Síntese Agropecuária BM&F – 28/11/02
28 de novembro de 2002
Brasil retoma importação de carne paraguaia
2 de dezembro de 2002

Importância da gordura na carcaça e na palatabilidade da carne

A principal reserva de energia nos seres vivos é a gordura, que também age como isolante térmico evitando a dissipação de calor em temperaturas mais baixas, ou ainda exercendo a função de proteção dos órgãos. Na cadeia da carne, a quantidade de gordura corporal é um fator que está relacionado com o abate, e determinado pelas exigências do mercado consumidor. Sendo assim, os principais sistemas de classificação de carcaça, como o canadense, o americano e o australiano, usam como um dos principais critérios de avaliação a espessura de gordura e grau de marmoreio da carcaça. Neste e nos próximos radares iremos abordar aspectos relacionados à importância da gordura na carcaça, aceitabilidade e saúde do consumidor, além de fatores que interferem no desenvolvimento do tecido adiposo.

O resfriamento da carcaça após o abate é desejável por evitar as perdas, proliferação de microorganismos, e permitir maior oxigenação das mioglobulinas na superfície dos músculos conferindo-lhes cor vermelho vivo. Porém, a queda de temperatura brusca pode provocar o endurecimento da carne devido ao chamado “cold shortening”, ou melhor, encurtamento pelo frio das fibras musculares, o que afeta de maneira negativa a maciez da carne. A gordura de cobertura (subcutânea) na carcaça serve como uma capa de proteção que evita a “queima” durante o congelamento, e associada à gordura intramuscular (marmoreio) impede a queda brusca da temperatura, evitando o “cold shortening”, além de conferir características organolépticas à carne, que estão diretamente associadas à aceitabilidade pelo mercado consumidor.

Como regra geral para se evitar o “cold shortening” o resfriamento da carcaça deve ser feito de forma que a temperatura da carcaça não fique abaixo de 10oC antes de 10h postmorten, ou antes de atingir o pH igual a 6,0 (Fig 1).

Fig 1: Linha sólida representa a curva ideal de queda do pH em relação à queda de temperatura da carne.

Fonte: Thompson (2002b)

Aalhus et al. (2001) baseados em revisão, observaram que as maiores diferenças na maciez da carne entre animais com diferentes graus de terminação (alto, médio ou baixo) eram devidas ao fato da maior gordura de cobertura e de marmoreio evitarem a dissipação de calor da carcaça durante o resfriamento. Em trabalho realizado no Canadá, os autores compararam as curvas de queda de pH em relação à diminuição da temperatura em diferentes tempos de resfriamento, no contra filé e no coxão mole de carcaças de bovinos com diferentes espessuras de gordura. As medições foram feitas imediatamente após o abate, e com 4, 6, 10, 24h. Na figura 2 é possível observar claramente que carcaças com maior espessura de gordura apresentaram queda de temperatura mais lenta e não atingiram pH 6 antes de 10 horas de resfriamento. Pode-se observar também que as curvas foram diferentes entre contra filé e coxão mole, principalmente para as duas menores espessuras de gordura.

Fig. 2: Curva de resfriamento e queda de pH do contra filé (gráfico superior) e coxão mole (gráfico inferior) de carcaças com diferentes espessuras de gordura.

Fonte: Aalhus et al. (2001)

A espessura que melhor controlou a queda de temperatura no contra filé foi a de 15-20 mm de gordura, enquanto que para o coxão mole foi a de 5-10mm. As diferenças entre as curvas se devem principalmente à maior “massa muscular” do coxão mole (semimembranosus), e pelo contra filé (longissimus) ser mais superficial na carcaça. Segundo os autores, com aumento da espessura de gordura na carcaça de 0 para 40 mm, houve uma redução na proporção de carcaças com valores da força de cisalhamento considerados elevados, sendo esta redução de 14 para 0% no contra filé, e de 40 para 20% no coxão mole.

No mesmo trabalho, foi também observada diminuição nas perdas de peso da carcaça durante o processo de resfriamento convencional de 12 g/kg para 10,7g/kg com o aumento da camada de gordura de cobertura de 0 para 40mm. No entanto, outros fatores não relacionados a espessura de gordura podem influenciar o encurtamento das fibras e nas perdas no resfriamento, tais como tamanho de carcaça e problemas relacionados a má regulagem da câmara de resfriamento

As carcaças de animais bem acabados, com cobertura de gordura adequada e com bom grau marmorização, tendem a apresentar carne mais macia quando avaliados por técnicas laboratoriais ou painéis de degustação. O efeito da gordura de marmorização na maciez seria em função da diminuição da densidade da carne, com a menor tensão entre as camadas de tecido conectivo, propiciando maior “lubrificação” da proteína pelos lipídios e pela capacidade da gordura provocar maior salivação (Smith, 2001).

Porém como relatado pelo Prof. Albino Luchiari Filho (radar técnico Qualidade da carne- A qualidade da carne bovina – o que realmente importa? -27/9/2002), com base em diversos trabalhos, existe uma baixa correlação entre os valores de gordura na carcaça com maciez, sendo que o marmoreio é responsável por apenas 5 a 10% da variação na maciez. Smith (2001) relata que associadas ao marmoreio, tem pelo menos mais 4 fatores de diferenças estruturais, histológicos e bioquímicas da carne e pelo menos mais 7 características do animal e carcaça (ambiente, genética, processamento da carcaça, etc.) que influenciam a maciez.

Shackelford et al. (1991) citado por Jones e Tatum (1994), relacionaram valores de força de cisalhamento com os respectivos resultados de painéis sensoriais de maciez do contra filé. Foi observado que 68% das amostras com valores de força de cisalhamento acima de 3,9 kg eram consideradas duras quando da análise sensorial feita por técnicos treinados. Na tabela 1 (Jones e Tatum, 1994) é possível observar que com o aumento do grau de marmorização das carcaças, a freqüência de amostras que apresentaram valores de cisalhamento acima do limite (>3,9 kg), diminuíram.

Tabela 1: Características de maciez de acordo com o grau de acabamento

Apesar das observações feitas acima, Jones e Tatum (1994) relataram que o marmoreio explicaria apenas 9% da variação da força de cisalhamento (medida mecânica) e 5,1% da variação da maciez miofibrilar (análise sensorial) para caracterização de carcaça macias. Resultados bastante semelhantes a relatos anteriores na literatura onde o marmoreio explica apenas 4 e 8% da variação na força de cisalhamento e na maciez em painéis sensoriais (Campion, et al. 1975).

Curiosamente, segundo observações feitas por Jones e Tatum (1994), em análises sensoriais os avaliadores apresentaram tendências em classificar carne com pequenos traços de marmoreio como “duras”, e carne com marmoreio modesto/moderada como “macias”. Isto indica que outros fatores gustativos como sabor e suculência podem causar um certo confundimento nos analistas. Devemos ressaltar que a percepção humana não é capaz de detectar pequenas diferenças como a mecânica.

Em revisão de literatura, Smith (2001) mostrou que a palatabilidade geral da carne aumentou significativamente com aumento da gordura intramuscular (Tabela 2).

Tabela 2: Efeito da gordura intramuscular na palatabilidade geral da carne

A quantidade de gordura na caracaça, entenda-se marmoreio, é o principal fator que influi no sabor, devido às diferenças no perfil de ácidos graxos, sendo possível detectar diferenças relacionadas ao tipo de sistema em que foi criado o animal, por exemplo pasto x confinamento. É sabido que em determinados mercados, como o americano, carne oriunda de animais de confinamento tem maior aceitabilidade que animais terminados a pasto, devido principalmente a alterações do sabor.

A suculência em geral é determinada pela quantidade de água e gordura intramuscular que permanece na carne após o cozimento. Quanto maior o grau de cozimento (mal passado a bem passado) maior será a perda de água. Outro ponto é a capacidade de retenção de água (CRA) da carne durante o cozimento, como por exemplo carnes “pálidas” e flácidas tem baixa capacidade, enquanto carnes com coloração normal e aspecto firme, têm maior capacidade. Porém quanto maior o marmoreio, a suculência aumenta de maneira linear em painéis de degustação (Smith, 2001). O marmoreio pode evitar a perda de água e desnaturação das fibras, fazendo com que a carne permaneça suculenta, mesmo quando excessivamente preparada, pois o calor se propaga de maneira mais lenta na gordura que na proteína. Por outro lado Thompson (2002a) relata que não foi observado efeito do marmoreio elevado em manter a suculência em painéis de degustação com carnes excessivamente preparadas (bem passadas).

Thompson (2002a) na Austrália, relatou que com o aumento da força de cisalhamento, os escores sensoriais para sabor e suculência diminuíram. Por outro lado, ao fixar para um mesmo valor de força de cisalhamento (5,0 kg), houve forte influência da quantidade de gordura intramuscular nos escores de sabor e suculência (Fig. 3). Segundo o autor, ao abater animais jovens, onde as carcaças são processadas de modo a permitir maior maciez e menor variação entre as peças, os escores de sabor e suculência aumentariam com maiores valores de gordura, até atingir um platô que coincide com 10-15% de gordura intramuscular. Isto implicaria, que nesta circunstância a maciez é a principal variável para alterações nos escores de palatabilidade.

Figura 3: Influência da concentração de gordura intramuscular em sabor (flavour) e suculência (juiciness) de carne ajustados para um mesma força de cisalhamento (5,0 kg).

Fonte: Thompson, 2002.

A palatabilidade pode ser descrita como uma função da maciez, suculência e sabor. Segundo Thompson (2002b), o marmoreio explicaria 10-15% das variações nos escores de palatabilidade, sendo aditivo a fatores mais relevantes como genética, maturidade, manejo pré e pós-abate, além de técnicas relacionadas ao processamento da carcaça, que influenciam de maneira expressiva a maciez. Porém quando controladas estas variáveis, o marmoreio tem extrema importância na suculência e sabor, e consequentemente na palatabilidade como um todo.

Sistemas de classificação de carcaça como o USDA, onde os principais fatores são a maturidade, grau de acabamento e marmoreio, reforçam as considerações de Thompson. Ou seja carcaças melhores classificadas, oriundas de animais jovens (mais macias) e bem acabados têm índices de “não aceitação” bastante baixos. Smith (2001) relata, com base em 20 anos de estudos feitos pela Texas A&M e Colorado State University, que a freqüência da experiência negativa do consumidor foi de 3, 10, 16, 27, e 50% ao ingerirem carne de carcaças classificadas como, Prime, Choice, Low Choice, Select e Standart, respectivamente.

A produção de carcaças bem acabadas, com o mínimo de espessura de gordura de 4-5mm permite evitar as conseqüências negativas do resfriamento no aspecto qualitativo, tanto o visual como o sensorial da carne. Quanto ao grau de marmoreio, devemos considerar a tendência mundial em diminuição no consumo de carne com muita gordura, o que obriga a especialização para nichos específicos de mercado, como por exemplo o feito pela Austrália em relação ao mercado Japonês. Para isto torna-se necessário a adoção de sistemas de classificação e tipificação de carcaça nacional, e a criação de “marcas” para atender mercados específicos, principalmente para as carnes destinadas à exportação.

Literatura Consultada:

Thompson, J. The relationship between mabling and sensory traits. In: Marbling Symposium. www.beef.crc.org.au. 2002.

Smith, G.C. Factors affecting the palatability of beef. In: Future beef operations seminar. 2001.

Campion, D. R.; Crouse, J. D.; Dikeman, M. E. Predictive value of USDA beef quality grade factors for cooked meat palatability. Journal of Food Science, n. 40, p. 1225. 1975.

Shackelford, S. D.; Morgan, J. B.; Cross, H. R.; Savell, J. W. Identification of threshold levels of Warner-bratzler shear force in beef top loin steaks. Journal of muscle foods. n. 2, p.289. 1991.

Thompson, J. Managing meat tenderness. Meat Science, n. 62, p. 295-308. 2002.

Jones, B. K.; Tatum, J. D. Predictors of beef tenderness among carcass produced under commercial conditions. Journal of Animal Science, v.72, p. 1492-1501. 1994.

Os comentários estão encerrados.