Durante vinte anos, foi professor de economia da ESA, escola da Federação Francesa das Escolas de Engenharia em Agricultura (FESIA) e de vários cursos de pós-graduação no Brasil. De 1989 a 1999, colaborou com a Comissão Européia em Bruxelas e acompanhou as negociações agrícolas da Rodada do Uruguai. Nos últimos dez anos, vem atuando no agronegócio brasileiro ao ministrar palestras e participar de seminários e pesquisas.
Desde 2002, Jean-Yves Carfantan é consultor da Céleres, uma empresa sediada em Uberlândia (MG) e oferece serviços de estudos e assessorias às empresas brasileiras de agronegócio. Jean-Yves tem dois interesses principais de trabalho: conhecer e praticar os mercados europeus, pois esse é o primeiro mercado de destino das exportações do agronegócio brasileiro. E elevar a competitividade do agronegócio brasileiro, através da organização das cadeias produtivas para conformar produtos e processos com as exigências do mercado global.
Jean-Yves concedeu essa entrevista ao BeefPoint, onde fala sobre o mercado europeu de carne bovina e das oportunidades para o produto brasileiro. Conhecedor profundo deste mercado, ele defende que para conquistá-lo, é preciso construir a imagem da Carne Brasileira perante o consumidor europeu.
BeefPoint: Como o senhor avalia a percepção ou conhecimento do consumidor europeu a respeito da carne brasileira, em relação a origem, qualidade e maciez?
Jean-Yves Carfantan: A carne brasileira, com raras exceções, ainda não chegou às gôndolas dos supermercados. É um produto principalmente comercializado através do setor de hotéis e restaurantes, o chamado de “catering” na Europa.
O consumidor sabe que é um produto de origem sul-americana. Mas ainda não existe a idéia bem clara de que, ao lado da carne argentina, há a carne brasileira. O principal desafio no mercado europeu é construir uma imagem deste produto.
O primeiro passo é reagir à propaganda negativa feito por determinadas entidades européias. Está sendo feita na Europa por iniciativas de grupos de pecuaristas escoceses e irlandeses, um esforço danado para denunciar a carne brasileira. Inclusive vocês divulgaram a informação de que alguns meses atrás, a rede de supermercados Somerfield, que tem contato com frigoríficos brasileiros, sofreu pressões de pecuaristas ingleses que denunciavam a comercialização de carne brasileira.
Esta rede de supermercados, por exemplo, teve que aumentar a participação da carne britânica nas suas gôndolas por pressão dos pecuaristas locais. O trabalho de comunicação da pecuária brasileira, ainda não começou a atingir o consumidor.
Mais recentemente, um pecuarista inglês passou aqui no Brasil e fez, supostamente uma pesquisa, afirmando que a competitividade da carne brasileira é resultado da exploração de trabalho infantil. Tudo isso tem uma divulgação enorme na mídia. O “conhecimento” que o consumidor tem, infelizmente é devido a isso.
BeefPoint: Com as crises como a vaca louca na Europa, o consumidor se tornou mais informado. Como o consumidor europeu avalia a carne brasileira do ponto de vista de segurança alimentar?
Jean-Yves Carfantan: A visão que as pessoas têm da capacidade do brasileiro de respeitar as normas de segurança alimentar é muito confusa. De um lado esse consumidor recebe cada vez mais informações através de campanhas feitas por brasileiros, como a que a Abiec tem feito na ANUGA (feira na Alemanha) e no SIAL (feira em Paris), que tiveram uma repercussão grande, ou indiretamente através do setor varejista. Mas por outro lado, vem a crise da aftosa e toda aquela exploração que os “anti-brasileiros” estão fazendo.
Eu acho importante perceber que qualquer acidente localizado no fundo do Mato Grosso do Sul, ou qualquer estado, tem imediatamente uma repercussão global. Aqueles que não aceitam as importações utilizarão isso com um instrumento de marketing, o que tem um impacto muito forte. Lá na Europa, irão falar: “No Brasil estourou uma crise de febre aftosa”. Outro aspecto da questão é o seguinte: qualquer incoerência que aparecer nos discursos de políticos brasileiros é utilizada. Parece que os políticos nacionais ainda não perceberam que qualquer bate-papo no planalto tem um impacto global.
Esse impacto é muito concreto. Eu fiz uma pequena pesquisa em Paris. Entrei em diversos restaurantes especializados em carne bovina, de uma rede que se chama Hipopotamus, que tem contrato com diversas exportadoras brasileiras. No cardápio, estava escrito “origem: América do Sul, das regiões mais famosas de produção.”
E perguntei: por que no cardápio não colocam que é carne brasileira? “Lá está tendo uma crise de febre aftosa. Se colocarmos que é carne brasileira perdemos clientes”, disseram.
Ainda é muito cedo para saber se a crise da febre aftosa vai ter um impacto definitivo. Mas é muito provável que as empresas que comercializam a carne nacional vão fazer de tudo para esconder a origem geográfica do produto.
BeefPoint: Como essas informações divulgadas por campanhas brasileiras chegam ao consumidor?
Jean-Yves Carfantan: Essas informações chegam ao consumidor quando as empresas européias especializadas na importação de carne brasileira informam os seus clientes sobre a origem do produto. Isso começa a ser feito por diversas importadoras. Inclusive, algumas dessas empresas utilizam o argumento que seus fornecedores brasileiros já respeitam normas como a certificação Eurepgap para estimular as vendas.
BeefPoint: Quais foram as implicações da implementação na nova PAC (política agrícola da UE) para a produção de carne na Europa? Quais oportunidades são abertas nesse caso para a carne bovina brasileira?
Jean-Yves Carfantan: A reforma da PAC, que foi definida em 2003, tem calendário e modalidade de implementação que variam de um país para outro. Você tem países como Irlanda, Reino Unido e Alemanha, que escolheram o sistema da desvinculação total das ajudas.
Hoje, invés de receber uma ajuda por cabeça, o pecuarista recebe um pagamento pela propriedade, o que tem efeito direto na rentabilidade da pecuária. Nesses países, a implementação da nova PAC influencia o aumento do número de animais levados ao abate. A curto prazo você tem aumento da produção, e a longo prazo, diminuição do rebanho.
Além disso, a política européia de apoio à produção leiteira (sistema de cotas) tem implicações na produção de carne, pois 60% da carne bovina comercializada na Europa de origem local é produto do rebanho leiteiro. Já que essa política de cotas vai continuar nos próximos anos e que a produtividade por vaca aumenta, a resposta dos pecuaristas é reduzir o tamanho do rebanho.
Finalmente, existe uma diretiva européia que visa reduzir a poluição do lençol freático por nitratos. A Itália está começando a implantá-la, e a projeção é um impacto na diminuição do rebanho.
Na Itália, já tem empresas de processamento de carne pensando em importar do Brasil não só a carne, mas também animais vivos. E por trás dessas empresas de abate, tem o setor varejista.
O Carrefour, que é forte na Itália, também participa disso, estimulando a compra de animais vivos no Brasil para compensar a diminuição do rebanho, e continuar viabilizando a atividade de abate e a atividade de engorda, que é importante na Itália.
Eu acho que tudo isso representa para o Brasil uma oportunidade histórica. Num prazo de cinco a dez anos, o déficit previsto é de mais de 500.000 toneladas. Quem pode fornecer isso? Provavelmente um pouco a Argentina, mas principalmente o Brasil, especialmente pelo fornecimento de carne in natura. Em diversos países do bloco, os setores varejista e de processamento de carne estão se preparando para trabalhar com produtos importados.
BeefPoint: Há espaço para o Brasil nos nichos de mercado de carnes com qualidade diferenciada (maciez, marca, rastreabilidade, raças etc)?
Jean-Yves Carfantan: O Brasil deve investir nesse mercado, porque é onde vai conseguir os melhores preços e onde tem uma população de consumidores que, rapidamente, pode adquirir um bom conhecimento da diversidade da produção brasileira. O potencial é enorme
Eu acho que o esforço de marketing que os frigoríficos têm que fazer, deve focar principalmente esse mercado de carne diferenciada. As cadeias regionais brasileiras que eu conheço têm muito mais legitimidade para fazer esse trabalho de promoção de produtos diferenciados do que qualquer cadeia regional européia.
Hoje você tem 40% do consumo no setor chamado de HORECA na Europa (hotéis, restaurantes e cantinas). Nesse segmento, os consumidores que procuram um produto superior, de qualidade certificada, representam 20% da demanda, ou seja 8% do consumo total de carne bovina.
Existem na Europa o que chamamos de Steak Houses, que são restaurantes que só servem carne bovina. Têm restaurantes que fecham parcerias com cadeias regionais e que utilizam essas parcerias como argumento comercial. Em Paris, existem as casas Salers, que é o nome de uma raça do sul da França, cuja carne é servida.
Fora o setor HORECA, a segmentação é clara. No supermercado popular, você só vai encontrar carne do rebanho leiteiro, que é de baixa qualidade. Já na “boucherie” (açougue francês refinado) ou no supermercado de luxo, onde os preços são mais elevados, vai encontrar carnes de gado de corte.
O mercado que os brasileiros devem ocupar cada vez mais é o mercado formado pelo consumo em restaurantes de alto padrão, e pela demanda dos consumidores com alto poder aquisitivo que compram a sua carne nas butiques especializadas ou nos departamentos de supermercados onde os preços são mais elevados. Aí, você vai encontrar carnes de origem de gado de corte. No total, entre consumo no restaurante e consumo em casa, Esse mercado representa algo em torno de 15 a 18% do consumo total de carne bovina na Europa.
BeefPoint: Quais serão as oportunidades criadas para os brasileiros pelas certificações ambientais, sociais, de produtos orgânicos, bem-estar animal etc?
Jean-Yves Carfantan: O consumidor europeu dá muita importância à questão da identidade geográfica. Se os profissionais da Abiec fizessem, por exemplo, um trabalho de identificação geográfica com os consumidores, o Brasil poderia vender “Vitelo Pantaneiro” na Europa, desde que seja feito um trabalho de comunicação exaltando toda a riqueza ecológica da região. O país tem uma riqueza de identidades regionais enorme que pode ser explorada.
Além disso, o Brasil tem muito mais condições que o europeu de promover sua carne focando a questão de respeito ao meio ambiente e bem-estar animal.
É preciso montar uma estratégia para responder às críticas que são feitas mostrando tudo o que se tem feito para promover uma pecuária que combine com essas exigências, muito mais que as técnicas de criação utilizadas na Europa.
BeefPoint: As denúncias envolvendo formação de cartel e adulterações de SIF por frigoríficos brasileiros influenciam a imagem do produto brasileiro diante do consumidor final na Europa? O impacto negativo se limita a perda de credibilidade perante governos e traders?
Jean-Yves Carfantan: Não sei se isso chegou ao consumidor final, mas no site do principal sindicato de agropecuaristas ingleses (National Farmers’ Union), eles divulgam que “o próprio sistema de inspeção oficial está sendo utilizado por cartéis, eles conseguem corromper fiscais” etc.
A visão que eles têm da bovinocultura brasileira é esta: tem 15% de pessoas sérias, que já participam de trabalham de forma diferenciada e já entraram na política de certificação. Tem 80% de pessoas atrasadas, e 5% de ladrões. E o problema é que os 5% de ladrões estão castigando o resto da cadeia.
BeefPoint: Os grandes grupos varejistas são muito importantes na distribuição de alimentos na Europa. O que os frigoríficos brasileiros podem fazer para melhorar o acesso nesses canais e obter maior valor?
Jean-Yves Carfantan: Principalmente montar parcerias com as grandes empresas varejistas do mercado europeu. Eu acho que, evidentemente, nessa busca de parcerias, se houver uma sinergia entre cinco ou seis empresas brasileiras, será maior a capacidade de persuasão do setor varejista.
Se este setor perceber que existe uma estratégia comum aos frigoríficos brasileiros, vai negociar, consciente de que nos próximos anos, vai precisar colocar nas gôndolas um produto de qualidade, que será também um produto importado.
Tem uma empresa especializada na distribuição para consumidores de alto poder aquisitivo, algo como o Empório Santa Luzia. Sua principal marca é a Monoprix. Eles têm a linha que chamam de Bon Gourmet, que é aquele que, em francês, é um amante da gastronomia. Nela você só vai encontrar produtos com identidade geográfica conhecida, que vêm de parcerias que a Monoprix estabeleceu com grupos de pecuaristas.
A própria Monoprix na oportunidade do ano do Brasil na França, começou a fazer contatos com fornecedores brasileiros. Se conseguir encontrar bons fornecedores no Brasil, pretende começar a comercializar a carne brasileira nessa marca Bon Gourmet.
O contexto é muito favorável aos brasileiros se respeitarem todos as exigências do varejo europeu, como o Eurepgap, que é uma exigência básica.
Outra exigência básica é mostrar que não se limita apenas a respeitar as exigências do Sisbov, porque ele é considerado um dispositivo muito leviano na Europa.
BeefPoint: Quais novas exigências você acredita que serão impostas para a carne brasileira no mercado europeu nos próximos anos?
Jean-Yves Carfantan: O que o consumidor mais exigente e esclarecido vai cobrar é a demonstração de que existe uma possibilidade de se adequar bons resultados econômicos a bons resultados ecológicos.
Acho que irão além dos aspectos tradicionais de preservação do meio ambiente. Irão cobrar uma compatibilização entre produção pecuária e biodiversidade.
BeefPoint: Há alguma oportunidade para o Brasil, que não está sendo aproveitada (ou sub-aproveitada)?
Jean-Yves Carfantan: Ao país que tem a maior biodiversidade do mundo e a capacidade de produzir cada vez mais, cabe a responsabilidade histórica de mostrar que pode abastecer o mercado mundial e ao mesmo tempo proteger sua biodiversidade.
A carne bovina colocada no mercado mundial e certificada como sendo de uma cadeia que tem essa preocupação, terá um preço diferenciado, que deverá ser cobrado da Europa ou do Japão, por exemplo. E a receptividade do mercado europeu está crescendo.
Se algumas regiões brasileiras conseguirem entrar nesse jogo, será uma alavanca de promoção comercial na Europa.
Qual sua visão de futuro para a cadeia da carne brasileira? Quais as ações necessárias para tornar essa visão realidade?
Jean-Yves Carfantan: Nós temos um diálogo de surdos: de um lado ambientalistas radicais e de outro, pessoas que não querem saber de questões ambientais. Temos que criar uma plataforma de conversa produtiva.
A pecuária brasileira é constantemente acusada de irresponsabilidade social e ambiental. Para reverter este quadro, é essencial manifestar uma certa criatividade. É muito importante sair da postura defensiva na questão ambiental e passar para uma postura pró-ativa.
Mostrar que é possível compatibilizar as duas exigências: de viabilidade econômica e de preservação ambiental. Inclusive criará condições de participar de dispositivos como o de protocolo de Kyoto, que é uma oportunidade, um espaço enorme que o Brasil ainda pouco explorou.
Se eu tivesse que resumir a mensagem que eu quis passar aos profissionais brasileiros, nessa conversa, eu diria: não deixe aos pecuaristas europeus o monopólio da comunicação com o consumidor europeu.
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É verdade que o Brasil enfrenta dificuldades quanto ao sistema de fiscalização do seu rebanho, porém é sempre importante ressaltar que as carnes que exportamos, as nossas melhores carnes, aquelas são degustadas nos mais refinados restaurantes do mundo, são procedentes de frigoríficos brasileiros comprometidos não apenas com a qualidade e a segurança alimentar, mas também comprometidos com a responsabilidade social, o bem estar animal e o respeito ao meio ambiente.
Para um país que ocupa hoje o primeiro posto no ranking das exportações de carne bovina e que assim almeja abastecer o mercado mundial, torna-se essencial uma política de marketing mais agressiva nos principais países importadores, em especial o Mercado Europeu onde um grupo de pecuaristas “anti-brasileiros” propaga uma imagem negativa da carne brasileira.
Bastante interessante a abordagem do Sr. Jean.
Minha dúvida entretanto continua sendo que importância tem o mercado interno nisto tudo.
Nota-se em todo trabalho feito em torno da carne brasileira, a preocupação com o aspecto exportação, que claro, deve ter muita importância diante do preço de venda. Por outro lado, sabe-se que a quantidade exportada é pequena em relação à produção total.
Pergunto: e o mercado interno, que importância tem no futuro da pecuária brasileira?