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Enio Marques: o impacto da vaca louca para o Brasil


Enio Antonio Marques Pereira é médico veterinário formado pela USP. Trabalhou durante 30 anos no Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), onde foi chefe do Serviço de Inspeção Federal, secretário de Produção, secretário Nacional de Defesa, secretário-geral adjunto, ministro interino, tendo sido representante do Mapa no Conselho Nacional de Saúde e no Conselho Nacional de Metrologia e Qualidade Industrial.

Após esse período, foi diretor-executivo da Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes). Encerrado seu mandato em 2003, passou a dedicar-se a sua consultoria, sendo, atualmente, consultor da Abrafrigo (Associação Brasileira dos Frigoríficos).

Em sua trajetória, também foi consultor da Organização Pan-Americana da Saúde e diretor técnico da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados.

Enio Marques concedeu entrevista ao BeefPoint sobre a “vaca louca” e seus impactos no mundo e no Brasil.

1- Há uma espécie de euforia no Brasil após o surgimento do caso de EEB nos EUA. Como o senhor analisa os últimos acontecimentos?

Enio Marques: A “vaca louca” é muito emblemática, marca a transição dos problemas tradicionais em saúde para problemas novos. A EEB é uma proteína no cérebro que, por uma razão qualquer, se desestruturou, sendo contaminante de outras proteínas, as quais se alteram e degeneram o cérebro. É uma mutação, um desequilíbrio de uma proteína. Os fatos nos EUA, por serem um país grande, muito organizado, que trabalha as preocupações com a doença há muito tempo, cria uma dimensão maior que em outros lugares. Como há muitos anos trabalham com análise de riscos, conhecendo o perigo potencial, realizaram um trabalho de comunicação social sobre os riscos, e cada um, consumidor, produtor, etc., sabe o papel que tem de cumprir.

A ocorrência da doença muda a forma de enxergar a administração dos perigos. Existe a percepção do consumidor de que uma produção mais livre, mais natural, inibe a possibilidade da “vaca louca”. Esse é o fato relevante, a doença ocorreu em um lugar onde os consumidores são mais bem-informados. Isso significa, em determinado período, alterações nas decisões das pessoas. Algumas pessoas com essa informação substituirão o produto. Essa atitude irradia para todos os lugares e países do grupo que, como os EUA, têm renda alta, esclarecimento, muita informação.

O impacto é igual, sendo que, nesses lugares, os donos das prateleiras, que têm contato com o consumidor, criam soluções para manter o nível de consumo ou do gasto. Não têm compromissos com os produtos, mas em manter os clientes comprando dele. A ponta de mercado é que corre atrás se tiver necessidade de ter alternativas, criar demanda, e gera impacto em preço para compensar. O Brasil ganha nesse espaço de tempo, ganha mais preço por seus produtos. Ganha também nos preços de suínos e aves.

E talvez, no futuro próximo, na carne bovina. Dependendo do desequilíbrio de oferta e procura, se a pressão em cima do produto brasileiro crescer, poderá ter aumento. O Brasil trabalha na âncora européia, não no fluxo dos EUA e dos países asiáticos, no qual quem trabalha forte são EUA, Austrália e Nova Zelândia. Faltará carne na Austrália, os preços subirão e aquele país precisará de um tempo para ajustar sua produção. O dono da prateleira é muito prático e criará soluções para a manutenção de seus clientes. Nesse tempo, já percebem que a alternativa brasileira é segura. Correm atrás, mas só depois amarrarão os negócios. Antes disso não, quem ganhará dinheiro é quem tem logística e clientes.

2- O Brasil anuncia que não tem vaca louca e somos considerados risco 1, o mais baixo. Quais nossos pontos fortes? E nossos pontos fracos?

Enio Marques: Uma coisa é certa. O capítulo do código zôo-sanitário da OIE (Organização Internacional de Epizootias) explica como tem de ser a política para EEB, referência para todo o mundo. Assim, é preciso medir os pontos fortes e fracos naquele parâmetro.

O ponto forte do Brasil é a produção extensiva, não tem ambiente tão artificializado como no Hemisfério Norte. O ponto fraco, como nossa cultura é tradicional e não nos leva a tomar nota do que fazemos, não estamos acostumados a isso.

A análise desses pontos é sempre em relação à regra internacional, que contempla dois pontos: um externo, por meio de animais e ração, pois se tiver um prion infectante, pode vir nos tecidos; e um interno, que se refere à quebra do uso de resíduos de bovino em bovino, pois todos os animais que morram por sintomatologia nervosa têm de ter coletada amostra para testes, como está explícito no site www.oie.int. Quanto aos fatores externos, a medida é proibir a importação de animais e tecidos que possam conter tecidos de risco; com relação aos internos, cortar a sobra de boi na cadeia alimentar e fazer o teste. É preciso saber de cor e salteado este código da OIE.

O produtor é ponto fraco também. A maior parte dos produtores, por termos vivido sob arbítrio muito tempo, não está acostumada a questionar. Acredito que nunca tenham lido a Lei Agrícola, o capítulo de defesa agropecuária. E ele tem de saber, no caso da “vaca louca”, qual a política. Tem de anotar direito tudo que acontece. De quem compra, insumos, serviços, ocorrências, providências, se cumpriu recomendação, para não esquecer e mostrar que cumpriu.

3- Quais seriam as medidas para reforçar/assegurar nosso status “livre de EEB”?

Enio Marques: Medidas da OIE, providências do governo e dos agentes econômicos. Do governo, publicar o relatório de avaliação de risco anual, dar publicidade a isso, informando se importamos de algum lugar, se trouxemos ração, se importamos de algum local de risco, se estamos tirando os tecidos de risco da cadeia alimentar. Ele tem de oferecer as informações para toda a cadeia de prestadores de serviços. Tem de ter articulação forte com associações de profissionais e conselhos que fiscalizam o serviço profissional. E ampliar a rede de serviços.

Os agentes econômicos (fazendeiros) têm de saber direito o papel a cumprir frente à “vaca louca”, tem de coletar material de todo animal que morrer com sintomatologia nervosa e mandar para o laboratório da rede, registrar tudo que acontece na sua propriedade. Não utilizar, em hipótese alguma, resíduo de material de bovinos, nem farinha. O ponto forte é o pasto. Mesmo assim, não adianta se não garantir a quebra na cadeia alimentar. Os custos dessas medidas, em sua maioria, não são monetizados, não envolvem valor em dinheiro. São providências políticas, conscientização, utilização de uma massa critica que já existe.

Temos tudo isso, e, colocado em linha adequada, interagindo com a lógica em sistema único que não temos, envolve um baita de um custo que é mais político do que dinheiro. Imaginamos que pelos menos 2% do valor final dos produtos têm de ir para o sistema de garantia. Isso significaria controle de qualidade, controle governamental, propaganda, informação, treinamento, universidades, ensino a distância. É um valor insignificante diante dos benefícios. Quem paga é o usuário dos produtos. Quem não tem pré-requisitos é tirado fora, não havendo o risco de agentes não-cautelosos exporem o consumidor a riscos. Custa muito pouco. Trabalhar com tecnologia adequada custa menos do que com qualquer tecnologia.

4- Os EUA têm um dos sistemas de vigilância sanitária mais desenvolvidos do mundo. O senhor acredita que o caso de EEB pode forçar mudanças nos programas de controle sanitários no mundo?

Enio Marques: Pode e vai mudar. Porque agora, o tribunal de contas dos EUA fez uma auditoria grande dos serviços oficiais, percebeu as imperfeições e pediu à secretária de Agricultura (Ann Veneman) que corrija. São defeitos nos controles, o governo não conseguiu manter uma forma prática para verificar se estão cumprindo ou não, tendo de reformular a maneira de fazer os controles. Isso tem implicações no mundo inteiro. Ferramentas de diagnóstico de componentes de risco serão aperfeiçoadas. Todo mundo sabe o que precisa ser feito. O que se discute muito é como fazer, não basta estar no papel, mas ser cumprido. Essas ferramentas auxiliares, criadas para medir se isso tem sido feito, envolverão os agentes. Os serviços oficiais verão a prova de que cumpriram.

5- Os principais mercados atendidos pelos EUA são Japão e Coréia, México e Canadá e Rússia. Quais as oportunidades no curto e médio prazo para o Brasil, nesses mercados?

Enio Marques: O Brasil não participava do mercado de carne in natura na corrente do Pacífico. De três anos para cá, entrou nessa corrente, no Chile, que teve problemas com relação ao abastecimento argentino. O Brasil, mostrando a segurança de seu produto, passou a exportar para lá. O Chile compra 100 mil toneladas por ano da carne bovina brasileira. Os mercados atendidos pelos EUA têm acordos comerciais fortes com países da Ásia e do Nafta. Já os acordos com a Rússia não são tão expressivos hoje em dia; antes, os EUA tinham mais da metade desse mercado, sua cota é razoável, mas não como antes. A partir de 2005, depois da reunião da OMC (Organização Mundial de Comércio), o Brasil terá chance nos países clientes dos EUA e até nos EUA. Depende de fechar acordos na OMC, na Alca, com os donos de prateleiras. A precisará casar com B, que terá de casar com C, este com D e daí por diante.

6- Como o senhor analisa o atual estágio de controle de doenças como aftosa, brucelose e raiva no Brasil e seu impacto na capacidade do Brasil de exportar? Quais são as ações mais urgentes nessa área?

Enio Marques: Há dois momentos: o das doenças de fundo imunodepressivo e o da degenerativa. Aftosa, brucelose e raiva fazem parte do paradigma passado das doenças, os meios de gerenciamento estão disponíveis, basta querer usar. As questões novas, os paradigmas novos estão ligados à prevenção, isso é que dá uma vantagem estúpida para o Brasil. Tem uma quantidade enorme de perigos que custam caro no Hemisfério Norte, os quais não ocorrem no Brasil; aqui, os que ocorrem têm custo menor. Essas três doenças fazem parte de um passado e são resolvidas com tecnologia adequada. Um sistema de produção organizado resolve isso com os pés nas costas. Basta implantar a Lei Agrícola. Já está lá, define o papel dos governos federal, estaduais e municipais, cria um sistema único de saúde para os animais, é participativa, descentralizante, quebra mitos e redistribui tarefas, dá ao agente econômico a responsabilidade pelo bem que produz.

7- Quais as oportunidades para o Brasil na área de sub-produtos bovinos, para produção de medicamentos e cosméticos? O senhor poderia comentar como é a atuação do Brasil nesse ramo de negócios?

Enio Marques: O Brasil tem um espaço muito grande. Como tem um dos maiores abates do mundo, tem quantidade muito grande de pedacinhos de animais. Aproveitamos muito pouco os subprodutos, desmembramos o animal para depois juntar tudo e produzir farinha. A agregação em cima de subprodutos cresceu muito pouco no Brasil, mas agora, diante da dúvida com relação a esse problema, todos passarão a olhar melhor para o País, teremos investimentos grandes para colheita dessas frações e acredito que será a maior plataforma mundial desse tipo de produto. Infelizmente, a maior parte se joga fora. O Brasil tem muito a crescer no aproveitamento de glândulas, ácidos, sais, gorduras, uma quantidade estúpida de coisas, haja vista o sucesso da OX (empresa brasileira de cosméticos), que fabrica seus cosméticos usando material extraído dos bovinos. Jogamos fora tudo isso. Creio que os subprodutos serão mais destinados a cosméticos. Os medicamentos, por medida de segurança, utilizam engenharia genética. Toda a insulina, por exemplo, é produzida por engenharia genética, por meio de uma bactéria. O Brasil é a economia do desperdício na pecuária, perdemos genética, subprodutos etc… Se compararmos com Austrália e EUA, deixamos de fazer dinheiro com no mínimo 60% desses subprodutos, cerca de 20 milhões de animais são jogados fora. Seu uso diminuiria para o consumidor de carne uma boa porcentagem do custo por conta disso, além de gerar emprego.

8- Como o senhor analisa a atual legislação e a efetiva fiscalização brasileira em relação à utilização de farinha animal e cama de frango na alimentação de ruminantes e possível contaminação cruzada em fábricas de ração que produzem para ruminantes e não ruminantes?

Enio Marques: As normas foram adotadas. Existe a Lei Agrícola, portarias que proíbem utilização de farinha e cama de frango, está escrito. A forma de controlar, no esquema tradicional, com um fiscal em cada lugar, funciona? A questão é: Como trabalhar? Via protocolo de produção e conscientização do produtor de que esse material é de risco para seu negócio e que ele tem de tomar a decisão de não usar. Além disso, que as auditorias possam ser feitas por qualquer um e não por um agente do governo. Quanto à contaminação cruzada, boas práticas e HACCP garantem, quem não tem isso não pode estar no mercado. Tem-se de dar publicidade a isso e governo tem de fechar o local quando não cumpre.

9- Em relação aos consumidores brasileiros, que tipo de ação o senhor acredita que a cadeia da carne deva tomar? Seria o momento do SIC – Serviço de Informação da Carne realizar algum tipo de campanha?

Enio Marques: O SIC é fundamental para corrigir os mitos, mostrar a segurança do produto, o valor que ele tem, o papel dos agentes nessa coisa toda, o que o produtor faz para garantir a segurança. Em uma campanha de comunicação de risco, tem de envolver o consumidor. Este precisa conhecer seu papel para manter a segurança de seu produto, desde como guardar, empregar práticas de higiene e verificar a procedência. O consumidor tem no agente de venda (supermercado, ou seja lá quem for) o agente econômico de sua relação. Temos um comportamento de risco (hoje, não se fala em grupo de risco).

Se o consumidor for esclarecido e administrar bem os perigos, poderá utilizar, usufruir qualquer coisa, inclusive a carne. A campanha tem de ser no bê-á-bá, no ponto de venda, mostrar para o usuário algum tipo de informação e, caso queira aprofundar-se, indicar que ele pode buscar no SIC.

Uma campanha massiva não funciona, precisa atingir a categoria de consumidor no momento do consumo. Às vezes, esconde-se uma informação pensando ser esta a forma de não afetar o consumo. Isso não funciona.

10- O senhor acredita que esse incidente irá acelerar a adoção e exigência da rastreabilidade entre os países exportadores (e importadores)?

Enio Marques: Tranqüilamente, apressa a rastreabilidade, no conceito de segurança alimentar, da fazenda até o momento do uso, envolvendo todos os elos. Cada um ter o registro. Os donos das prateleiras são muito rápidos e já estão fazendo isso, definindo protocolos para o fornecedor cumprir e exigir do fornecedor de matéria-prima, o que facilita o recall. Mesmo a carne do abate tem de ter isso. O açougue sabe de quem comprou, tem nota, etiqueta, transportador. Isso é rastreabilidade. O que temos no Brasil hoje é identificação de rebanho.

11- Qual a sua avaliação com relação ao número de animais testados? Será que os países importadores exigirão mais testes que atualmente?

Enio Marques: A OIE diz que os animais que morram com sintomatologia nervosa têm de ser testados. O governo precisa publicar seu relatório anual para a gente saber em que porcentagem isso foi feito. Como a fragilidade maior está na fazenda, depende do fazendeiro. Os mais esclarecidos têm isso tudo, como estão preocupados com seu business, estão registrando. Isso fará com que exista credibilidade. A chance de vir a ter problemas é muito pequena. Precisamos ir fundo para continuar com a certeza de que não temos e mostrar para mundo.

12 – Que sugestões daria aos elos da cadeia?

Enio Marques: Zelar pela segurança do alimento da fazenda ao consumidor, com responsabilidade de todos os agentes, até o ponto de venda. E responsabilidade do usuário em sua casa. Precisamos ter a consciência de que o nosso comportamento, nosso estilo de vida ditará a exposição a algum problema ou não. Temos de nos esclarecer, procurar informações. Somos nós que nos protegemos, e não o Estado, que tem de garantir a existência de regras, uniformidade, e informar. O consumidor é o principal nesse processo todo. Ele é que definirá se uma cadeia funcionará com maior ou menor atenção.

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