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Excelente artigo sobre o histórico de consumo de carnes pela espécie humana

Infelizmente, os responsáveis pela reportagem do Fantástico sobre carnes vermelhas não esclareceram os graves equívocos divulgados na mesma. Entretanto, provavelmente como conseqüência da referida reportagem, foi escrito pelo Dr. Drauzio Varella, um excelente artigo sobre o histórico do conhecimento da relação entre colesterol, gordura animal, nutrição humana e saúde, publicado na Gazeta Mercantil de 03/08/01 com o título de “Verdade Ancestral”.

Pelo conteúdo, importância e grande interesse que deve despertar, tanto para os integrantes da cadeia da carne bovina como provavelmente pelos consumidores desse nobre alimento, achamos que o referido artigo deve ficar permanentemente disponível no BeefPoint. Portanto, vamos transcrevê-lo na íntegra nesse espaço.

“A espécie humana sempre comeu carne. Nas cavernas, dava preferência a ela, como concluíram estudos de arcadas dentárias. É provável que o homem só se conformasse com outros alimentos quando a caça rareava. Guiado pelo instinto do paladar, corria atrás da carne pelo alto valor calórico: um grama de gordura produz nove calorias, um grama de açúcar ou proteína, quatro.

Por milhões de anos, mesmo quando o homem buscou na agricultura as calorias para manter a família, a preferência pela carne resistiu. E assim permanece. Não é fácil subverter ordens estabelecidas em milhões de anos; a genética é mãe castradora.

A desnutrição sempre foi endêmica. Em todas as civilizações conhecidas, comida abundante e variada era privilégio. Há apenas um século e meio, a batata da Irlanda foi dizimada por uma praga, e um milhão de pessoas morreram de fome. O número de mortos dá idéia da monotonia da dieta irlandesa da época. Na Europa, a fome resistiu à 2ª Guerra; era preciso ser rico para comer carne todo dia. Mesmo hoje, fartura de alimentos é privilégio de um ou outro país.

O passado de fome crônica moldou o consumo de energia da espécie humana. A pressão seletiva favoreceu a sobrevivência dos que comiam o máximo que agüentavam, toda vez que encontravam comida. Entre eles, levaram vantagem reprodutiva os que armazenavam, sob a forma de gordura, as calorias ingeridas em excesso. Ser dono de uma reserva adiposa ao redor do corpo era decisivo quando chegavam as vacas magras. Os magrinhos ficavam inferiorizados na hora de enfrentar jejuns prolongados. Num mundo de predadores, o caçador enfraquecido vira caça no dia seguinte.

A seleção natural só tem olhos para o indivíduo. A ela não interessa o futuro de qualquer espécie. Haja vista quantos milhões delas acompanharam os dinossauros nas extinções em massa. Não existe grandiosidade nos desígnios da evolução, ela segue curso inexorável, mero resultado da soma aritmética de pequenas conquistas individuais que conferem microvantagens na hora da reprodução.

A evolução não moveu um dedo para impedir que o homem moderno, filho de caçadores e coletores que se matavam por comida, inventasse a poltrona e o disque-pizza. Como resultado dessa ruptura com a tradição de escassez permanente de alimentos, vieram a obesidade, diabetes, hipertensão e os infartos do miocárdio.

Depois da 2ª Guerra, nos países industrializados, foi descrita uma epidemia de ataques cardíacos em homens de 50 anos e mulheres na menopausa. Essas mortes criaram clamor público: o que estaríamos fazendo com nossas vidas para merecer tal punição?

Habituados a interpretar fenômenos biológicos com lógica religiosa, os homens associaram o prazer ao pecado. Sexo e paladar, os maiores prazeres conhecidos, são os principais suspeitos de qualquer doença. Como no caso dos infartos não parecia razoável culpar o sexo, praticado à larga pelo homem desde tempos ancestrais, a suspeita caiu sobre a alimentação.

Estávamos nos anos 60, era da contracultura, da valorização da vida campestre, em oposição à sociedade industrial. Era moda acreditar na alimentação vegetariana sem fertilizantes químicos como condição de saúde. A suspeita, então, caiu sobre a carne vermelha, o alimento preferido pela maioria das pessoas. Afinal, gostamos de peixe, mas precisa ser bem feito; e de frango, a depender do tempero; mas carne vermelha, de qualquer jeito é bom. Basta pôr na brasa e jogar sal grosso. O cheiro de peixe na panela faz perder o apetite, o de frango é neutro, mas o de carne junta saliva na boca. É reflexo ancestral.

Ao redor de 1785, Edward Jenner, o descobridor da vacina contra a varíola, ao autopsiar um paciente morto após dores no peito seguidas por um ataque cardíaco final, notou algo: ‘Depois de examinar as partes mais importantes sem encontrar nada que pudesse ser responsável pela morte súbita ou pelos sintomas que a precederam, estava fazendo um corte na base do coração quando o bisturi bateu em algo tão duro e granuloso que fez um dente na lâmina. Olhei para o teto, que estava velho e se desprendia, achando que um pedaço de gesso tivesse caído de lá. Mas, examinando melhor, pude ver a causa verdadeira: as coronárias tinham se transformado em canais ósseos.’

Estava descoberta a causa das dores no peito (anginas) e dos infartos do miocárdio: as placas endurecidas que obstruem as coronárias, as artérias que irrigam o músculo cardíaco.

Em 1904, o biólogo F. Marchand usou o termo aterosclerose para definir a natureza das placas obstrutivas. Em 1910, o bioquímico A. Windaus demonstrou que essas lesões continham seis vezes mais colesterol livre do que a parede da artéria normal, e 20 vezes mais colesterol esterificado.

Em 1912, um médico da armada russa, Nikolai Anichkov, induziu pela primeira vez aterosclerose em coelhos alimentando-os com gema de ovo e colesterol puro. Depois de algumas semanas de dieta, a aorta de 90% dos animais estudados começou a exibir as mesmas placas acinzentadas das coronárias das vítimas de infarto. Como 10% dos coelhos nessa dieta nunca desenvolviam placas, Anichkov concluiu acertadamente que o colesterol não era o único responsável pelo aparecimento delas. Em cachorros e ratos, ele não repetiu resultados semelhantes. Esses animais não desenvolviam placas nas artérias por mais colesterol que ingerissem.

Não seria sensato pensar que o coelho, vegetariano, desenvolvesse aterosclerose por não estar evolutivamente habituado a lidar com colesterol na dieta? E que ratos e cachorros, animais que comem de tudo, têm longa convivência com o colesterol, e, portanto, mais resistência à formação de placas? Detalhe tão relevante passou despercebido por Anichkov e pela maioria dos cientistas depois dele.

Os trabalhos de Anichkov, publicados em russo, ficaram esquecidos até os anos 50, quando foi descoberta a ultracentrífuga, aparelho que gira em velocidades vertiginosas, a ponto de precipitar em camadas por ordem de densidade as gorduras e proteínas colocadas em seu interior. Com a ultracentrífuga, o bioquímico americano John Gofman publicou na revista ‘Science’ um estudo mostrando que a gordura do sangue dos coelhos alimentados com colesterol era composta por duas frações principais: uma que ia para o fundo do tubo de ensaio centrifugado, e outra, de menor densidade, que ficava na superfície. Estavam descobertos o HDL e o LDL, respectivamente.

Gofman percebeu, ainda, que essa fração LDL se encontrava elevada nos coelhos que desenvolviam placa, mas nos 10% de animais que não a formavam, apesar da dieta rica em colesterol, a maior parte da gordura era transportada sob a forma de HDL. Haveria, então, um colesterol ‘bom’ (o HDL) e outro ‘ruim’ (o LDL).

Anos depois, o grupo usou a centrífuga mais potente da época para separar as frações de colesterol contidas em dois grupos de homens. No primeiro, foram estudados indivíduos que haviam tido e se recuperado de ataques cardíacos. No segundo, saudáveis. Os autores verificaram que os níveis de LDL eram bem mais altos nos homens ‘cardíacos’ e os de HDL, nos normais. Exatamente como nos coelhos, concluíram.

A descoberta do LDL como agente da aterosclerose aparentemente explicava por que algumas pessoas têm ataque cardíaco apesar de apresentar níveis normais de colesterol total. Entretanto, como o custo das ultracentrífugas para separar frações de colesterol eram proibitivos, pouca atenção foi dada ao HDL e ao LDL no sangue humano, por mais de uma década. Nos anos 60, quando surgiram métodos químicos para dosar frações de colesterol sem necessidade de ultracentrifugação, a determinação dos níveis de HDL e LDL virou rotina.

Para completar o cenário no qual eclodiria a guerra ao colesterol, prestes a ser decretada no mundo industrializado, é fundamental citar outros dois trabalhos realizados nos EUA.

Em 1952, o grupo do especialista em nutrição L. Kinsey demonstrou que dietas compostas de vegetais e baixos teores de gordura animal reduziam o colesterol na maioria dos seres humanos. Em seguida, um grupo chefiado por E. Ahrens, da Universidade Rockfeller, foi mais longe: as gorduras vegetais reduziam o colesterol graças à insaturação de suas moléculas. As animais aumentavam os valores por terem moléculas saturadas (com mais átomos de hidrogênio).

Os ingredientes básicos estavam reunidos para começar uma das maiores confusões intelectuais sobre a saúde do homem do século 20. Se existia um colesterol ‘bom’ e outro ‘mau’, as gorduras deveriam ser divididas em ‘boas’ (insaturadas, derivadas dos vegetais e dos peixes) ou ‘más’ (saturadas, como as da carne vermelha e dos derivados de leite). Esses trabalhos tiveram enorme impacto. Como a liderança mundial da ciência americana já era inconteste nessa época, a crença nas conclusões citadas se disseminou. A carne vermelha, os laticínios e a gema de ovo foram execrados. A indústria dos alimentos de baixos teores de gordura animal floresceu.

Quando analisamos as informações científicas que serviram de base para aconselhar mudanças tão drásticas no estilo de alimentação, no entanto, ficamos surpresos: elas não permitem tirar as conclusões apregoadas.

Embora 50% dos infartos do miocárdio ocorram em pessoas com colesterol normal, não há dúvida de que pessoas com níveis mais altos de LDL no sangue correm risco maior de doença coronariana. Está demonstrado, também, que a redução do consumo de gordura animal faz cair os níveis de LDL. O que não está comprovado é que ingerir menos gordura animal diminua a chance de ter ataque cardíaco ou de viver mais tempo.

Em outras palavras: até hoje, nenhum estudo epidemiológico para avaliar as conseqüências de uma dieta rica ou escassa em gordura animal na longevidade humana ou na prevalência de infarto do miocárdio conseguiu demonstrar relação de causa e efeito.

Por exemplo, o ‘Nurse’s Health Study’ acompanhou por 20 anos 50 mil enfermeiras do país que respondiam questionários periódicos sobre hábitos alimentares e problemas de saúde. O estudo, conduzido pela Escola de Saúde Pública de Harvard, envolve o maior número de participantes acompanhados até hoje em qualquer trabalho sobre o tema, por tão longo período, com tanto rigor.

A quantidade de gordura presente nas refeições diárias das 50 mil escolhidas foi tabulada com as enfermidades apresentadas por elas no período. Os resultados não demonstraram relação entre o número de calorias ingerido sob a forma de gordura animal e a incidência de doença cardíaca. Esses dados de Harvard foram confirmados em dois outros estudos: o ‘Health Professionals Follow-up Study’ e o ‘Nurses’ Health Study II’. Os três estudos juntos envolveram 300 mil pessoas, seguidas por mais de dez anos. As conclusões são as mesmas:

Dietas ricas em gorduras monoinsaturadas (como o óleo de oliva) reduzem o risco de doença cardíaca.

Dietas ricas em gorduras saturadas (como a carne vermelha) aumentam muito pouco, se tanto, o risco de doença coronariana, quando comparadas com dietas ricas em carboidratos, como pão, macarrão e doces. Outra surpresa foi a constatação de que as gorduras presentes na margarina são bem menos saudáveis do que as contidas na manteiga.

Os três estudos citados custaram ao National Institute of Health (NIH), que os financiou, US$ 100 milhões. Apesar do gasto, nenhuma agência de saúde do governo deu publicidade aos resultados finais, muito menos sugeriu que a orientação geral de cortar a gordura animal devesse ser revista.

A respeito dessa atitude oficial, Walter Willet, coordenador do ‘Nurses’ Study’, em entrevista à ‘Science’, revista oficial da Academia Americana de Ciências, disse: ‘É escandaloso.’ E questionou a política das agências de saúde americanas: ‘Agora, eles dizem que há necessidade de provas de alto valor científico para derrubar as recomendações vigentes de cortar gordura na dieta, o que é irônico, porque nunca tiveram provas de valor para estabelecê-las.’

Num dos artigos mais completos sobre o tema, na ‘Science’ de 30 de março deste ano, o autor, Gary Taubes, um dos editores da revista, afirma: ‘A convicção de que gordura na dieta mata, e sua evolução de hipótese a dogma, é um exemplo no qual políticos, burocratas, a mídia e o público desempenharam o mesmo papel do que os cientistas e a ciência.’

Taubes analisou a incidência de doença cardíaca nos EUA nos últimos 30 anos. Desde o início da década de 1970, quando foram divulgadas as recomendações oficiais para reduzir a ingestão de gordura animal no país, a mortalidade por ataques cardíacos de fato caiu. Como as calorias derivadas da gordura animal representavam 40% do total de calorias ingeridas nos anos 80 e hoje correspondem a 34%, as autoridades da área de saúde insistem que a redução das mortes deve ser atribuída aos novos hábitos alimentares americanos.”

Dr. Drauzio Varella
Gazeta Mercantil – Fim de Semana, 03/08/01, Páginas 1 e 2

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