da carne, não poderia ser diferente, e o desafio de hoje é aumentar as vendas. As exportações têm evoluído de forma muito positiva. Nos cinco primeiros meses de 2005, o crescimento foi de quase 30%, sobre uma base (2004), já bastante elevada. O que preocupa são os acidentes sanitários (vide Pará e Amazonas no ano passado). A recente suspensão dos EUA a nossa carne processada e as exigências da UE em relação a rastreabilidade com identificação individual nos mostram que estamos muito longe da tranqüilidade.
No mercado interno, o problema é sério. O consumo está estagnado, perdendo participação para outras carnes. Ao avaliar esse dado, o setor tem colocado a culpa na renda da população. No entanto, acredito que essa não é a análise mais completa. Nos últimos 20 anos, de acordo com dados da FAO, a renda per capita cresceu 23% no Brasil e 33% no mundo. O consumo de carnes (bovina, aves, suína e outras) cresceu 118% no Brasil e 27% no mundo. O consumo de carne bovina cresceu 53% no Brasil e pasmem, decresceu 10% no mundo, em valores per capita.
Esses dados mostram que há influência da renda per capita no consumo de carne, mas esse não é o único influenciador. Há um grande impacto da cultura no consumo. E nos últimos 20 anos, o consumo de carne bovina cresceu menos que o consumo de carne, no Brasil e no mundo. Os dados mundiais mostram que mesmo com um aumento de 33% na renda per capita mundial, o consumo de carne bovina caiu 10%. Isso mostra que mesmo com renda maior, os consumidores mundiais, em média, reservaram uma quantia menor de sua renda para compra de carne bovina.
As razões para isso ocorrer são várias de devemos analisar sob a ótica do valor e não do custo. Quando alguém compra um produto, carne bovina, por exemplo, faz uma avaliação subjetiva (para produtos de menor valor) e objetiva (para produtos de maior valor) sobre a relação custo/benefício. Imagine uma criança escolhendo entre dois doces e um governo escolhendo entre 2 aviões de guerra. A profundidade e detalhamento da análise são diferentes, mas no fundo querem responder a mesma pergunta: qual a melhor opção?
Será que a carne bovina está ganhando de seus produtos substitutos, na avaliação custo/benefício na hora da compra, pelo brasileiro? Acredito que estamos vivendo um desafio cada vez maior nessa área e não apenas pelo preço. Resumindo, estamos ficando para trás.
O corte de carne mais procurado, mais vendido, enfim, o único que falta no mercado interno é, por acaso, o mais caro. Sua excelência a picanha, a rainha do churrasco. A picanha, apesar de ser um dos cortes mais caros, traz uma das melhores relações custo/benefício e por isso tem tanta demanda. Os diferenciais da picanha são: rapidez de preparo, facilidade de preparo, baixo risco de erro na preparação e em alguns casos status de se servir corte tão nobre.
O que outros cortes, de dianteiro e traseiro, poderiam “aprender” com a picanha, e terem uma melhor relação custo/benefício? O primeiro atributo que poderia ser melhorado é facilidade de preparo, que é uma medida relativa, influenciada pelo conhecimento culinário de quem compra ou prepara a carne. Com isso, se conseguirmos ensinar como preparar diferentes cortes, eles poderão ter sua demanda aumentada. Outra possibilidade é a criação de novos produtos.
Recentemente tive a oportunidade de provar um cupim pré-cozido, que tinha seu tempo de grelha extremamente reduzido. Outra ação que aumentava o valor do corte, podendo aumentar a facilidade de venda do produto e quem sabe seu preço.
Outras ações, como comunicação sobre qualidades da carne bovina e seus benefícios numa dieta saudável devem ser comunicados pelo setor ao consumidor final. Novos canais de distribuição deveriam também ser estimulados, com a concentração de venda nas grandes redes de supermercados, o poder de negociação fica cada vez menor para os demais elos da cadeia.
O mercado de alimentos está cada vez mais competitivo, com um número cada vez maior de ofertas diferenciadas e produtos substitutos. É preciso repensar nossa oferta de produtos ao mercado, buscando conciliar o que é produzido com o que é demandado. Só assim será possível comercializar de forma rentável toda nossa produção.
Na última reunião da Câmara Setorial da Carne Bovina de São Paulo, ocorrida semana passada, Pedro de Camargo Neto fez uma interessante afirmação, disse que somos muito bons individualmente (aumento de produtividade), mas ainda somos muito ruins coletivamente (controle de aftosa, rastreabilidade, promoção da carne bovina). Descobrir como melhorar nossa atuação coletiva é nosso grande desafio.
Como frase final, gostaria de compartilhar com você leitor, uma antiga citação dos índios Ayama, “Quando tínhamos todas as respostas, mudaram as perguntas”. Essa frase representa muito bem o momento em que vivemos. Quando pensávamos que estávamos ultrapassando todos nossos obstáculos de produção – sanidade, genética, nutrição, manejo – o desafio da lucratividade mudou, passando agora para a comercialização do produto final.
0 Comments
Parabéns, Miguel. Foi no ponto.
Um abraço,
Fabiano
Mais um valioso tijolo na construção da ‘nova casa’ da pecuária brasileira. Ao refazer as perguntas encontraremos, quase automaticamente, as opções e respostas.
Sua aula prática indica algumas pistas importantes e externaliza, mais uma vez, o calcanhar problemático do setor:
Como estender a excelência individual em direção a uma atuação coletiva mais eficaz?
Parece-me que o BeefPoint poderá ser um fórum adequado para discutir este desafio neste Espaço Aberto. Vamos, assim, aguardar as manifestações dos diretamente interessados!
Sobre a elasticidade da demanda é possível discutir muito. Todavia, sua leitura é objetiva e certamente focaliza nos pontos nevrálgicos da questão.
Porém, não convém sobre-estimar o ‘poder’ do produtor na formulação e implementação de novas estratégias de comercialização da carne (absolutamente necessárias e já bastante atrasadas).
Isto compete mais aos outros elos da cadeia que deveriam passar a maior ‘demand orientation’ como proposta técnica para o vasto universo dos invernistas e confinadores.
Em várias ocasiões me vejo sem saber como preparar um corte. Talvez por falta de experiência ou falta de habilidade, mas o que ajudaria muito a mim e outras pessoas é a informação. É necessário que nas embalagens dos cortes venha também o modo de preparo, facilitando a vida do comprador.
Outro ponto interessante que precisa ser levantado é que quase não vemos propagandas na televisão, pelo menos eu não vejo nada sobre carne bovina, assim como temos com o frango e até suínos, basta assistirmos TV para ver propagandas com duas grandes marcas que atuam nessa área.
Existem muitos problemas a serem resolvidos no campo, mas também a comercialização da carne está defasada, temos que nos atentar a isso, pois é aí que teremos a remuneração de toda a cadeia, é claro que não podemos esquecer da produção.
Em uma discussão com um Professor levantei a hipótese das marcas, rótulos, ou seja, “Picanha da empresa X”, ou “costela Y a mais gostosa”. Isso já existe, mas é muito deficiente. Uma coisa é certa, a mídia influencia a maneira e costumes das pessoas, bem como estas, na sua grande maioria, não sabem exatamente o que vão comprar quando entram em um supermercado.
Enfim, “a propaganda é a alma do negócio”. De nada me adianta ter o melhor animal se este mais adiante vai se transformar em um pedaço indefinido de corte exposto as moscas em uma feira aberta.
Parabéns caro Miguel,
Como profissional do ramo de produção de carne bovina fico indignado muitas vezes da inércia do setor comercial da carne bovina.
Enquanto podemos ver ao entrar no supermercado uma gama de novidades de produtos temperados, padronizados e de fácil preparo no segmento avícola e da suinocultura, produtos estes que tem a cada dia uma crescente participação na mesa dos consumidores.
Enquanto nosso processo industrial não se modernizar, fornecendo uma carne padronizada e de fácil preparo no dia a dia dos consumidores, teremos uma participação cada vez menor desta fonte de proteína tão essencial no prato dos consumidores.
Caro Miguel,
Estamos em um processo de mudança muito profundo na bovinocultura, processo o qual, diga-se de passagem, as cadeias da avicultura e suinocultura passaram a umas duas décadas atrás.
Eu tive a oportunidade de trabalhar na área de suinocultura por vários anos e o que se constata é que infelizmente a mentalidade da maioria dos representantes da cadeia bovina é ultrapassada e prejudicial ao setor, preferem ficar acusando aos eficientes da cadeia e disfarçar suas debilidades as quais vinham sendo camufladas com uma economia de inflação.
O cenário mudou ou está mudando violentamente e é óbvio que continuará na atividade quem se dedicar e trabalhar em conjunto com a cadeia completa (produtores, processadores e consumidores), pois achar que somente unindo forças da parte da produção se resolverá o problema é meio que não entender que essa é uma parte de toda a cadeia e que a mesma precisa funcionar em HARMONIA para haver ganho a todos.
As mudanças são necessárias e benéficas em longo prazo, e se precisa pessoas visionárias que elevem a cadeia completa a patamares de produção de primeiro mundo, não somente em termos de produtividade e volume, mas também em termos de qualidade sanidade, precisamos entender que tudo o que produzimos tem um único objetivo final… gerar riquezas, mas dentro de tudo isso tem que respeitar o que movimenta toda essa geração de riquezas o CONSUMIDOR que cada vez mais é exigente e que tem muitas opções na hora de decidir aonde gastar seu dinheiro.
Artigo de muito fundamento, esperamos que seja divulgado e ajude a vermos as verdades camufladas.
Agradeço o espaço.
Leandro
Miguel, estes são sem dúvida os pensamentos e conclusões mais pontuais que eu posso entender, e para os quais todos aqueles que participam da cadeia da carne bovina se preocupem.
Estamos perdendo campo no mercado interno onde vendemos 80% de nossa produção.
Eu não conhecia estas estatísticas, mas já imaginava que o problema não era simplesmente de preço.
É muito bom ler isto que você escreveu, para mim é um sinal de conscientização da realidade, e que existe uma chance de mudança em nossa cultura de consumo e comercialização da carne.
Meus sinceros parabéns pelo artigo.
Daniel De Stéfani
ABCBSenepol