Por Leonardo Prandini1
A centenária hegemonia dos pecuaristas escoceses e irlandeses é ameaçada pelo avanço significativo da carne bovina importada naqueles países. Mesmo submetendo-se a altíssimas tarifas de importação impostas pela Comunidade Européia (CE), a carne brasileira preserva um preço extremamente competitivo e gera protestos públicos dos produtores locais. Estes exigem o uso de medidas protecionistas para garantir sua atividade no futuro. Uma nação ainda em recuperação da crise da “vaca-louca”, com o consumo atualmente em alta, além de um dos mais elevados preços do mundo, o Reino Unido revela grandes oportunidades para o comércio internacional de carne bovina.
Com custos relativamente altos de terra, mão de obra, alojamento e alimentação do gado durante o rigoroso inverno, a agropecuária européia é inábil em concorrer internacionalmente. A última reforma da Política Agrícola Comum em 2004 ficou marcada pelo incentivo à preservação ambiental e pelo desestímulo à produção agrícola competitiva. Dada a sua auto-insuficiência produtiva, o Reino Unido é historicamente um importador de carne bovina, posição a qual a CE também assumiu em 2003. De acordo com previsões da FAO, este déficit tende a aumentar gradativamente a médio e longo prazo.
Desde 1995 o consumo de carne no Reino Unido cresceu cerca de 40% enquanto a produção manteve-se estática em 700 mil toneladas/ano. Este mercado caracteriza-se pela sazonalidade da demanda no verão e no fim de ano, quando observa-se um aumento significativo no consumo de bifes para churrasco e cortes nobres.
No Reino Unido a entressafra acontece no verão (junho-agosto), a única estação que possibilita a engorda e finalização do gado a pasto. Em todas as outras estações o gado é confinado. Desta forma o crescimento temporário da demanda neste período do ano e a baixa oferta de animais para abate sustentam a alta nos preços de atacado – que neste ano atingiu £2,06/kg (cerca de R$ 140/@).
Apesar do crescimento maciço da produção doméstica no final do ano, esta é insuficiente para suprir a demanda de carne naquele país no período natalino. Neste cenário as importações se fazem necessárias para preencher a lacuna entre oferta e demanda. Segundo o Meat and Livestock Commission (MLC), este déficit atingiu valor recorde de 33% do consumo em 2004, com aumento previsto de 9,4% em 2006 – ou seja, serão necessárias 356,7 mil toneladas de carne importada naquele ano.
Apesar de sua função complementar à produção local, as importações funcionam como freio da escalada de preços de gado durante o período da entressafra britânica. Mesmo dando prioridade à carne nacional por preferência do consumidor local, as cadeias varejistas, restaurantes e a indústria alimentícia optam pelo produto importado mais barato, o qual pode ser fornecido em grandes volumes rapidamente e proporciona melhores resultados econômicos durante os curtos períodos de pico no consumo.
O que pode ser considerado um benefício da globalização para empresas e consumidores britânicos, a importação de carne barata tem sido severamente criticada pelas entidades de classe dos pecuaristas escoceses e irlandeses. Campanhas organizadas em supermercados e na mídia estimulam o consumidor a rejeitar o produto estrangeiro. Em sua maioria, a carne brasileira é vendida a preço de entrada ou oferta (1o preço) no varejo, o que atrai acusações de baixa qualidade, riscos de problemas com sanidade animal, rastreabilidade inconsistente, desrespeito aos direitos de trabalhadores, ao meio ambiente e ao bem estar animal.
A National Farmers Union (NFU), principal órgão articulador dos protestos, defende que a carne importada vendida nos supermercados britânicos acate às mesmas regulamentações da produção local – o que inclui principalmente a rastreabilidade integral do rebanho a partir do nascimento, a erradicação total de doenças infecto-contagiosas e a conformidade plena com as leis trabalhistas e ambientais do Reino Unido.
Uma vez que as barreiras tarifárias não são suficientes para conter a crescente penetração do produto brasileiro no Reino Unido, as entidades da classe agrícola defendem juntas um lobby à carne importada. Exige-se legalmente que os supermercados informem ao consumidor o país de origem da carne vendida. Assim como ocorreu na França, os escoceses e irlandeses pressionam o governo para que a lei também entre em vigor para os restaurantes. Ao mostrar a origem da carne no cardápio dá-se a oportunidade ao consumidor de escolher o produto de acordo com sua preferência. Segundo o MLC, essa medida pode reduzir os cerca de 70% de carne importada que é servida em restaurantes britânicos atualmente.
Na Escócia e sobretudo na Irlanda (maior exportador de carne bovina da CE), a pecuária de corte gera uma contribuição significativa ao PIB do agronegócio nacional. Além disso, a atividade é fonte exclusiva de sustentabilidade econômica para grande parte das áreas rurais destes países. O clima desfavorável e o solo pobre desafiam a prática agrícola competitiva nessas regiões, gerando o êxodo e o envelhecimento da população rural. Atualmente a idade média de seus agricultores supera os 40 anos.
Nestes países a pecuária assume um importante papel sócio-econômico. Grandes esforços são feitos para aumentar a competitividade do produto bovino local. Em entrevista o economista chefe do MLC declarou que apenas o melhoramento genético, o uso de certificações de qualidade e o emprego de tecnologia em processos de abate, pré e pós-abate aperfeiçoarão a produtividade escocesa para enfrentar a concorrência internacional.
Campanhas publicitárias destacam a mais alta qualidade e a segurança alimentar da carne escocesa, posicionando-a na mais elevada faixa de preço do mercado. Em 2004 a campanha do “Scotch Beef” consumiu £1,4 milhão (cerca de R$ 6,3 milhões), fundada através de uma taxa compulsória por animal abatido.
A campanha visa aumentar os níveis de reconhecimento da marca no Reino Unido e no exterior, e conta com propaganda na TV, promoção em supermercados e em açougues, veiculação de receitas e dos princípios de uma alimentação saudável (com Scotch Beef!) em escolas e agremiações esportivas. A campanha enfatiza que há centenas de anos a carne é produzida tradicionalmente nas pastagens naturais da Escócia.
Da mesma maneira, produtores irlandeses prospectam novos mercados na Escandinávia e nos países do leste europeu por meio de campanhas de marketing, e através da coordenação vertical com a cadeia de suprimento das grandes redes varejistas internacionais.
Considerando a volatilidade do câmbio e a preferência dos europeus pelo produto local, o preço tende a deixar de ser a vantagem uma competitiva da carne bovina no Reino Unido.
A exemplo do Uruguai e da Austrália, o controle sanitário eficaz e um sistema de rastreabilidade confiável aplicados a todo o rebanho podem viabilizar a transposição ao lobby não tarifário que tende a se intensificar na CE, além de driblar as críticas dos escoceses e irlandeses quanto às competências da pecuária de corte brasileira. O mercado consumidor existe, no entanto exige comprometimento para conquistá-lo.
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1Leonardo Prandini é administrador de empresas e atualmente cursa mestrado em Agribusiness Management no Scotland Agricultural College, em Aberdeen, Escócia
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Leonardo Prandini, parabéns pela radiografia que faz nesta matéria sobre a atualidade do cenário da carne brasileira no mercado do Reino Unido.
Você oferece uma base clara e inteligente que, com certeza, vai ampliar a compreensão dos exportadores brasileiros quanto às suas lições de casa e desafios que se apresentam, agora muito além das velhas barreiras tarifárias.
Iracema Foz
Jornalista
Gostei principalmente, por ficar informado do preço da @ no mercado do Reino Unido. Procuro há muito saber o preço da @ em vários mercados como UE, Austrália e EUA. É bom ter um parâmetro para comparar nossos preços.
Desconheço a situação do abastecimento de carne vermelha no Reino Unido como um todo. A carne brasileira está estabelecendo um novo patamar de preço nos mercados europeus, em que pesem as tarifas protecionistas.
Sentindo-se prejudicados, os produtores e os abatedores lançam mão de todo o recurso possível para afastar a concorrência do Brasil. Ora é a aftosa, ora é a floresta amazônica, ora o seqüestro de carbono, ora é a deficiência dos nossos frigoríficos.
De nossa parte, já inventamos uma trapalhada para tentar satisfazer os consumidores europeus. Refiro-me ao Sisbov que não vai adiantar muito. Com brinco ou sem brinco, temos que achar meios de obter pelo menos uma fatia desses mercados. Por vezes a matéria vai bater no Itamaraty, então….pecuaristas, abatedores e exportadores têm que juntar forças para superar essas dificuldades do presente e do futuro.
Não tenhamos ilusões: os produtores de carne entreverada da Grã Bretanha não vão arriar armas tão fácil. Seus custos são muito altos e há uma tradição criatória “britânica” difícil de alterar”. Farão tudo que puderem para afastar a concorrência brasileira dos mercados que costumam suprir. Cordial abraço.