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Mudanças no cenário das negociações agrícolas

Liberalizar o comércio agrícola é prioridade central da agenda brasileira nas negociações internacionais. Tal prioridade é explicada pelo saldo comercial, empregos e investimentos, extensão geográfica, potencial de crescimento e competitividade internacional alcançados pelo agronegócio brasileiro.

A inserção internacional do país nessa área é basicamente afetada por dois grupos distintos de problemas: dificuldades de “acesso a mercados” e competição com enormes volumes de “subsídios” concedidos por governos ricos. Os problemas de “acesso” decorrem da existência de elevadas barreiras tarifárias e não-tarifárias impostas por uma grande quantidade de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Já os “subsídios” são ultra concentrados na Europa Ocidental, Estados Unidos, Japão e Coréia.

Tradicionalmente o Brasil e seus aliados dão mais ênfase ao problema dos “subsídios”, em decorrência de políticas que costumam criar muito mal-estar nas relações internacionais, tais como a aprovação da Lei Agrícola mais protecionista de história dos EUA no ano passado, a resistência européia em implantar reformas profundas na sua Política Agrícola Comum (PAC) e a insistência de governos como Japão, Noruega, Suíça e Islândia em oferecer para os seus agricultores não competitivos preços garantidos muito superiores aos vigentes no mercado mundial. Dentre os vários tipos de “subsídio” que distorcem o comércio agrícola, o mais execrado tem sido o de exportação, que é quando o governo deprime os preços mundiais ao cobrir qualquer diferença entre os preços domésticos garantidos e os preços do mercado destino. A Rodada de Doha da OMC quase não foi lançada por conta da resistência da UE, que responde por 90% dessa modalidade de subsídios, em aceitar a palavra “eliminação progressiva” dos mesmos no texto do acordo. Na ocasião, o Brasil e seus aliados cerraram fileiras contra a Europa na matéria, inclusive cedendo em outras áreas importantes para manter a conquista. Ou melhor, pseudo-conquista, como se verá adiante.

O grande desafio dos analistas da política externa não é entender a conjuntura, e sim antecipar cenários e estratégias factíveis de médio e longo prazo com base na dinâmica das negociações e na interpretação das mudanças domésticas que ocorrem nos grandes players. Ou seja, o desfecho das negociações da OMC e da ALCA depende do correto entendimento das mudanças que ora estão em curso na PAC, dos efeitos da guerra sobre a próxima política agrícola dos EUA e das alianças que estão sendo gestadas com o mundo subdesenvolvido.

Assim, olhando para o longo prazo, onde, apesar do que dizia Keynes, nem todos estaremos mortos, alguns fatos apontam para mudanças relevantes no cenário das negociações agrícolas regionais e multilaterais. A tônica do processo é um quadro positivo de redução dos “subsídios” acompanhado da forte deterioração da área “acesso aos mercados”. Em “subsídios”, os eventos recentes positivos para o Brasil são:

  • Possibilidade concreta de reforma da PAC, por conta dos seus elevados custos em termos de: (a) gastos públicos, abominados principalmente pela Alemanha, que paga a maior parte da conta; (b) alto preço dos alimentos, fator que poderá pesar muito no orçamento das famílias pobres dos novos membros; (c) danos ambientais derivados do modelo de produção intensiva da PAC; (d) problemas de qualidade do alimento, tais como a epidemia da “vaca louca” e as contaminações por dioxina; (e) problemas sanitários, como a epidemia de aftosa; (f) indecentes privilégios para grandes produtores e continuidade do êxodo rural, a despeito dos subsídios crescentes. Por esses e outros motivos, a Comissão Européia realmente quer reformar a PAC, e já conseguiu convencer boa parte dos novos membros, como a Polônia, a aceitar os pagamentos diretos desconectados da produção e do comércio para os seus agricultores, em vez do velho sistema de preços garantidos. O placar atual da UE é dado por 5 países “reformistas” contra 10 “protecionistas”. Lá na frente deveremos ver um empate técnico de 12 contra 13.
  • “Imoral” é a mais branda qualificação para o sistema de subsídios à exportação que temos visto. A OXFAM liderou uma excelente campanha mundial contra os subsídios à exportação de açúcar e leite da UE, mostrando os enormes prejuízos causados ao Terceiro Mundo. Nessa área, a França está cada vez mais isolada e já começa a arquitetar compensações para largar o osso.
  • O cenário de guerra, recessão e enorme déficit fiscal dos EUA indicam que a farra da Farm Bill 2002 não vai se repetir na próxima versão da lei em 2007. A administração republicana quer colocar limites para a gastança, claramente mostrados na sua proposta para a OMC.

    Já na parte de “acesso aos mercados”, o cenário é tenebroso para o Brasil, pois:

  • A contrapartida mais óbvia para a reforma das políticas agrícolas tende a ser o recrudescimento das barreiras comerciais. Além da manutenção do sistema de quotas tarifárias de importação, da presença de tarifas agrícolas altíssimas chamadas de “picos” e do compêndio de barreiras sanitárias e técnicas aplicadas, novos mecanismos de proteção estão “saindo do forno”. Um exemplo é o argumento da “multifuncionalidade” da agricultura, que deverá justificar a imposição de rígidos padrões de proteção ambiental, respeito ao bem-estar dos animais e organização territorial. Traduzindo: uma tentativa de barrar importações de países que não adotarem o mesmo modelo de produção, de acordo com padrões subjetivos arbitrários, nivelados por cima. Os nossos exportadores de carnes que se cuidem, que aí vem chumbo grosso.
  • Seja na OMC ou na ALCA, os países ricos acenam com a concessão de “privilégios especiais” para países pequenos e/ou muito pobres. Ampliação dos sistemas de tarifas preferenciais, definição de grupos de produtos que ficariam fora das regras multilaterais e isenção de tarifas e quotas são mecanismos que estão sendo propostos para atrair a simpatia de centenas de países pequenos não competitivos, contra os interesses do grupo de “países em desenvolvimento mais avançados,” onde está o Brasil. Um “saco de privilégios” para uns que vira um “saco de maldades” para quem se tornou competitivo.

    Em suma, a agenda das negociações agrícolas internacionais aparentemente está se invertendo, e o Brasil precisa tomar muito cuidado para não comprar gato por lebre: achar que a eliminação progressiva dos subsídios à exportação é uma enorme conquista que vai disciplinar a concorrência, e depois não ter para quem vender os seus produtos. Dez anos criando novas regras ao mesmo tempo em que a festa do protecionismo vai se mudando para a sala ao lado, com música nova e a portas fechadas.

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