Por Anderson Polles1
Após longo período de redação, sofrer restrição orçamentária e sobreviver a aftosa que abateu não só o rebanho, como também a economia do setor e o ânimo dos pecuaristas.
Quero aproveitar o momento e o calor da discussão estimulada pelo nobre Prof. Dr. Pedro Felício sobre a criação de uma Agência Federal Sanitária e, as recentes acusações recebidas de subsidiar a produção de carne por meio da destruição do meio ambiente e da exploração de mão de obra escrava para: ajudar a desatar a questão e relembrá-los de um assunto já conhecido, há algum tempo esquecido que continuamos a patinar e a girar em falso em sua aplicação.
O assunto em pauta é a certificação de qualidade em especial na cadeia agroindustrial de produtos orgânicos. Aos leitores ofereço meu estudo do caso.
Origem
Composto por três textos (origem, processo e destino), o presente artigo foi escrito tendo como base informações levantadas junto ao Instituto Biodinâmico (IBD), localizado em Botucatu – SP, no período de 06 de janeiro a 28 de março de 2003 e, foram alvo de estudo e dissertação.
A Associação de Certificação Instituto Biodinâmico é uma empresa brasileira (de livre associação) sem fins lucrativos, que desenvolve atividades de inspeção e certificação de origem e processo na agropecuária e agroindústria orgânica e biodinâmica.
Há dez anos atuando no campo da certificação, o IBD opera em todo o território brasileiro e em alguns países da América do Sul, auxiliando no desenvolvimento de um padrão de agricultura sustentável, baseado em novas relações econômicas, sociais e ecológicas. Na certificação, calcada em normas internacionais, a instituição busca se adequar às exigências cada vez maiores de um mercado em desenvolvimento.
O objetivo do artigo2 é informar e esclarecer ao público sobre o processo de certificação aplicado pelo IBD, expor semelhanças e diferencias entre as certificadoras e contribuir com os leitores do site BeefPoint para aperfeiçoarem seu conhecimento sobre o tema.
Ao escrever, os desafios profissionais enfrentados foram: demonstrar a importância do embasamento técnico para o processo de certificação orgânica, bem como expor a multidisciplinaridade do tema; atuar, junto ao site para divulgação de pesquisa acadêmica; na pecuária nacional, ao colaborar com a discussão sobre qualidade na cadeia agroindustrial; na produção científica, ao elaborar o estudo de caso, redigir dissertação e tecer o presente e futuros textos, para análise e maior entendimento do assunto.
1 – Introdução
“Não comprem açúcar do Brasil”, diziam as senhoras burguesas reunidas em seus chás e jantares. “Não comprem açúcar das Antilhas”, clamavam as Sociedades Anti-Escravistas Inglesas. “Não comprem algodão do Sul dos Estados Unidos, porque eles são produzidos com mão de obra escrava”, pediam demonstrando forte preocupação social.
Diga-se de passagem que seus maridos, por mais de 300 anos utilizaram-se de tal mão de obra e que, em pleno apogeu da Revolução Industrial (1808), valeram-se do argumento para erguer as primeiras barreiras de ordem social no comércio internacional, originando o marco da certificação.
Contudo, somente na França em 1919, as regulamentações dos produtos alimentares de qualidade adquiriram forma e delineamento. Conhecer a origem de um produto – “Appeler pouer Origine” – foi uma resposta ao avanço das vinícolas industriais sobre, o setor vinícola artesanal, o que proporcionou uma maior proteção aos micros setores.
Ainda na França, na década de 60, com o estabelecimento de normas descritas em manuais de qualidade, negociadas entre os diversos atores da cadeia produtiva, foi instituído o selo de qualidade Label Rouge (Figura 01). Na década de 80 desenvolveram-se os primeiros selos de qualidade orgânica, Agricultura Biológica3 e Produtos da Montanha4.
1.1 – Contexto internacional da certificação
A produção, a comercialização e o consumo de produtos orgânicos vêm ampliando sua participação no mercado mundial de alimentos. O estabelecimento de normas e a certificação são necessários em vista da natural distância entre produtores e consumidores num mercado assimétrico, como os das cidades.
No início do movimento orgânico, foram as organizações de caráter privado que construíram essas convenções, primeiro para a produção vegetal e depois para produção animal. Posteriormente, com o crescimento do mercado, os governos estabeleceram as suas legislações, baseadas em normas do setor privado (FONSECA, 2002).
Hoje, no âmbito das trocas comerciais internacionais, as regulamentações dos produtos orgânicos farão parte de qualquer rodada de negociação na Organização Mundial do Comércio.
Países como o Brasil, agrários – exportadores devem estar atentos ao tema para evitar que essas normas e legislações nacionais e internacionais se transformem em barreiras ao comércio e, os agentes do sistema agroindustrial devem estar preparados para equacionar estratégias de atendimento as demandas surgidas nesse seguimento de mercado.
1.2 – O que pensa o consumidor
De acordo com Kühl, apud Souza (2001), “os produtos orgânicos classificam-se como bens de crença, pois apresentam atributos de qualidade altamente específicos, aspectos não identificáveis mediante simples observação”.
Segundo Zylbersztajn (1999), os consumidores estão mais atentos, informados, preocupados e céticos quanto às questões que envolvem atributos de qualidade em alimentos e esse comportamento se intensifica à medida que novos problemas, como a doença da vaca louca na Inglaterra, e o caso da dioxina, na Bélgica, ocorrem. “Se eu deixar de comer tudo aquilo que está sob suspeita, morro de fome”, argumenta um consumidor europeu.
Reforça-se o argumento do consumidor europeu, o fato de não existir risco zero no consumo de alimentos. O problema passa então a ser como avaliá-lo e administrá-lo. Primeiramente, é necessário mensurar os riscos e adotar sistemas de informação capazes de sinalizar ao consumidor os riscos internos no âmbito da segurança do alimento (qualidade)5, e externos (quantidade), no que se refere à utilização de técnicas e seu impacto ambiental.
Começa a discussão do conceito de seleção adversa, mecanismo segundo o qual, em determinado momento, caso não haja uma sinalização adequada quanto ao risco do alimento, o mercado atribui preços que não refletem os diferentes níveis de segurança dos produtos. Em geral, o produto mais seguro tem preços mais elevados.
O consumidor, por sua vez, em meio a uma restrição de orçamento, seleciona o mais barato (em valor econômico), que em geral é o menos seguro (em responsabilidade social e sustentabilidade ambiental).
Os certificados de qualidade surgem como uma alternativa para comprovar os atributos intrínsecos e fazer com que os consumidores fiquem mais seguros quanto ao seu consumo, principalmente, quando se trata de alimentos, um produto básico e necessário à sobrevivência humana.
Atualmente existem cerca de 6 bilhões de pessoas em todo o mundo, com diferentes faixas de renda, necessidades, desejos e características de consumo. Cabe aos agentes do sistema agroindustrial equacionar estratégias observando-se sempre estes segmentos de mercado, levando em consideração o que cada consumidor está apto ou disposto a pagar, seguindo a regra básica de venda de que: não se vende a quem não pode comprar.
Ao analisar a questão dos produtos que contem organismos geneticamente modificados, Lazzarini (1999) concluiu que generalizações infundadas sobre o comportamento do consumidor levam a erros graves e a perdas de oportunidades de mercado. Tal citação também é válida para os produtos orgânicos. Segundo Carvalho (2003), não cabe jamais desqualificar ou desprezar os critérios que cada consumidor adota para decidir o que vai comer ou deixar de comer.
Contudo, os consumidores não possuem informação plena sobre os produtos que consomem. Soma-se ao fato a capacidade limitada para processar tais informações. Em meio a um contexto em que o mercado falha por falta de suprir informação, as políticas públicas, como a vigilância sanitária, podem dar padrões mínimos de segurança a partir dos quais o consumidor exerce sua liberdade de escolha.
1.3 – O certificado de qualidade
Segundo Zylbersztajn (1999), como a maioria dos atributos, exigidos nos alimentos pelos consumidores, pelo governo e pelas organizações privadas são intrínsecos, mas nem sempre diretamente observáveis, a certificação é uma ferramenta utilizada pelos agentes do Sistema Agroindustrial (SAG) com o intuito de garantir a observância de padrões e evitar atitudes oportunísticas.
A assimetria informacional surge dada a dificuldade de percepção e de comprovação desses padrões, sendo que o vendedor tem mais informações sobre o produto e/ou processo que o comprador.
A certificação é necessária para que se possa, com o menor custo possível, dar ao consumidor informações que não seriam providas espontaneamente pelo mercado. Nas transações ao longo do SAG, a informação é perdida e o consumidor não sabe quais foram os procedimentos adotados na produção, na armazenagem e na distribuição dos produtos.
O selo da certificadora complementa as informações providas pelo mercado, em geral o preço e a caracterização exterior das commodities, ao comunicar características de qualidade e do processo de produção, atributos que não são facilmente observáveis pelo consumidor.
O produto certificado torna-se diferenciado das commodities pois há uma garantia confiável em relação a atributos de qualidade (teores de componentes, níveis de contaminação etc.), ou de processo de produção (orgânico, biodinâmico, ecológico), ou ainda ao ambiente social em que a produção ocorreu (não utilização de mão-de-obra infantil ou de trabalho escravo, respeito às normas de higiene e segurança do trabalho, integração ao modo de vida de comunidades rurais ou camponesas etc.).
Assim, a certificação constitui um elemento do composto de marketing das empresas que adotam a estratégia de satisfazer os desejos de consumidores sensíveis às questões ambientais e sociais, além de exigirem qualidade elevada nos produtos que consomem.
Para que o selo conferido por uma certificara tenha validade, esta deve passar por processo de auditoria realizada por um órgão nacional competente (Ministério) ou por um outro organismo auditor e receber credenciamento.
O processo de auditoria e recebimento de credenciais das certificadoras é chamado de acreditação, realizada por acreditadoras.
Acreditadoras são “certificadoras das certificadoras”, que ao ceder credenciais, conferem credibilidade para o funcionamento das agências de certificação.
A acreditação minimiza a possibilidade de ações oportunísticas, como a venda de certificados “moral hazard” e, caso seja feita por um organismo privado internacional, soluciona o problema de multiplicidade de procedimentos utilizados pelas certificadoras, ao assegurar que os processos de auditorias são adequados e consistentes com as normas adotadas pela acreditadora. Todas as certificadoras acreditadas por uma mesma agência, em princípio, têm procedimentos equivalentes.
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1 Zootecnista formado pela FZEA – USP, Especialista em Agricultura Biodinâmica pela Universidade de Uberaba. O autor agradece as sempre presentes colaborações de amigos e colaboradores.
2 De inteira responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão dos executivos da empresa.
3 Na França agricultura biológica é o mesmo que agricultura orgânica.
4 Produtos artesanais ou regionais.
5 O conceito de segurança alimentar para os economistas trata-se de uma questão de abastecimento (vai faltar alimento?), para os engenheiros de alimentos e demais profissionais envolve os aspectos de qualidade (o alimento está contaminado?)