Por Francisco Guaraci Gomes de Oliveira*
O Desafio Climático Global: A Importante Pegada dos Sistemas Agroalimentares
As mudanças climáticas representam uma das maiores ameaças da nossa era, e as emissões de gases de efeito estufa (GEE) são a principal causa. Para entender a magnitude do impacto do agronegócio nesse cenário global, dados da FAO (2021) revelam um panorama crucial:
Em 2019, as emissões globais de origem antropogênica totalizaram 54 bilhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (CO2-eq). Desse montante, uma parcela expressiva — 17 bilhões de toneladas (31%) — foi atribuída diretamente aos sistemas agroalimentares. A distribuição dessas emissões e a contribuição específica do setor podem ser visualizadas na Figura 1.
Como a Figura 1 ilustra, os sistemas agroalimentares são responsáveis por 21% das emissões globais de dióxido de carbono, mas sua participação é muito mais expressiva em outros gases de alto potencial de aquecimento global: respondem por 53% das emissões de metano (CH4) e por 78% das emissões de óxido nitroso (N2O).
Dentro do próprio setor agroalimentar, a maior parte dessas emissões está associada ao uso da terra agrícola (7 bilhões de toneladas de CO2-eq). Em seguida, vêm os processos pré e pós-produção (6 bilhões de toneladas CO2-eq) e, de forma significativa, as mudanças no uso da terra (4 bilhões de toneladas CO2-eq), que incluem o desmatamento para a expansão de áreas produtivas.
O detalhamento setorial do IPCC (AR6) permite ir além dessa visão geral e identificar as principais fontes de emissão. No setor de Agricultura, Silvicultura e Outros Usos da Terra (AFOLU), 100% do CO₂ está ligado às mudanças no uso da terra, enquanto a fermentação entérica responde por mais de 70% das emissões de CH₄, seguida pelo cultivo de arroz e pelo manejo de esterco. Já no caso do N₂O, cerca de dois terços das emissões estão associados ao uso de fertilizantes nitrogenados. Essa desagregação evidencia que a pecuária e o manejo inadequado do solo são, ao mesmo tempo, os principais pontos críticos e os alvos mais estratégicos para medidas mitigatórias.
No Brasil, quinto maior emissor global em 2023, os dados do SEEG reforçam essa centralidade. O país emitiu 2,3 bilhões de toneladas de CO₂-eq, com queda de 12% em relação a 2022, resultado sobretudo da redução de 37% no desmatamento da Amazônia. Ainda assim, as mudanças no uso da terra responderam por quase metade das emissões nacionais (46%), seguidas pela agropecuária (28%). Dentro desta, a fermentação entérica foi a maior fonte: 405 milhões de toneladas de CO₂-eq, valor superior a toda a emissão anual da Itália. O Cerrado, por sua vez, apresentou aumento de 23% nas emissões por desmatamento, sinalizando um deslocamento da pressão após o avanço do controle na Amazônia.
Além das emissões, o agro brasileiro tem contribuído de forma significativa para as remoções de carbono pelos solos, impulsionadas pela adoção de tecnologias de baixa emissão (ABC+). As pastagens bem manejadas responderam por 47% dessas remoções, seguidas pelos sistemas integrados ILPF (41%). O plantio direto e as florestas plantadas completaram o quadro.
Esses dados sublinham a urgência de adotar práticas mais sustentáveis no agronegócio. A pecuária, como parte integrante dos sistemas agroalimentares, tem um papel fundamental nessa equação, especialmente em relação às emissões de metano. A busca por soluções que otimizem a produção, promovam o bem-estar animal e, ao mesmo tempo, reduzam a pegada de carbono torna-se não apenas uma responsabilidade, mas uma urgência.
A partir dessas considerações, vamos discutir a complexa relação entre o clima do Cerrado e a saúde animal, revelando como a crescente intensidade do calor e as mudanças nos padrões de chuva estão redesenhando a paisagem do agronegócio.
A radiação no Cerrado e o Gado: Um Desafio para a Pecuária de Corte
Imagine um campo onde se planta, se cria animais e se cultiva árvores — tudo junto, de forma planejada, sustentável e eficiente. Parece algo distante da realidade? Pois é exatamente isso que a Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) tem tornado possível, especialmente no Cerrado brasileiro.
O cenário comum de vastas áreas do Cerrado, com intensa radiação e temperaturas elevadas, representa um desafio crescente para a pecuária de corte. Para o gado que pasta livremente, essa exposição contínua ao calor vai além do desconforto. É um verdadeiro problema científico: o estresse térmico, cujas consequências impactam diretamente a produtividade e o bem-estar animal.
O desafio do calor para a pecuária no Cerrado não é uma questão isolada, mas parte de tendências climáticas mais amplas e já comprovadas cientificamente. Estudos recentes realizados na região do MATOPIBA — área estratégica do agronegócio brasileiro que abrange partes do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia — identificaram aumento consistente nas temperaturas. As projeções indicam que um acréscimo médio de 1,5 °C aliado a uma redução de até 30% nas chuvas poderia agravar severamente o cenário atual, trazendo consequências drásticas para a produção agropecuária da região.
Os achados científicos demonstram que o ambiente em que o gado do Cerrado vive está se tornando mais desafiador. Estratégias de produção que não considerarem essas mudanças estarão em desvantagem, tornando essencial a busca por soluções que promovam a resiliência dos sistemas pecuários.
O Cerrado, com sua beleza natural, impõe condições climáticas desafiadoras. Suas altas temperaturas e a radiação solar intensa, em especial nos horários de pico, colocam o gado em uma situação de estresse térmico severo. Mas como podemos identificar quando um animal está sofrendo com o calor?
Um indicador chave é o Heat Load Index (HLI), ou Índice de Carga de Calor. Estudos realizados no próprio Cerrado revelam que o gado de corte a pasto frequentemente vive sob estresse por calor (HLI ≥ 71) por longos períodos do dia, muitas vezes ultrapassando 6 horas diárias. Os momentos mais críticos, classificados como “muito quente” (HLI ≥ 86), costumam ocorrer entre 12:00 e 15:00 horas, e essa situação pode se estender por ainda mais tempo durante a estação chuvosa.
Esse estresse desencadeia uma série de reações negativas e prejudiciais nos animais:
A ILPF como Resposta Inteligente: Conforto Animal e Benefícios Sistêmicos
É nesse cenário desafiador que a ILPF se destaca como uma solução inteligente. O sistema combina o cultivo agrícola, a criação de animais e o plantio de árvores em uma mesma área, promovendo benefícios mútuos entre essas atividades. As árvores oferecem sombra e conforto térmico aos animais, o que melhora seu desempenho e reduz o estresse. As raízes profundas das espécies arbóreas ajudam na retenção de água e na recuperação do solo, enquanto os resíduos das lavouras podem ser utilizados como alimento para os animais ou cobertura orgânica para o solo. Tudo funciona em sinergia.
O Poder da Sombra para o Gado:
A chave para o conforto do gado está na componente florestal da ILPF, que atua como um verdadeiro “climatizador natural”. Pesquisas mostram que a introdução de linhas de eucalipto nos pastos pode fazer uma grande diferença. Em sistemas com eucalipto, os bovinos acumularam mais horas em condições termoneutras (HLI < 70), ou seja, passaram mais tempo sem estresse por calor. As árvores atuam como uma barreira natural contra a radiação solar intensa, principalmente entre 14:00 e 17:00 horas, os períodos mais críticos do dia. Isso significa que, enquanto em pastos abertos o gado sofre com o “muito quente” (HLI ≥ 86.1), a sombra do eucalipto mitiga essa intensidade, permitindo que os animais expressem melhor seu potencial produtivo.
Sombreamento com Árvores Nativas:
A pesquisa que explorou o potencial das árvores nativas do Cerrado para sombreamento trouxe resultados ainda mais fascinantes, especialmente em relação à temperatura do solo. A diferença entre estar no sol e estar na sombra foi impressionante e fundamental para o bem-estar animal.
Em média, a temperatura do solo sombreado ficou em 26.4 °C. Já na área de controle, sob pleno sol, a temperatura média registrada ao longo do dia foi de 34.1 °C. Essa diferença, de quase 8 °C, já representa um alívio significativo. Mais impactante ainda, durante os horários de maior calor (picos ao meio-dia), a temperatura do solo a pleno sol chegou a incríveis 41.5 °C. No mesmo período, sob a proteção da sombra do Pequi (C. brasiliense), por exemplo, a temperatura do solo era de 27.2 °C. Isso demonstra uma notável redução de 14.3 °C, oferecendo um ambiente muito mais ameno para os animais.
O estudo também olhou de perto qual árvore nativa oferecia o melhor alívio térmico. O Pequi (C. brasiliense) se destacou, proporcionando a menor temperatura do solo sombreado, com apenas 24.8 °C (± 0.2 °C). Essa performance foi estatisticamente superior às das outras espécies testadas: a Vinha (V. thyrsoidea) teve 27.3 °C (± 0.2 °C), o Cerrado Roxo (S. lycocarpum) registrou 27.1 °C (± 0.2 °C), e o Baru (P. emarginatus) ficou com 27.0 °C (± 0.1 °C).
É importante notar que, na área a pleno sol, a temperatura do solo se manteve consistentemente alta (média de 34.1 °C) ao longo das medições. Isso apenas reforça que o sol é implacável nas áreas expostas, e que a presença da sombra é o fator determinante para a redução significativa da temperatura do solo e, consequentemente, para o bem-estar dos animais.
Essa melhoria no microclima se traduz diretamente em maior conforto térmico para o gado. Animais mais confortáveis pastejam por mais tempo, digerem melhor os alimentos e utilizam menos energia para regular a temperatura corporal. O resultado? Maior ganho de peso, melhor desempenho reprodutivo e animais visivelmente mais saudáveis e calmos.
Produtividade e Resiliência em Sintonia:
A diversificação proporcionada pela ILPF reduz riscos econômicos e ambientais. Em anos de seca, por exemplo, se uma das atividades tiver baixa produtividade, outra pode compensar as perdas. O produtor deixa de depender de uma única fonte de renda e passa a contar com um sistema mais equilibrado.
A introdução do Sistema Silvipastoril (SSP) em pastagens de eucalipto, comparada ao pasto tradicional (SPM), revelou um equilíbrio promissor entre produtividade e sustentabilidade. Embora o ganho de peso individual dos animais tenha sido maior no sistema a pleno sol, a maior lotação de gado sob a sombra resultou em um ganho de peso por área superior no SSP. O estudo também mostrou que a presença das árvores ajudou a manter a qualidade nutricional da forragem durante a estação seca, um período crítico para a pecuária. Mais importante, o componente florestal demonstrou seu papel vital na mitigação climática, com as árvores acumulando até 10,07 toneladas de carbono por hectare, confirmando o potencial da ILPF como uma estratégia de produção resiliente e que atua como sumidouro de carbono.
Do ponto de vista ambiental, a ILPF contribui para o sequestro de carbono, melhora da biodiversidade, conservação do solo e da água. Tudo isso com potencial de aumentar a produtividade por hectare — ou seja, produzir mais e melhor, com menos impacto. Os ganhos incluem não apenas a redução da temperatura em piquetes sombreados e a melhora no conforto térmico e ganho de peso dos animais, mas também a maior eficiência no uso da terra e da água, e a recuperação de áreas degradadas. Esses resultados são fruto do bom manejo, da escolha adequada das espécies cultivadas e da capacitação técnica do produtor. Com planejamento, é possível adaptar o modelo às condições locais e às necessidades da propriedade.
O Futuro no Pasto: Pecuária com Propósito e Resiliência Climática
A adoção de sistemas como a ILPF representa não apenas uma resposta aos desafios do presente, mas uma aposta concreta em um futuro onde produtividade e conservação caminham lado a lado. Ela aponta para um modelo de produção sustentável, onde a busca por maior rentabilidade anda de mãos dadas com a responsabilidade ambiental e, acima de tudo, com o bem-estar animal.
Ao oferecer conforto térmico por meio do sombreamento, seja com o plantio de espécies como o eucalipto ou com a valorização de árvores nativas, a ILPF não só melhora a qualidade de vida do gado, reduzindo o estresse e suas consequências negativas, mas também otimiza a produtividade. Os estudos mostram que é plenamente possível ter gado feliz, saudável e altamente produtivo, mesmo diante dos desafios climáticos do Cerrado e das tendências de aquecimento e alteração de padrões observadas em suas regiões produtivas.
Além disso, ao incorporar a componente florestal, a ILPF contribui para a resiliência climática da propriedade. As árvores não apenas fornecem sombra, mas também sequestram carbono da atmosfera, contribuindo para a mitigação das mudanças climáticas. Elas melhoram a qualidade do solo, favorecem a ciclagem de nutrientes e podem diversificar a renda do produtor com a produção de madeira ou outros produtos florestais.
A pecuária do futuro é aquela que reconhece o animal como um ser senciente e busca integrá-lo a um sistema que respeita e valoriza a natureza. Investir em conhecimento e tecnologias como a ILPF é um passo fundamental para construir um sistema produtivo que beneficie a todos: o gado, o produtor e o planeta. Investir em sombreamento não é apenas uma questão de bem-estar, mas uma decisão economicamente vantajosa para a pecuária de corte no Cerrado.
O caminho da mitigação passa pela intensificação sustentável, alicerçada no manejo adequado de pastagens, na expansão dos sistemas integrados ILPF e na adoção ampliada de práticas como o plantio direto. Essa agenda, estruturada pelo Plano ABC+, projeta uma meta de mitigar 1,11 GtCO₂ até 2030, conciliando produtividade, bem-estar animal e conservação ambiental.
(Agostinho et al., 2023; Cheng; McCarl; Fei, 2022; De Oliveira Aparecido et al., 2023; Dos Santos et al., 2025; FAO, 2021; IPCC, 2023; N. C. R.; R. R.; L. N., 2024; RojasDowning et al., 2017; SEEG, 2024; Teixeira et al., 2022)
Referências:
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CHENG, Muxi; MCCARL, Bruce; FEI, Chengcheng. Climate Change and Livestock Production: A Literature Review. Atmosphere, v. 13, n. 1, p. 140, 15 jan. 2022.
DE OLIVEIRA APARECIDO, Lucas Eduardo et al. Climate change in MATOPIBA region of Brazil: a study on climate extremes in agriculture. Theoretical and Applied Climatology, v. 153, n. 1–2, p. 87–100, 10 jul. 2023.
DOS SANTOS, Flávia Cristina et al. Intensification of pasture-based livestock systems: environmental benefits, forage availability, nutritional value and Nellore cattle performance. Agroforestry Systems, v. 99, n. 4, p. 80, 3 abr. 2025.
FAO, Food and Agriculture Organization of the United Nations. The State of the World’s Land and Water Resources for Food and Agriculture – Systems at breaking point (SOLAW 2021). Synthesis report ed. Rome: FAO, 2021.
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N. C. R., Ferreira; R. R., Andrade; L. N., Ferreira. Climate change impacts on livestock in Brazil. International Journal of Biometeorology, v. 68, n. 12, p. 2693–2704, 23 dez. 2024.
ROJAS-DOWNING, M. Melissa et al. Climate change and livestock: Impacts, adaptation, and mitigation. Climate Risk Management, v. 16, p. 145–163, 2017.
SEEG, Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa. Análise das emissões de gases de efeito estufa e suas implicações para as metas climáticas do Brasil. Relatório Analítico no 12, 2024. [S.l.: S.n.].
TEIXEIRA, Bruno Emanoel et al. The potential of natural shade provided by Brazilian savanna trees for thermal comfort and carbon sink. Science of The Total Environment, v. 845, p. 157324, 1 nov. 2022.
* Francisco Guaraci Gomes de Oliveira, Doutorando em Zootecnia Programa de Pós-Graduação em Zootecnia (UEM). Instituições: Universidade Estadual de Maringá (UEM), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Escola Agrícola de Jundiaí (EAJ) e DINTER UEM/UFRN/EAJ.