Em 2003 a cadeia da carne bovina sofreu influências como nunca. Inúmeros fatores (alguns novos e outros já velhos conhecidos) impactaram a pecuária de corte brasileira e tudo indica que as mudanças tendem a ser cada vez mais rápidas. Gostaria de convidar os leitores do BeefPoint a um exercício de reflexão a respeito de alguns pontos que considero muito importantes e que trarão grandes mudanças a pecuária de corte no curto-médio prazo.
O avanço da agricultura em áreas de pecuária é um dos eventos que mais influem na pecuária de hoje. Existe uma mudança de pólos produtivos. São Paulo é cada dia menos importante para a pecuária. Por outro lado, rebanhos de estados como MT e RO têm crescido a uma velocidade incrível. Até a liderança do MS como maior rebanho do país foi ameaçada, graças a tomada de áreas de pecuária nesse estado. A pecuária estará fadada a operar apenas em áreas “baratas”, com logística deficiente, relevo não adequado a mecanização, etc?
O abate de matrizes continua muito elevado, pois grande parte das áreas transferidas para a agricultura é composta por fazendas de cria. Isso tem aumentado o deságio da arroba de vaca frente ao boi gordo e vai levar a um aumento do custo de reposição. Hoje a relação de troca bezerro/boi gordo é extremamente favorável para o invernista. Não é possível prever se o aumento do preço do bezerro se dará este ano ou no próximo, mas analistas de mercado são unânimes em afirmar que o cenário de preços vai mudar.
Por outro lado em algumas regiões já se observa um efeito inverso. Alguns agricultores já adotam técnicas de integração lavoura-pecuária, geralmente como uma necessidade para se aumentar cobertura morta na superfície e matéria orgânica no solo, ou para se quebrar ciclos de pragas e doenças. Esses “novos” pecuaristas têm atitude muito diferentes. Querem produzir uma grande quantidade de carne em pouco tempo (alta lotação e alto ganho individual). O que parecia quase impossível tem se mostrado viável em áreas de milheto e azevém, por exemplo.
Além disso, esse agricultor (agora pecuarista) pode exigir (ou tentar) mudar formas tradicionais de comercialização. Não trarão grandes mudanças sozinhos, mas junto com uma crescente leva de criadores/recriadores/invernistas podem batalhar por formas mais transparentes de comercialização. Será que veremos uma comercialização de bezerros fundamentada no peso vivo, padrão racial e status nutricional/sanitário? Será que podemos esperar uma comercialização com menos atritos?
Outros interessantes fatores podem contribuir para tornar a comercialização de animais para abate mais objetiva, menos determinada pela subjetividade. O aumento do percentual da produção brasileira exportada, aumento das exigências dos importadores e sistema de classificação de carcaças tendem a tornar as trocas produtor/frigorífico mais claras, facilitando a vida dos dois lados. O frigorífico tem dificuldade de encontrar um grande número de animais dentro de um padrão específico e produtores não conseguem se planejar hoje para produzir no futuro um animal adequado.
A rastreabilidade também tende a se tornar menos combatida. O recente caso de EEB nos EUA trouxe mais um argumento a favor. Países como Argentina, Uruguai, Canadá, EUA, Austrália entre outros não discutem que haver um sistema de rastreabilidade, baseado em identificação individual. O Brasil precisa discutir prazos e obrigatoriedade (ou não) para todo o rebanho. O MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) está finalizando algumas mudanças que tendem a dar mais robustez e segurança ao SISBOV, pois até pouco tempo o sistema brasileiro não resistia a uma avaliação um pouco mais a fundo.
Um exemplo muito simples é o balanço de 2003 do SISBOV, onde havia uma pequena percentagem de animais (do total rastreado) com status “dado baixa”, isto é, abatido. Isso quando todos sabemos que a grande maioria dos animais inseridos no SISBOV até hoje foi cadastrada em data muito próxima ao abate. Não “dar baixa” no banco de dados poderia levar a dúvidas em outros dados do sistema. De nada adiantaria criarmos datas e prazos para a obrigatoriedade progressiva do SISBOV se não houver uma grande preocupação com a forma que cada um desses “passos” está sendo dado.
Já se nota também que aumenta a cada dia a certeza que não é interessante ter ganhos individuais de curto prazo, em troca do risco de problemas generalizados. Como ocorreu com a vacinação contra febre aftosa, que já é consagrada, outros conceitos tendem a mudar. Cama de frango, anabolizantes já são considerados “palavrão” entre muitos técnicos e produtores. O BeefPoint tem recebido inúmeras mensagens de técnicos e produtores incentivando o completo banimento da cama de frango de rações de bovinos. Vale aqui uma lembrança de que o MAPA deve fortalecer a vigilância contra esse uso ilegal.
As exportações tendem a continuar em crescimento e o mercado indica que não haverá outro enorme avanço em volume exportado, mas a tendência é que os preços aumentem no mercado internacional e mais ainda os preços praticados pelos exportadores brasileiros. Essa é uma das metas do ex-ministro Pratini de Moraes à frente da ABIEC, uma vez que o Brasil vende hoje a carne mais barata do mundo. Para uma melhora considerável do preço da arroba será preciso também um aumento do consumo interno.
Há também uma tendência de consumo por alimentos mais naturais, orgânicos, livre de resíduos, etc. Isso poderá favorecer em muito o Brasil e será o melhor cartão de visita para missões japonesas e coreanas. Esse é um momento muito bom para o Brasil apresentar ao mundo nosso sistema de controle sanitário. Apesar de nossas deficiências (veja a reivindicação de longa data para contratação de mais técnicos para o serviço público e melhoria da remuneração), é uma boa hora para pleitearmos abertura de mais mercados. Há também uma tendência por valorização de projetos que contam com certificação de terceira parte de suas garantias de qualidade. Fica cada vez mais claro de que é preciso mais do que fazer, é preciso comprovar com credibilidade.
A cadeia da carne tem mudanças ocorrendo de forma mais acelerada. No entanto os mesmos fatores que pressionam o setor e muitas vezes tiram gente/empresas da atividade são os que trarão de forma indireta uma evolução mais rápida. A entrada da soja que por um lado “expulsa” um criador menos eficiente da atividade, vista por outro ângulo é quem faz do agricultor um recriador no período de inverno. Um novo criador que tem uma visão e experiência muito diferentes, que irá cometer alguns erros de iniciante, mas que pode contribuir com idéias e métodos de trabalho que não estávamos acostumados.
A pecuária de corte brasileira é difícil de se bater em competitividade. Mas temos que ultrapassar esses inúmeros obstáculos para tornar a atividade lucrativa e sustentável hoje e no longo prazo.
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Miguel, parabéns.
Até hoje o Brasil tem conquistado tudo na base da competitividade (preço) e do seu imenso potencial de produção.
A profissionalização do setor é agora o desafio para os próximos anos. Investir em adoção de tecnologia, segurança, sanidade, qualidade, promoção e marketing é a receita para conquistarmos cada vez mais espaço num mercado cada vez mais exigente.
Forte abraço,