Por Maurício Nascimento1
Calma senhores neloristas, sabemos que isso é praticamente impossível no gado Nelore puro. O objetivo de tal título foi apenas o de instigar um raciocínio genético.
Gostaria de me desculpar da audácia de tentar ser original em um campo tão cheio de opções quanto a pecuária. Isso começou em 1998, quando ao observar gado dupla musculatura a campo, comecei a raciocinar a origem de tal musculosidade.
Obviamente isso era uma herança genética, mas de que gene? Como era seu modo de transmissão? Quais as vantagens e desvantagens dessa característica? Como isso poderia ser aplicado para a produção de carne sem detrimento de outras características.
Eu já estava formado em Veterinária havia 10 anos, e trabalhado com raça dupla musculatura por uns 5 anos mas a questão que me intrigava era bem mais profunda, queria saber sobre DNA, cromossomos, genômica e essas coisas todas que estavam entrando no cotidiano de nossas vidas.
A velha e boa internet me deu os primeiros caminhos para onde seguir, anunciando que em 1997 cientistas americanos haviam identificado tal gene, o chamado MSTN. A partir daí um levantamento bibliográfico e um projeto de pesquisa se materializou.
Como na veterinária atual a genômica é um campo muito recente, optei por tentar uma vaga no curso de pós-graduação em biotecnologia, um curso inter unidades desenvolvido pela USP, IPT e Instituto Butantã. Basicamente biotecnologia e veterinária, fazendo uma comparação grosseira, são campos tão díspares, porém interligados quanto engenharias elétrica e eletrônica.
O objetivo de descrever esse passado recente é passar aos pecuaristas e fazendeiros minha experiência dentro de um laboratório de biologia molecular e suas aplicações práticas, pois como também já fui um pequeno fazendeiro sei que o que interessa a todos os produtores do campo é o binômio: baixo custo e alta produtividade.
Meu trabalho durante os anos subseqüentes teve por objetivo (por favor não desistam de ler até o final…. explicarei adiante o linguajar científico): desenvolver um teste genético para identificação da transição do nucleotídeo G938A (mutação C313Y) no gene da miostatina (MSTN) em bovinos Piemontês e seus produtos de cruzamento com gado Nelore. Essa mutação é descrita como a responsável pelo fenótipo dupla musculatura (DM) encontrado na raça Piemontesa.
O método desenvolvido para detecção dessa mutação (G938A) pode ser aplicado na seleção assistida por marcadores. Esse método constitui-se numa ferramenta para identificação, e eventual descarte, dos animais heterozigotos visando a seleção genética na raça pura Piemontesa para a característica da dupla musculatura. Permite também o ganho de tempo na introgressão do gene da dupla musculatura e na criação de novas raças 5/8 (sintéticas) dupla musculatura, a exemplo do que vem sendo feito com a raça Piemonel.
Trocando em miúdos essa linguagem científica o que fiz foi desenvolver um teste de DNA que auxilia na seleção e na criação de novas raças, sintéticas ou não, com fenótipo dupla musculatura. Outros testes de DNA já haviam sido desenvolvidos no hemisfério norte durante o desenrolar de meu mestrado, porém os mesmos eram mais caros do que o desenvolvido por mim e pelo meu orientador, Prof. Moreira-Filho, no centro de pesquisas em biotecnologia da USP
Bem, a essa altura os neloristas já estão se perguntando e o que é que isso tem a ver com o Nelore? A resposta é simples, com o Nelore puro muito provavelmente nada… Porém através de um sistema conhecido como “retrocruzamento” (explicarei adiante); uma raça com as características do animal anelorado, tão bem adaptado às condições brasileiras, pode ser desenvolvida.
Não optando pela linguagem científica, por demais alquímica e maçante para a maioria dos pecuaristas, o objetivo desse artigo é o de informar o raciocínio genético para se chegar ao animal anelorado dupla musculatura; e o mais importante…. O porquê de se chegar a ele. No entanto os autores de alguns trabalhos usados para se chegar a esse objetivo serão citados como referências.
No Brasil a duas raças bovinas mais conhecidas no cenário pecuário com fenótipos “dupla musculatura” são, a Belgian Blue e a Piemontesa. Na década de 90 uma nova raça começou a surgir como uma terceira opção para o aumento da produção de carne em cruzamento com o gado Nelore. Esta raça 5/8, batizada de PIEMONEL por seu criador, apresenta no seu genoma a mesma mutação C313Y do Piemontês. Isso foi conseguido pelo criador através de um programa de retrocruzamentos, selecionando-se o fenótipo dupla musculatura dos animais pela análise visual. O termo usado para definir esse processo é “introgressão genética” onde genes são transferidos de uma espécie para outra através de repetidas hibridizações e retrocruzamentos (MUNTZING, 1967). HARTL (1996) define retrocruzamento como um tipo de cruzamento usado por geneticistas, agricultores e criadores de animais no qual organismos híbridos são cruzados com um de seus genótipos parentais (fixando uma ou mais características desejadas).
O esquema abaixo mostra como isso foi feito no caso da raça Piemonel e talvez ajude o leitor a entender melhor o processo de introgressão genética:
Essa raça sintética apresenta a introgressão do gene da dupla musculatura em homozigose e tem características tantos de europeu quanto de zebuíno. A partir dela e com seleção assistida por marcadores seria possível em poucas gerações a introgressão desse gene em genomas zebuínos. Desse modo seria feito algo como o que foi feito para o Nelore ou o Gir mocho, a introdução de uma característica em um grupo genético, porém utilizando técnicas de biologia molecular.
É óbvio, porém que a característica da dupla musculatura em rebanhos animais de produção à campo seria complicada, seu uso seria mais indicado para touros que apresentassem homozigose para tal e transmitissem 50% dessa característica para a prole, produzindo assim os heterozigotos.
Mas porquê seria interessante produzir heterozigotos dupla musculatura? Bem, agora passo a vocês as considerações de eminentes cientistas americanos especializados em gado de corte.
WHEELER et al. (2001) indicam que produzir gado heterozigoto musculatura dupla não somente aumenta a maciez do valorizado músculo longissimus (filé-mignon e contra-filé) como também poderia elevar a qualidade de cortes menos valiosos. Em preços da época na publicação de seu trabalho, aumentando os valores de cortes conhecidos nos EUA (top sirloin, ribeye e strip loin) ocorreu um aumento do valor da carcaça em torno de US$50,00. Assim sendo eles concluíram que, provavelmente muitos cortes de músculos de menor qualidade poderiam ser valorizados significativamente em gado heterozigoto, aumentando substancialmente o valor total da carcaça.
Esse mesmo autor também cita que agora que a tecnologia para genotipar animais dupla musculatura está disponível, poderão ocorrer casos em que é desejável a introgressão do alelo dupla musculatura em diferentes populações e raças de bovinos. Esta introgressão pode ser eficientemente acompanhada com a ajuda da genotipagem, e isto permitiria a fusão desse alelo dupla musculatura em genomas com outras características favoráveis tais como taxas de crescimento. Contudo, cuidados devam ser tomados para não se perder características benéficas do genoma original tais como puberdade precoce para os cruzamentos com Piemontês por exemplo. CUNDIFF et al.(1996), GRINGS et al.(1999), e MACNEIL et al. (2001)
A maioria dos pesquisadores (ARTHUR,1995; CASAS et al.,1999) tem concluído que o uso mais apropriado de raças dupla musculatura como a Piemontesa é no sistema de cruzamento terminal de fêmeas homozigotos normais (ms+/ms+) (ms=musculatura simples) cobertas com touros com homozigoze para dupla musculatura (DM/DM). Esta é certamente uma opção viável para minimizar potenciais complicações do aumento da taxa de distocia. As limitações desse sistema são que a criação de fêmeas para reposição deve ser feita em outro criatório e os benefícios da dupla musculatura são conseguidos apenas em um nível moderado. Agora que se sabe mais sobre o controle genético da dupla musculatura e existe a possibilidade de se identificar genótipos, é possível uma abordagem mais agressiva. (SHORT et al., 2002).
SHORT e colaboradores (2002) também propõem um sistema de dois estágios onde novilhas heterozigotas poderiam ser cruzadas com touros homozigotos de musculatura normal para o primeiro parto e, depois, os mesmos animais poderiam ser cruzados com touros homozigotos para musculatura dupla. As novilhas de reposição poderiam ser produzidas em outro criatório, como primeiro cruzamento terminal, ou poderiam ser selecionadas a partir de novilhas heterozigotas produzidas nesse sistema. Esse sistema de dois estágios poderia minimizar problemas com distocia, permitindo obter maiores vantagens do alelo musculatura dupla.
Voltando a vaca fria do Nelore dupla musculatura, em resumo acredito que nenhum criador de gado se daria ao luxo de desprezar um touro com aproximadamente rendimento de carcaça de 70% que é o que apresenta um animal dupla musculatura. Também me parece que a prole de tais touros seriam uma mercadoria muito apreciada pelos frigoríficos, principalmente os exportadores para o mercados americano e europeu que privilegiam carne magra.
É realmente notável a audácia da biotecnologia em modificar genomas tão nobres, porém, a ciência e seu dinamismo, deve ser considerada uma parceira e não uma inimiga do produtor. Gostaria de frisar também que isso poderia ser conseguido por transgenia, no entanto pesquisas indicam que esse gene poderia ser instável, ou seja não se expressar tão adequadamente quanto o que é conseguido através da técnica de seleção assistida por marcadores moleculares.
Espero tenha colaborado com o debate sobre cruzamentos desenvolvido pela equipe do BeefPoint e aproveito a oportunidade para parabenizá-los pelo excelente trabalho desenvolvido.
Referências
WHEELER, T.L.; SHACKELFORD, S.D.; CASAS, E.; CUNDIFF, L.V.; KOOHMARARIE, M. The effects of Piedmontese inheritance and myostatin genotype on the palatability of longissimus thoracis, gluteus medius, semimembranosus, and biceps femoris. J. Anim. Sci., v.79,n.12,p.3069-3074, 2001.
SHORT, R.E.; MACNEIL, M.D.; GROSZ, M.D.; GERRARD, D.E.; GRINGS, E.E.. Pleiotropic effects in Hereford, Limousin, and Piedmontese F2 crossbred calves of genes controlling muscularity including the Piedmontese myostatin allele. J. Anim. Sci.,v.80,n.1,p.1-11, 2002.
MUNTZING A., Genetics : Basic and applied. Estocolmo : LTs Förlag, 1967. p 441
MACNEIL, M.D., SHORT, R.E.; GRINGS, E.E.. Characterization of topcross progenies from Hereford,Limousin, and Piedmontese sires. J. Anim. Sci. v.79,p.1751-1756, 2001.
KEELE, J.W.; FAHRENKRUG S.C. Optimum mating systems for the myostatin locus in catlle. J. Anim. Sci., v.79,p.2016-2022,2001.
HARTL, L. D. Essential genetics. Massachusetts; Sudbury, 1996. p 36.
GRINGS, E.E.; STAIGMILLER, R.B.; SHORT, R.E.; BELLOWS, R.A.; MACNEIL, M.D. Effects of stair-step nutrition and trace mineral supplementation on attainment of puberty in beef heifers of three sire breeds. J. Anim. Sci.v.77,p.810-815, 1999.
CUNDIFF, L.V.; GREGORY, K.E.; WHEELER, T.L.; SHACKELFORD, S.D.; KOOHMARARIE, M.; FREETLY, H.C.; LUNSTRA, D.D. Preliminary results from cycle V of the cattle germpplasm evalution program at the Roman L. Hruska U.S. Meat Animal Research Center. Germplasm Evaluation Program. Rep. No 15. USDA-ARS, Clay Center, NE. 1996.
CASAS, E.; KEELE, J.W.; FAHRENKRUG, S.C.; SMITH, T.P.L.; CUNDIFF, L.V. e STONE R.T. Quantitative Analysis of Birth, Weaning, and Yearling Weights and Calving Difficulty in Piedmontese Crossbreds Segregating an Inactive Myostatin Allele. J. Anim. Sci., v77,p.1686-1692, 1999.
1Maurício Nascimento é médico veterinário, MSc em biotecnologia pela USP