Por Angélica Simone Cravo Pereira1 e Albino Luchiari Filho2
Definir e entender o que é qualidade degustativa da carne (eating quality) e a consistência na obtenção dessa qualidade é um desafio comum de todo e qualquer sistema de produção de carne bovina. Sabe-se, porém, que a produção de carne deve estar associada a um produto que o consumidor aprecie, queira comprar e consumir. Além disso, que entusiasme o mesmo a adquiri-lo novamente. Contudo, de uma forma geral, qualidade da carne bovina inclui aspectos como suculência, maciez e sabor. Além disso, esses fatores podem ser alterados ou ainda controlados utilizando-se alguns métodos, dentre eles a maturação.
De acordo com Judge et al. (1989) a maturação é uma modalidade de conservação, que consiste na estocagem de cortes cárneos, por um período de 15 a 21 dias, em temperatura acima do ponto de congelamento da carne, ou seja, ao redor de 0ºC. Porém, a maturação é um fenômeno complexo, que ocorre a partir da resolução cadavérica, que se prolonga durante as estocagens refrigeradas, envolvendo um conjunto enzimático, com destaque para a calpaína (cálcio dependente, responsável pelo amaciamento) e a calpastatina (inibidora da calpaína) (Rubensam et al., 1998, Pereira, 2002). Entretanto, este processo pode ser influenciado por algumas variáveis, tais como, espécie e raça do animal, velocidade de glicólise, quantidade e solubilidade do colágeno, comprimento do sarcômero das miofibrilas, força iônica e degradação das proteínas miofibrilares (Felício, 1997).
O processo de maturação da carne consiste em algumas alterações naturais, que ocorrem durante o período pós-morte, em que a carne permanece armazenada, desde -1ºC até temperaturas abaixo da desnaturação, cujo resultado é o desenvolvimento do amaciamento, sabor e aromas característicos desejáveis. Muitas pesquisas, recentes demonstraram ainda, que a maturação da carne diminui a variabilidade na maciez, influenciando de forma ainda favorável no seu amaciamento.
Segundo Pardi et al. (2001) tem ainda importante função nas propriedades organolépticas da carne, em especial, na textura e odor, influindo significativamente em sua palatabilidade. Por outro lado, a dureza observada durante a instalação do rigor mortis desfaz-se à medida que progride a maturação no estágio pós-rigor, desde que respeitados alguns fatores, dentre outros, as condições higiênico-sanitárias.
A carne fresca apresenta maciez variável; dependendo do músculo, pode ser identificada como macia, intermediária, ou dura (Texas A&M, 1999) (Tabela 01).
Alguns trabalhos realizados afirmam ainda, que o efeito da maturação no amaciamento do músculo Longissimus dorsi (contra-filé) é de até 30% em bovinos e bubalinos. Entretanto, carnes que já são consideradas macias, não sofrem qualquer influência da maturação, mas carnes consideradas nos limites entre dura e macia, seriam consideradas na categoria macia, ao serem submetidas a este processo. Isto é especialmente verdadeiro para cortes comerciais de valor mais elevado. Além disso, carnes que sofreram o efeito do cold shortening (encurtamento pelo frio) não amaciam ao maturar.
Em relação a alguns cortes específicos, Eilers et al. (1996) relataram diferença significativa entre a força de cisalhamento e o período de maturação por até 12 dias, com maciez aceitável, porém alguns cortes foram considerados muito macios, quando maturados por até 21 dias. Os autores observaram que maiores períodos de maturação foram necessários para o corte da alcatra, em relação ao contra-filé. O estudo sugeriu ainda, que o contra-filé deveria ser maturado, no mínimo, por 12 dias para assegurar uma maciez aceitável e períodos até 24 dias poderiam ser considerados benéficos, resultando em músculo com maciez superior.
Com relação à temperatura, quanto mais alta, mais rapidamente há manifestação dos efeitos da maturação sobre a carne, porém também é mais alto o risco de contaminação microbiológica, portanto maior a probabilidade de deterioração da carne. Dentre microrganismos deterioradores mais ativos estão os aeróbicos (necessitam de O2) outros em menor atividade, seriam anaeróbicos, ou aeróbicos facultativos. Uma alternativa utilizada para evitar esse fenômeno de contaminação é a utilização de embalagens a vácuo, ou atmosfera modificada com teores residuais de oxigênio baixo e os anaeróbicos, que crescem em ausência de oxigênio, no interior dos cortes. Por outro lado, quanto menor a temperatura da carne resfriada, menor seria o crescimento bacteriano. A carne congela a-1,5ºC, assim a manutenção às temperaturas de resfriamento mais próximas possíveis do congelamento reduz o crescimento microbiano ao mínimo, resultando em maior segurança alimentar e maior vida útil da carne, ao passo que a maturação é prolongada.
No mercado americano, somente a costela, filé mignon e contra-filé de bovinos e ovinos de alta qualidade são submetidos ao processo de maturação. Os métodos mais utilizados neste processo são:
Entretanto, a maior parte dos efeitos da maturação ocorre nos primeiros 10 a 14 dias pós-morte, em carne bovina.
Pode-se, portanto, definir maturação comercial como um processo ao qual a carne é submetida a condições controladas, embalada a vácuo e mantida em temperatura de -1ºC a 2ºC por 14 dias, aproximadamente. Especificamente, no Brasil, o período de maturação aplicado às carnes é de 14 a 21 dias, já que a maioria do rebanho é derivada de animais Bos indicus. O efeito raça na maciez da carne se observa principalmente em bovinos Bos indicus e os Bos taurus. Segundo Miller (2001) animais Bos indicus apresentam maior força de cisalhamento e maior variação entre seus valores. Além disso, à medida que aumenta a porcentagem das raças Bos indicus a maciez tende a decrescer e a variabilidade na maciez aumentar (Wheeler et al.,1990).
Entretanto, alguns pesquisadores ainda afirmam que a carne de animais Bos indicus é considerada dura devido ao menor conteúdo de gordura intramuscular e maiores proporções de tecido conjuntivo na carne, em relação a animais Bos taurus. Ainda, Wheeler et al. (1990) afirmaram que, bovinos Bos indicus apresentam maiores níveis de calpastatina menores de m-calpaína, que seriam os principais responsáveis pelas diferenças na maciez entre novilhos Hereford e American Grey Brahman.
De fato, a maioria dos efeitos da maturação ocorre até os 14 dias pós-morte, em que a força de cisalhamento é reduzida (Figura 01). Enquanto uma maturação adicional resulta em melhoria continuada e seqüencial na maciez, o amaciamento máximo ocorre com 14 dias (Miller, 2001). Nos EUA, o tempo médio de uma carne embalada no varejo é de 19 dias. O tempo de maturação variava de 3 a 90 dias em 1990, porém esse intervalo passou para 2 a 61 dias em 1998 (Morgan et al., 1991). Os mesmos autores relataram que, em média, o tempo de maturação da carne comercializada nos restaurantes era de 32 dias e variava de 5 a 7 dias, sendo 19,4% maturadas por menos que 14 dias. Concluiu-se ainda que as carnes eram maturadas o suficiente para reduzir a variabilidade na maciez e que carnes maturadas por períodos menores que 7 a 10 dias poderiam aumentar a variabilidade da maciez.
Efeito da resolução do rigor ou condicionamento
Algumas alterações ocorrem durante o processo de maturação da carne. Dentre as mais importantes estão a resolução do rigor mortis, enfraquecimento do tecido conjuntivo e desenvolvimento do aroma e sabor. De acordo com Arima, (2003), a maturação consiste ainda no efeito da resolução ou rigor ou ainda condicionamento. Dessa forma, para um melhor efeito do processo, é importante que ocorra acidificação adequada da carne, ou seja, o pH final deve estar entre 5,4 e 5,8. Durante a maturação há um aumento do pH, mas este valor não deve ser superior a 6,0 a fim de não ocorrer contaminação microbiana.
Ainda, após o estabelecimento do rigor, a carne não apresenta muitas alterações por algumas horas, ou dias. Em seguida, inicia-se a resolução do rigor, ou condicionamento, que altera a estrutura miofibrilar, incluindo a maturação da carne. Por outro lado, pesquisas atuais indicam, que essas alterações miofibrilares ocorrem antes do rigor mortis se completar.
A maciez da carne é influenciada por diversos fatores:
Em trabalhos realizados por Monsón et al. (2003), com diferentes raças (Blond´Aquitaine, Holandês e Limousin) foram observadas as principais diferenças de maciez, à medida que se prolongaram os dias de maturação. Porém, a maior diferença ocorreu na primeira semana (40%) sugerindo, que as mudanças nas estruturas miofibrilares foram as principais responsáveis por essa diferença durante o período. Ainda, o efeito maior da maturação nas raças foi observado até 14º dia. Durante esse período, a redução da dureza em bovinos da raça Blond´Aquitaine e Limousin foi de 96,7% e 62,8%, respectivamente.
O efeito mais desejado na utilização da maturação da carne é o aumento da maciez seguida do sabor e aroma característicos (Judge et al., 1989).
O sabor (gosto+aroma) da carne é um dos atributos mais importantes da carne cozida. Este resulta de uma série de reações envolvendo diferentes precursores durante o processo de cozimento. A percepção do aroma de um alimento resulta na presença de substâncias químicas voláteis, que sensibilizam as células especializadas da língua. Na maturação se formam compostos precursores, que na cocção da carne formam compostos voláteis e não voláteis, que dão um perfil de sabor característico e distinto daquele referente à carne fresca cozida. A hipoxantina é uma molécula que apresenta efeito favorável sobre as características sensoriais da carne. O sabor e o aroma da carne pode ainda ser modificado em função do tempo de maturação. Além disso, a temperatura e a embalagem utilizada conferem sabor e aroma característicos, devido às reações químicas e de microrganismos (Arima, 2003).
Além disso, segundo Arima (2003), na carne bovina ainda há produção de compostos, que contribuem no aroma da carne maturada dos lipídeos. Destes, os fosfolipídeos do tecido intramuscular parecem ser a principal fonte dos componentes voláteis originados de lipídeos. Ainda, a degradação de peptídeos e aminoácidos e a liberação de íons sódio e cálcio do retículo sarcoplasmático eleva o pH, a capacidade de retenção de água e a condutibilidade elétrica da carne, resultando em maior suculência da carne maturada. As carnes maturadas grelhadas até o ponto (mal passado ao ponto, até 70ºC interno), em particular, liberam exsudado mais rapidamente, quando do rompimento das fibras pelos dentes ao degustar, resultando em carnes mais suculentas.
Considerações Gerais
A cadeia da carne, como um todo, deve acreditar, que melhorando a qualidade de produtos e sua consistência poderia aumentar os níveis de consumo da carne.
Assim, é essencial a implantação de métodos e adoção de tecnologias, que visem melhorar ou ainda controlar a variação da qualidade da carne. Dentre alguns, o emprego da maturação da carne bovina, principalmente em animais Bos indicus é um processo eficaz na produção de carnes mais macias, de qualidade superior.
ARIMA, H.K. Maturação de Carnes. In: Avanços na Qualidade da Carne e seus Impactos na Industria Brasileira. Anais. Piracicaba. 2003.
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MILLER, R.K.Obtendo Carne de Qualidade Consistente. In: 1º Congresso Brasileiro de Ciência e Tecnologia de Carnes, 2001. Anais. São Pedro. p.123-136.
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PEREIRA, A . Qualidade da Carne de Bovinos Nelore (Bos taurus indicus) Suplementados com Vitamina E. Pirassununga, 2002. 86p Dissertação – Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos, Universidade de São Paulo.
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WHEELER, T.L.; SAVELL,.J.W.; CROSS, H.R.; et al. Mechanism associated with the variation in tenderness of meat from Brahman ad Hereford cattle. J.Anim.Sci., v.68, p.4206, 1990.
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1Angélica Simone Cravo Pereira é pós-graduanda em Qualidade e Produtividade Animal, FZEA – USP, Pirassununga.
2Albino Luchiari Filho é Zootecnista, Diretor e consultor LinBife e Prof. da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos sa USP – Pirassununga
1 Comment
bom dia, sou um grande curioso a respeito de carne, o que sei tudo foi por experiencia que pratico, como salga, maturacao, e nao sei se meus metodos estao corretos, e como tambem nao sei se ha um estudo a respeito, esta reportagem foi a unica que encontrei a respeito, se ha algum estudo e ou livros a respeito para pessoas sem conhecimento, gostaria de receber e ou como adquirir.