Depois de não passar no exame para a faculdade, Marleen decidiu ser jockey, tornando-se uma das duas únicas mulheres holandesas nessa profissão. O mundo dos jockeys, no entanto, era muito restrito e ela desejava algo mais. Finalmente, agora com o apoio dos seus pais, entrou em 1965 para a Academia de Artes Visuais, seu sonho de infância.
Na Academia, desde o início, chamava a atenção por não seguir os caminhos tradicionais ou, talvez, por segui-los em demasia, visto que sua paixão era e sempre fora desenhar animais, algo pouco comum para os tempos de grande liberdade vivenciados no final da década de 60. Marleen tinha inclusive receio de mostrar seus desenhos, até que um professor a encorajou: “Isso é o que você é, isso é o que você precisa fazer”.
Em 1970, apesar do seu trabalho não ser reconhecido pelos demais estudantes, ela ganhou o prestigioso prêmio de graduação, fruto da independência de sua obra.
Sua carreira artística iniciou-se através de retratos de animais de destaque, feitos para produtores que queriam retratar seus animais preferidos, além de trabalhos para revistas da área agrícola. Nesse momento, começou a estudar as raças e ler tudo que lhe caía nas mãos sobre raças bovinas, além de escrever para pessoas no mundo inteiro, que pudessem lhe trazer mais informações.
Marleen visitou todos os países da Europa Ocidental, participando de exposições e eventos especiais, muitos deles milenares, onde o gado bovino participava, como o “Course Camarguaise”, na França, onde homens jovens tinham que pegar um pequeno laço entre os chifres de touros bravos, ou o “Course Landaise”, onde os homens pulam sobre vacas bravas, da mesma forma que se fazia no século XV antes de Cristo, em Creta.
Mesmo sem ser reconhecida pelo mundo das artes, Marleen obteve espaço crescente na mídia, pelo fato de as pessoas considerarem pouco usual alguém se dedicar a esse tema durante toda a sua vida. Desta forma, fez várias entrevistas em revistas, rádio e televisão, e seus quadros começaram finalmente a vender por altos preços.
Com todo o conhecimento que foi acumulando nesses anos, Marleen despertou o interesse da empresa de medicamentos Merck Sharp and Dome, nos Estados Unidos, que, em 1985, publicou seu primeiro livro, chamado “Genus Bos – raças do mundo”. Como se tratou de uma obra inédita, ficou muito conhecido, tornando mais fácil Marleen obter resposta nos seus contatos com as pessoas, o que nem sempre ocorria.
A partir daí, Marleen começou suas viagens internacionais. Em 1987, cruzou os Estados Unidos de Norte a Sul, sempre na companhia de cowboys e fazendeiros no meio-oeste americano. Em 1990, foi para o Paquistão, onde participou de uma grande exposição de gado e cavalos, cuja entrada era permitida somente a homens. No mesmo ano, foi para Madagascar, na costa leste da África, junto com um biólogo junto de quem Marleen havia escrito um livro sobre a biologia dos bovinos. Visitou diversas tribos locais que mantinham grandes rebanhos, a metade composta de bois. Nestas tribos, quando alguém que possui animais morre, todos os bois são mortos e os chifres ornam a sua sepultura.
Depois de cinco anos escrevendo e desenhando, Marleen partiu para uma empreitada ainda mais ousada: escrever uma enciclopédia de raças bovinas, cuja publicação só foi possível pelo apoio de uma amiga rica, que emprestou uma grande quantidade de dinheiro, dando a ela a oportunidade de aparecer em um momento em que a Europa voltava os olhos para o campo, cada vez mais escasso em seu estilo de vida. A enciclopédia foi um enorme sucesso (veja na entrevista) e abriu definitivamente o caminho para Marleen viver da arte que tanto apreciava.
Marleen realizou viagens ainda mais improváveis, como em 1996, quando foi para o Chade, país da África Central, onde visitou uma tribo que mantém a Kuri, uma raça de bovinos com chifres muito longos, a mais antiga da África. As condições de viagem eram muito difíceis no Chade, onde praticamente não há rodovias, as estradas se parecem trilhas do rally Paris-Dacar, o combustível é vendido em vilas, em garrafas de 1 litro e, para complicar, era a época do Ramadã, mês em que não se podia consumir alimentos durante o dia.
Em Mali, presenciou o espetáculo da travessia dos rios Niger e Diaka, após os grandes rebanhos permanecerem por seis meses nas pastagens da região central de Mali, manejados por meninos que, à noite, reuniam seus animais preferidos para recitar poemas e adorná-los antes da travessia. Para eles, o gado é o que há de mais bonito e o bem mais valioso que existe. Na travessia, os meninos, que não sabem nadar, agarram a cauda de uma vaca e se lançam nos rios, que têm mais de um quilômetro de largura. Após a travessia, há uma grande festa de confraternização. Todas estas histórias e tradições são contadas e mostradas em fotografia em outro livro de Marleen, chamado “De Koe”. Neste livro, Marleen procura mostrar a intensa relação cultural dos animais com o homem e que práticas milenares, em diversas partes do mundo, persistem ainda hoje, mesmo em países avançados economicamente, como a Suíça e a Espanha.
Atualmente, Marleen continua pintando bovinos, trabalhando com galerias de arte da Holanda, que vendem seus quadros para muitos admiradores. Marleen também trabalha em novos livros, escreve estórias, faz ilustrações e dá palestras sobre arte e a história dos bovinos junto a humanidade.
No ano 2000, convidada pela empresa Lagoa da Serra, de capital holandês, Marleen veio ao Brasil e se apaixonou pelo Zebu, que considera “bonito, elegante e inteligente”. De lá para cá, veio outras vezes, participou de exposições como a Expozebu e a Expoinel e passou a retratar animais de destaque. Como sempre, Marleen também estudou a história do Zebu no Brasil e preparou um presente para o Museu do Zebu: um painel de 3 x 1,5 metro, que retrata a história do gênero no país. Esse enorme quadro será apresentado no dia 29 de abril, no 70º aniversário da Expo Zebu.
Para contar parte de sua rica e inusitada história, Marleen concedeu uma entrevista exclusiva ao BeefPoint, que você pode conferir abaixo.
MF: Eles respeitam meu trabalho, pois fiz algo que nunca havia sido feito antes, fruto de um trabalho de pesquisa de 20 anos. Inicialmente, percorri diversas universidades e mostrei minha idéia de fazer uma enciclopédia com raças de gado de todo o mundo e a recepção foi boa. Hoje o trabalho dos geneticistas é todo voltado para análise de DNA e novas tecnologias, enquanto que minha abordagem é um tanto clássica, que remonta ao que era feito no século XIX. Creio que preenchi uma lacuna com a enciclopédia. Hoje, sei que muitas universidades utilizam o livro em suas disciplinas.
BFP: Como você fez para reunir tanta informação e como ela está organizada na enciclopédia?
MF: Não tinha o plano de fazer uma enciclopédia. Tudo começou em meus estudos na Escola de Artes, retratando raças inglesas. Precisei pesquisar sobre elas e descobri animais que não tinha idéia existirem. Era preciso classificá-los e, para isso, era necessário pesquisar ainda mais, inventar a roda. Isso me envolveu e passei a estudar cada vez mais.
O livro está dividido em 16 grupos de raças. O grupo 8, por exemplo, contém as raças zebuínas originais da Índia e do Paquistão. Eu procuro mostrar a relação entre as raças, quais são as atuais e quais são as mais antigas, que as originaram. A divisão das raças nos grupos é feita com critérios geográficos, históricos e por aparência.
Em relação às mais de mil raças reproduzidas no livro, é importante dizer que eu gosto de ver e retratá-las eu mesma. Em Madagascar, no Paquistão, no Senegal, no Chade, em Mali, na Líbia, por exemplo, eu mesmo fiz isso. Obviamente, ao se ter a pretensão de fazer um trabalho de abrangência mundial, não é possível visitar todos os lugares. Na China, por exemplo, eu nunca estive, mas me baseio em fotos ou outros desenhos, nunca apenas em relatos, para reproduzir as raças locais. Se não há fotos ou desenhos, em não desenho a raça, pois não vou fantasiar. Meu sonho é ver todos os animais e fotografá-las, para depois retratá-las!
MF: Tentei por 5 anos e nenhuma editora queria bancar a publicação. Contei com o apoio de uma amiga que me emprestou uma quantidade significativa de dinheiro. A primeira edição, com 2500 cópias na Holanda, se esgotou em 5 semanas.
BFP: Porque essa grande aceitação?
MF: Acredito que a relação dos Europeus com suas origens está mudando. Quando comecei, há 25 anos atrás, escrevi para pessoas na França dizendo que tinha ouvido dizer da existência de uma raça na Ilha da Córsega, sobre a qual poderiam haver alguns exemplares ainda. As pessoas achavam estranho alguém se interessar nestas raças, pois todo o foco se concentrava em raças mais conhecidas. Hoje, na Europa, por exemplo, já se fala com orgulho sobre a existência de raças locais. As pessoas estão resgatando essas raças que, na verdade, se misturam com sua própria história e origem. É uma espécie de resgate da diversidade em um momento em que a Europa se unifica.
BFP: Com a história milenar do gado na companhia do homem e com tantos pesquisadores envolvidos no assunto, porque ninguém nunca fez algo semelhante?
MF: Eu não sei! Mas acho que as pessoas ficam focadas em suas regiões ou preferências. Raramente têm uma visão global na questão das raças. Muitos se assustam ao constatar que a publicação tem cerca de 800 páginas e retrata mais de mil raças de bovinos.
BFP: Como você obtém recursos para as viagens?
MF: Eu mesmo banco as viagens, pois prefiro me manter independente e não ter de dar explicações a patrocinadores governamentais, como é comum na Holanda. Eu sempre espero oportunidades para ter um ponto de partida. Aqui no Brasil, esse ponto de partida foi a Lagoa da Serra, que me convidou para realizar alguns trabalhos no ano 2000. O suficiente para mim é ter um ponto de partida e pessoas dispostas a me ajudar, visitando fazendas. Nas viagens, nunca vou sozinha, pois é importante ir com quem conhece a realidade do país e das fazendas, para ir nos lugares certos. Eu apenas acompanho e observo.
BFP: Quando as pessoas reconheceram que você era de fato uma artista, apesar de retratar temas pouco usuais para o mundo artístico?
MF: No início, foi muito difícil. As pessoas achavam que o que faço não poderia ser chamado de arte. Aos poucos, isso foi mudando. Quando o livro foi publicado, todos os 1200 desenhos originais foram expostos em um museu de grande reputação na Holanda, o “Kunsthal”, seguindo a classificação que eu criara. A exibição, um misto de arte e ciência, foi um enorme sucesso e estive presente em inúmeras reportagens de televisão, rádio, revistas e jornais. De repente, as pessoas se deram conta da importância de um trabalho como esse.
MF: Concordo com a sua observação. Mesmo na Europa, os fazendeiros, em geral, não são o público que freqüenta galerias de artes e museus. Por outro lado, esse público não tinha aparentemente grande proximidade com o campo. Porém, com o crescimento urbano e com as dificuldades crescentes para produção animal na Europa, muitos rebanhos fecharam e as pessoas começaram a se dar conta que aquilo fazia parte do ambiente deles e, de certa forma, o interesse nas pinturas seria uma maneira de resgatar essa nova situação. Hoje, há fazendas onde você pode ir para observar a acariciar as vacas. À medida que isso foi mudando, que as pessoas passaram a resgatar sua história, passei a representar uma ligação entre as duas realidades, a do campo e das cidades. Muitas pessoas passaram a ver meu trabalho de forma diferente.
MF: Minha experiência no Brasil é toda com gado de corte. Vejo uma diferença muito grande entre os criadores de gado de pista e os criadores comerciais, no que se refere à lida do gado e em sua própria condição. Os animais de pista são sempre muito bem tratados. Já em relação aos animais comerciais, pude observar fazendas com manejo exemplar, do ponto de vista econômico, mas às vezes os animais são criados como no século XIX: os métodos de lida são muito ríspidos, os animais são mantidos em pastagens muito pobres e encontram-se com má condição corporal. Nestas horas me pergunto por que os criadores não procuram por melhores técnicas de manejo.
BFP: O que você fez até agora no Brasil?
MF: A primeira coisa que fiz foi desenhar os touros na Lagoa da Serra. Foi um trabalho fascinante, pois foi preciso entendê-los primeiro, porque os zebuínos são muito diferentes dos taurinos. Sentei-me por vários dias em meio aos animais, apenas observando-os. Eles são bonitos, elegantes e muito inteligentes. São também muito fáceis de lidar.
Em relação às viagens, estive no Pantanal, no Mato Grosso do Sul, onde cavalguei junto com os peões, além de fazendas Minas Gerais e São Paulo. Estive também em diversas exposições, como a Expozebu e Expoinel, onde fotografei muitos animais para desenhá-los posteriormente. Tenho feito vários retratos de animais importantes para os criadores e campeões, encomendados pelos proprietários.
MF: Trata-se de um presente que resolvi fazer para o Museu do Zebu, retratando a história do Zebu no Brasil, desde sua saída da Índia, passando pelos diversos períodos. Procurei retratar fatos importantes, criadores de destaque e animais que fizeram a história do gado zebuíno no Brasil. Nesse trabalho, fiz algumas descobertas, como um animal que, historicamente, sempre foi retratado sem chifre, mas que, na verdade, possuia longos chifres. Será apresentado oficialmente no dia 29 de abril, às 20 horas, em Uberaba.
MF: Eu nunca tenho planos. Simplesmente deixo acontecer. Vou contar uma história que ilustra bem isso. Certa vez, em um programa de rádio na Holanda, me perguntaram que país que gostaria de conhecer. Eu disse que adoraria ir para o Chade, no Centro da África. No dia seguinte, recebi uma ligação de uma pessoa que ia com alguma freqüência ao Chade a trabalho e que faria sua última viagem ao país em breve. Perguntou-me se gostaria de ir com ele e, após conversarmos, concordei. Foi maravilhoso, porque ele conhecia muito bem o país e sem esse tipo de ajuda, dificilmente teria sucesso. Esse é um exemplo de como as coisas acontecem comigo.
Respondendo a segunda parte da pergunta, hoje, vivo bem na Holanda, mas se houver grande aceitação para meu trabalho no Brasil, não vejo porque não ficar um tempo maior ou mesmo morar no Brasil.
BFP: Como entrar em contato com você para obter seus livros e suas pinturas?
MF: Meu e-mail é felius@kabelfoon.nl e o contato telefônico no Brasil é na Paraíso do Embrião, no número (19) 3654-1437.
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O presente da pintora holandesa Marleen Felius para o Museu do Zebu em Uberaba é fantástico, pois resgata a hitória do zebu brasileiro através da arte e fica à disposição do público para visitação.