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Interação genótipo-ambiente em gado de corte

Por Leonardo Martín Nieto1 e Antonio do Nascimento Rosa2

Introdução

As unidades responsáveis pela herança dos caracteres são denominadas genes que se encontram em estruturas em forma de filamentos duplos, os cromossomos, constituídos pelo ácido desoxirribonucléico (DNA), localizados no núcleo das células dos indivíduos. No processo de formação do espermatozóide, no macho, e do óvulo, na fêmea, as células reprodutivas sofrem uma redução no número de cromossomos, ficando com a metade, de modo que, no momento da fecundação, restabelece-se, no novo indivíduo, o número duplo original.

Todos os indivíduos dependem dos genes que recebem dos pais para formarem seu corpo, obedecendo-se a um projeto genético característico de sua espécie. O bezerro nasce Angus, Canchim ou Nelore por causa dos genes que, desde a célula inicial, orientam seu desenvolvimento. Não apenas o fato dos animais existirem decorre de seu genótipo (conjunto dos genes que possuem, em seus cromossomos), mas, também, o que serão e produzirão, ao longo de sua vida, depende deles.

Acontece, porém, que o gene só consegue manifestar-se em condições ambientais adequadas sem o que, inclusive, o próprio organismo, como um todo, pode ter a sua viabilidade e sobrevivência reprodutiva comprometida. Além disso, sua mensagem só se concretiza quando a célula sintetiza a proteína por ele codificada, o que demanda a presença de aminoácidos derivados dos alimentos. É, portanto, impossível analisar a expressão do gene sem se levar em consideração a ampla participação que o ambiente tem, neste processo. Deste modo, o modelo básico do desempenho, que define o fenótipo (P), a expressão final observável ou mensurável, nos indivíduos, é função das contribuições genéticas (G) e do ambiente (E), donde a clássica expressão: P = G + E.

Em alguns casos esta equação é completa. Freqüentemente, no entanto, o efeito do genótipo sobre o desempenho final do animal pode variar, dependendo das condições ambientais a que ele está sujeito. Assim sendo, o modelo acima pode ser expandido para: P= G + E + GE, onde o termo (GE) representa a interação genótipo x ambiente, ou seja, a contribuição não aditiva do genótipo e do ambiente para o fenótipo.

A interação GE existe quando o mérito relativo de dois ou mais genótipos é dependente do ambiente no qual eles são comparados. Nesta definição, genótipos poderiam ser definidos como espécies, sub-espécies, raças, linhagens, famílias, etc. E ambiente, por sua vez, poderia representar diferentes áreas geográficas e influências externas tais como temperatura, umidade, luz, nutrição, etc., ou efeitos maternos, como efeitos maternos permanentes e idade da vaca.

As interações GE podem ser classificadas em função das magnitudes das diferenças relativas entre genótipos e entre ambientes, de acordo com as seguintes combinações (Reis e Lôbo, 1991):
– diferenças ambientais pequenas e diferenças genéticas pequenas;
– diferenças ambientais pequenas e diferenças genéticas grandes;
– diferenças ambientais grandes e diferenças genéticas pequenas; e
– diferenças ambientais grandes e diferenças genéticas grandes.

Os dois primeiros tipos de interação são teoricamente de difícil avaliação experimental, pois pequenas diferenças ambientais são muito difíceis de serem identificadas e quantificadas. Nos dois últimos casos, no entanto, as interações podem ser economicamente importantes, influenciando a expressão final do fenótipo, quando, então, os valores genéticos dos indivíduos podem variar de acordo com o ambiente no qual suas progênies serão criadas. Nesta hipótese, indivíduos dentro de uma população (uma raça ou um rebanho, por exemplo) teriam comportamento adaptativo diferente, quando submetidos a ambientes diferentes. Touros cujas progênies desenvolvem-se bem em uma região ou em um determinado tipo de manejo podem, desta forma, não manter sua superioridade em outra região ou em outros sistemas de produção.

Fisiologia da interação genótipo x ambiente

O animal pode ser considerado um sistema constituído de vários subsistemas perfeitamente integrados para responder tanto às alterações do meio externo quanto às do meio interno, mediante respostas lentas (endócrinas, enzimáticas ou metabólicas) e/ou rápidas (cardiovasculares, respiratórias ou de comportamento). Esta característica apresenta grande importância para a compreensão das interações genótipo x ambiente porque a intensidade destas dependerá de como o animal responderá às alterações de meio, tanto interno como externo. Muitas vezes, porém, o animal não tem patrimônio genético que garanta o perfeito restabelecimento do equilíbrio entre o seu próprio organismo e o ambiente.

O crescimento do animal ocorre pelo estímulo que seu organismo recebe de sua herança genética e a manifestação desse estímulo é desencadeada pela ação de hormônios produzidos por glândulas endócrinas, auxiliadas pela ação de fatores externos, dentre os quais salientam-se a qualidade e a quantidade dos nutrientes. A atuação dos hormônios pode ser específica. No entanto, qualquer deles pode afetar, direta ou indiretamente, a secreção de outras glândulas ou respostas de diferentes órgãos. Desta forma, simples alterações no ambiente podem induzir diversas e complicadas mudanças em todo o organismo uma vez que as manifestações genéticas dos caracteres são influenciadas pelo complexo e sensível sistema endócrino.

O controle do metabolismo de nutrientes envolve dois tipos de regulação: homeostático e homeorético (Bauman e colaboradores, 1994). O primeiro envolve o conjunto de processos fisiológicos coordenados que mantêm o estado de equilíbrio dinâmico das funções, implicando em que a exposição do animal a condições variáveis de ambiente mantenha um estado interno estável, necessário à sua sobrevivência. O segundo envolve a coordenação de processos metabólicos e fisiológicos resultando em partição direcionada dos nutrientes para cada estado fisiológico (crescimento, prenhez, lactação) promovendo-se, assim, um controle permanente do processo. Essa estabilidade para suportar alterações não excessivamente grandes das condições do meio ambiente baseia-se na capacidade de regulação dos organismos e esta, por sua vez, é controlada geneticamente. Cabe ressaltar que os processos de auto-regulação e seus mecanismos de feedback, essenciais para a manutenção do equilíbrio de um organismo, nem sempre são claros. Portanto, o conhecimento de alguns mecanismos fisiológicos e metabólicos permite explicar, de certo modo, as causas da ocorrência de interação genótipo-ambiente.

Nutrição e expressão gênica

A regulação apropriada do gene, em resposta à dieta, requer dois tipos de elementos controladores. Um deles é o nível de sensibilidade ao nutriente, que é função de sensores ou receptores, e o outro é o mecanismo de tradução, pelo qual o nível do nutriente afeta a atividade celular, incluindo a atividade do gene que regula o processo pelo qual os nutrientes são usados (Hargrove e Berdanier, 1993; Mascioli, 2000).

Teorias recentes sugerem que fragmentos de DNA codificam receptores de enzimas e nutrientes envolvidos no metabolismo dos mesmos. Assim, a regulação dos genes pode ser efetuada por hormônios e o controle da expressão gênica é, então, regulado pelo nível de substrato ou produto do metabolismo, através de receptores para nutrientes ou sinais relacionados ao uso do nutriente.

A seleção de animais em ambientes favoráveis conduz à escolha de genótipos com elevado valor de resposta que depende, essencialmente, dos genes para crescimento e dos genes que induzem maior consumo de alimentos. Portanto, a seleção para taxa de crescimento é resultado, também, do aumento no apetite dos animais. Em ambientes desfavoráveis há tendência de se selecionar genótipos com baixa capacidade de resposta. Um elevado crescimento do animal, sob nível baixo de nutrição, é conseqüência dos genes para crescimento e de genes relacionados à eficiência na utilização de alimentos. Portanto, o acréscimo na taxa de crescimento é conseqüência da redução nos níveis de requerimentos para mantença. Em conseqüência deste processo há uma tendência das respostas se associarem negativamente com as médias fenotípicas, nos ambientes desfavoráveis, e positivamente, nos ambientes favoráveis, não se verificando nenhuma tendência nos ambientes intermediários. Sendo assim, ganhos de produtividade ligados a escolha dos melhores reprodutores são mais sensíveis nos rebanhos aos quais é disponível um ambiente mais favorável para a característica a ser selecionada.

Segundo Frisch (1981), em geral, à medida que o estresse ambiental diminui, o potencial de crescimento torna-se mais importante na determinação do ganho de peso, enquanto que, à medida que o estresse aumenta, a importância da adaptação ao ambiente aumenta, até se constituir no único fator regulador do crescimento. Desta forma, quando touros são selecionados em ambientes de baixo estresse apenas para maior taxa de crescimento e usados em rebanhos mantidos sob níveis mais elevados de estresse, o aumento na taxa de crescimento da progênie somente ocorrerá se existir um nível de adaptação suficiente para permitir a expressão do potencial de crescimento, caso as características de adaptação não lhe sejam antagônicas.

Resultados experimentais

Resultados de numerosas pesquisas demonstram que os efeitos da interação GE são importantes para a maioria das características reprodutivas e produtivas em gado de corte. Os fatores ambientais mais comumente estudados têm sido regiões distintas dentro de estados ou país, para representar diferentes ambientes, regimes alimentares e sexo.

KOGER e col. (1979), relatam efeitos da interação linhagem x local de criação altamente significativos sobre as taxas de prenhez e de desmama de diferentes linhagens de bovinos hereford, em ambientes contrastantes, sendo as linhagens locais superiores para as duas características. Pahnish e col. (1985), estudando o desenvolvimento pré e pós desmama de linhagens de bovinos desta mesma raça, observaram interação local de origem x local de criação para todas as características estudadas, sendo superiores os desempenhos das linhagens locais. Os resultados levaram os autores a concluir que as diferenças de adaptação genética às condições locais, dentro de raça, merecem ser consideradas nos sistemas de produção comercial, nos testes de desempenho, nas transferências de animais entre regiões e no caso da compra de sêmen para utilização em diferentes ambientes.

No Brasil, Rosa e col. (1982) verificaram interação touro x sexo do bezerro significativa para os pesos ao nascimento e aos 18 meses de idade em animais da raça Nelore. Nobre e col. (1987), por sua vez, reportaram efeito significativo da interação micro-região x reprodutor sobre os pesos ao nascimento, a desmama, aos doze e dezoito meses de idade em animais nelore criados no Estado de Mato Grosso do Sul. Estes mesmos autores selecionaram, posteriormente, uma micro-região deste Estado na qual foi verificado efeito altamente significativo da interação fazenda x reprodutor para pesos ao nascer, aos 205 e 365 dias de idade, não ocorrendo o mesmo para o peso aos 550 dias. Os pesquisadores concluíram que progênies de um mesmo reprodutor podem não repetir o mesmo desempenho, caso sejam criadas em micro-regiões ou fazendas diferentes, evidenciando a necessidade de cuidado na compra de reprodutores e/ou sêmen.

Por outro lado, Ferreira e col. (2001), estudando o efeito da interação genótipo x ambiente, em características de crescimento em bovinos, também da raça Nelore, embora em fazendas localizadas em regiões diferentes e contrastantes do Estado de Minas Gerais, obtiveram estimativas de correlação genética entre as fazendas de 0,96 e 0,95 para peso pré-desmama e desmama, respectivamente. A correlação genética entre as fazendas para peso pós-desmama foi de 0,53. Estes resultados não evidenciam efeito da interação genótipo x ambiente até a desmama, porém na fase pós-desmama, as diferenças de ambiente entre as fazendas propiciou expressões diferentes em ambos genótipos.

Na raça Canchim a avaliação da interação genótipo x ambiente foi feita com base no desempenho de animais em prova de ganho de peso em pastagem e em confinamento (Mascioli, 2000). Segundo este autor, a classificação de touros Canchim em prova de ganho de peso em confinamento não é eficiente na identificação de animais superiores para a produção de filhos que serão criados em regime de pasto.

As controvérsias entre os melhoristas quanto às condições ambientais nas quais devem ser avaliadas as progênies de touros em teste são de longa data. Hammond (1947) dizia que os animais deveriam ser selecionados nos melhores ambientes em razão dos animais terem condições de expressar, ao máximo, a sua capacidade de resposta. Neste caso, as diferenças genéticas observadas entre eles permitiriam a obtenção de estimativas mais seguras dos reais valores genéticos, por intermédio da minimização das influências ambientais. Esta alternativa, segundo Pereira (2001), seria especialmente válida quando a seleção envolve características de altos valores de herdabilidade. Por outro lado, existe uma corrente de pesquisadores que, embasados em resultados semelhantes aos de Mascioli (2000), recomendam que os animais devem ser testados em condições ambientais compatíveis com o ambiente de exploração comercial. Esta alternativa seria mais adequada no caso das características apresentarem baixos a médios valores de herdabilidade, numa evidência de maior efeito ambiental sobre a variação das mesmas, principalmente quando se comparam ambientes muito diversos, como pastagem e confinamento.

Considerações finais

Abundantes são os dados experimentais que indicam que a interação genótipo x ambiente é atuante, principalmente em situações cujos ambientes são muitos diferentes, tais como os que existem quando se contrastam regiões tropicais e temperadas. Mais importante do que definir interação genótipo-ambiente, no entanto, é detectar a sua atuação e testar a significância de seu efeito. Igualmente importante é avaliar se o efeito significativo da interação provoca uma alteração na ordem do mérito dos animais, para diferentes níveis de uma variável em relação à outra, ou somente uma mudança na magnitude das diferenças entre os animais, sob os diferentes ambientes. Não deve ser descartada, portanto, a consideração das interações genótipo-ambiente nos sistemas de produção animal. No entanto devem ser realizadas, ainda, mais pesquisas que venham permitir uma melhor compreensão deste fenômeno e da sua influência sobre os antagonismos que podem diminuir o progresso genético, especialmente em ambiente tropical.

Referências bibliográficas

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1Leonardo Martín Nieto Bacharel em Genética é Doutor em Zootecnia, Bolsista da Fundapam/Geneplus; Rodovia BR 262 km 4, Caixa Postal 154, 79002-970 Campo Grande MS; lmnietogp@cnpgc.embrapa.br

2Antonio do Nascimento Rosa é Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ciências, Pesquisador da Embrapa Gado de Corte; anrosa@cnpgc.embrapa.br

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