Reconhecimento facial já virou rotina em aeroportos, condomínios e empresas. É quase impossível pensar em um mundo sem essa tecnologia. Agora, chegou a vez dos animais de produção. A QR Cattle, empresa brasileira de inovações para pecuária, com sede em Osório (RS), desenvolveu um dispositivo biométrico capaz de identificar animais pelo focinho, um método sem contato e não invasivo, em até quatro segundos. A inovação é liderada pelos administradores Flávio Mallmann, CEO do Grupo Sistema Sul S.A, e Paulo Bitar, CEO da RD2Buzz Brasil. Em tempos nos quais a rastreabilidade vem se tornando inegociável, a ferramenta é revolucionária.
“Com o leitor biométrico de focinhos, identificamos o animal para o resto da vida. É como a nossa digital”, disse Mallmann. Segundo ele, o objetivo da plataforma é permitir acesso seguro a informações como identificação, rastreabilidade, sustentabilidade e segurança sanitária. Hoje, animais de criação são identificados, em sua maioria, por brincos auriculares, que funcionam como uma espécie de “RG” individual.
Eles são mais do que acessórios, já que contém dados essenciais sobre o animal, como data de nascimento, sexo, lote, origem e dados sanitários. Mas a QR Cattle não quer competir com os brincos amarelos.
“Não vamos concorrer com o brinco, ele é complementar. A biometria é o chassi e o brinco é a placa, simples assim. Vamos entregar a rastreabilidade que valoriza o produto e atende às regras do mercado.”
A rastreabilidade de animais e outros produtos agrícolas se tornou uma exigência do consumidor interno e, principalmente, externo. A ideia é ter na palma da mão informações sobre todas as etapas da cadeia produtiva, da origem ao consumidor final, e comprovar, por exemplo, que aquele animal não foi criado em áreas de desmatamento ilegal ou se possui todas as vacinas em dia.
Os trâmites para uma maior identificação do gado brasileiro começaram em 2002, por determinação da Europa. Foi criado então o Sistema Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia de Bovinos e Bubalinos (SISBOV), programa de controle sanitário individual para fiscalizar propriedades rurais que produzem ou comercializam carnes para o mercado mundial. Apesar da boa iniciativa, a adesão é opcional.
Nos últimos anos, começaram discussões mais profundas sobre um programa que fortalecesse a rastreabilidade do gado brasileiro. Grandes frigoríficos já possuem projetos de identificação, mas não abrangem os 238,6 milhões de animais bovinos do Brasil. Apenas 4 milhões estão registrados no SISBOV, segundo dados do IBGE.
Por isso, em dezembro do ano passado, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) lançou o Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (PNIB), que pretende qualificar a rastreabilidade de bovinos e búfalos por meio da implementação de um sistema de identificação individual. Os produtores terão dois anos (2025 e 2026) para se adaptar às novas regras. A partir de 2027, será obrigatória a adesão ao plano para todos os pecuaristas. Esse período também é crucial para a adesão e ampliação da tecnologia da QR Cattle.
O plano dos empresários, que investiram “do bolso” R$ 15 milhões, é divulgar primeiro a ferramenta no Rio Grande do Sul, onde Mallmann nasceu e vive. Seu contato com pecuaristas da região pode facilitar a adesão da ferramenta, e muitos testes foram feitos em fazendas de conhecidos de Mallmann.
“O RS não tem o maior rebanho, mas tem uma carne premium. Então, vamos juntar uma carne boa com a tecnologia, e isso vai ser naturalmente divulgado. Vamos crescer de forma organizada. Não queremos abocanhar o mercado de uma vez só”, afirma Bitar.
A meta da QR Cattle é faturar R$ 150 milhões até 2027, mas apenas com a expansão da ferramenta nos estados do Sul, Centro-Oeste e Sudeste. A divulgação do aplicativo no Norte e Nordeste ficará para 2028. “Essas são regiões desafiadoras, principalmente por conta do desmatamento. Pode ser que cheguemos lá antes, mas precisamos ver primeiro como será o desempenho do aplicativo e a receptividade do mercado”, disse.
Mallmann e Bitar já assinaram um termo de cooperação técnica com a Confederação Nacional de Agricultura e com a Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Sul, que possui um rebanho próprio de 400 animais, para dar início à utilização do aplicativo no RS e no país. Mallmann completa que eles também já estão em contato com o Mapa.
Segundo Bittar, a ferramenta já possui 200 mil animais cadastrados, sendo 60 mil que foram registrados por pecuaristas que já aderiram ao plano mensal da QR Cattle, e o restante, da fase de testes. A expectativa é cadastrar cerca de 8 milhões de animais até o final de 2026.
Para fazer apenas o cadastro de animais, os produtores pagam uma taxa de R$ 0,95 por animal ao mês. Mas a plataforma também oferece outras ferramentas, como relatórios que combinam outros dados sobre o animal.
Para funcionalidades personalizadas, são cobradas taxas adicionais. “O pecuarista pode identificar quantos animais quiser, sendo R$ 0,95 por animal. Queríamos algo que fosse acessível, porque não adianta ter uma tecnologia que pode revolucionar e ela não ser utilizada porque é cara”, disse Bittar. “No fim do ano, vai dar praticamente o valor do quilo do boi. Não vai machucar o bolso de ninguém.”
Com a obsessão de Mallmann por sistemas de identificação, o conhecimento financeiro de Bittar e a expertise de Eduardo Piovesam, engenheiro de sistemas, sócio da QR Cattle, a ferramenta demorou três anos para ficar pronta. Com método operacional por inteligência artificial, o aplicativo não precisa de conexão de internet e utiliza uma rede privada de blockchain para enviar automaticamente as informações para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) via Sistema Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos (SisBov).
Para ser minimamente intrusiva e totalmente precisa, diversos testes foram feitos especialmente para evitar interrupções ou atrasos no manejo. “O gerente de campo tem um cronograma diário que é perfeito, e se uma coisa sair do controle, aquilo vai impactar tudo. Então, por que o focinho? Porque o cadastro pode ser feito na hora de pesar o animal, que leva uns 10 segundos em média. Não é uma etapa a mais”, explica Mallman. Segundo ele, o maior desafio durante o desenvolvimento do aplicativo foi reduzir o tempo de leitura do focinho. “Fizemos diversos testes com produtores parceiros nossos para ver como poderíamos reduzir ainda mais o tempo de leitura e não atrapalhar o manejo”, disse ele.
“Além disso, estudos mostram que o focinho é como a nossa digital, é único. Se fosse pelos olhos, daria mais trabalho porque o animal se mexe muito”, afirma. Mesmo com a identificação pelo focinho, é inevitável que o animal se mexa durante o processo.
Por isso, o dispositivo biométrico da QR Cattle possui um streaming que “segue” o movimento do animal e faz a leitura. “Não necessariamente o animal precisa estar parado, porque o aplicativo consegue captar se ele estiver se mexendo”, disse Mallmann.
Segundo Bitar, a ferramenta também pode facilitar a entrada do pecuarista no mercado financeiro. “Com o chassi, que é o focinho, e o brinco, que é a placa, temos um veículo. O animal se torna um ativo financeiro”, afirma ele. Para o pecuarista, o rebanho é patrimônio. Os animais se valorizam com o tempo, são vendidos e geram receita, que pode aumentar com práticas de rastreabilidade.
“Com um relatório completo sobre um animal em blockchain, isso pode ser tokenizado e o pecuarista pode fracionar esse bolo que pode ser comprado por sócios”, explica Bitar. “Nós atiramos na rastreabilidade, que era nosso alvo, e acertamos também no que não vimos.”
Fonte: Forbes.