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25 de fevereiro de 2002

O Boi anelorado e as novas exigências do mercado abatedor

Humberto de Freitas Tavares1

Segundo notícias veiculadas há duas semanas pelo jornal O Popular, os frigoríficos goianos estavam apresentando fortes restrições à compra de animais cruzados para abate. O gerente de compras de gado do Frigorífico Margen dizia estar pagando R$ 40,00 pela arroba do cruzado castrado, enquanto que pelo boi nelore a oferta era R$ 43,00 a arroba, com o argumento de que o boi cruzado teria má conformação de carcaça, insuficiência da cobertura de gordura e baixo rendimento na desossa. A mesma alegação era apresentada pelo gerente de compras de gado do FrigoAlta, que não escondia seu desinteresse por boi cruzado inteiro. Com base nestes fatos, Antenor Nogueira, coordenador do Fórum Nacional da Pecuária de Corte da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), prometia encaminhar documento ao ministro da Agricultura, pedindo providências. Dizia ele que tudo não passava de atitude oportunista dos frigoríficos, aproveitando-se de um momento de elevada oferta de animais para espoliar ainda mais o produtor. Nogueira também achava muito estranho que só agora os frigoríficos goianos tivessem percebido que a carne do boi cruzado é diferente da carne do Nelore. Saindo em defesa dos frigoríficos, José Magno Pato, presidente do Sindicato das Indústrias de Carnes, esclarecia que o boi cruzado em questão era o boi de raça indefinida, produto da miscigenação sem controle das diversas raças, o que não seria o caso do cruzamento industrial para produção do novilho precoce.

Na semana seguinte o mesmo jornal informava que Nogueira havia encaminhado ofício ao ministro da Agricultura, solicitando a implantação de um sistema nacional de classificação de carcaças bovinas. Segundo ele, a classificação de carcaça representará mais um passo na modernização da nossa pecuária de corte e evitará que a indústria frigorífica continue praticando abusos no mercado de boi gordo, com graves prejuízos para os pecuaristas. No seu entendimento, a depreciação do boi cruzado atinge com maior rigor o pequeno e o médio pecuarista, que em geral possuem rebanhos mestiços da raça holandesa porque também produzem leite.

Visão dos fatos pela ótica do boiadeiro goiano

Embora seja produtor de bois e vacas gordas, sou forçado a discordar de Nogueira, ativo representante dos pecuaristas na CNA. Em primeiro lugar, é falso que o momento seja de oferta elevada. As escalas de abate, todos sabemos, estão curtas. Não seria o momento mais adequado para os frigoríficos se fazerem de difíceis, a menos que o motivo fosse realmente forte… Também não é verdade que só agora, subitamente, os frigoríficos tenham resolvido depreciar os cruzados. Lembro bem que já em setembro de 2000 eu havia conseguido uma boa negociação com o Frig. Bertin, de Mozarlândia/GO. Como eles estavam em fase inicial de funcionamento e iriam receber uma grande comissão de inspeção, concordaram em me pagar um bônus de cerca de 1,5% para que eu apartasse a boiada e mandasse, no dia fatídico, só a “baia capona”. Os F1, de que raça fossem, que ficassem para o dia seguinte junto com os “leiteiros” e os “coloridos”. Discordo finalmente do argumento invocado por Nogueira para defender uma tipificação imposta de cima para baixo — proteger os pequeninos –, já que qualquer sistema de classificação ou tipificação de carcaças sempre dará ao “gabiru” e ao “tucura” as notas mais baixas.

Quanto ao comentário de J. Magno Pato, é óbvio que ele quis baixar a bola e abafar a polêmica, mas o fato é que a ausência de cupim e a falta de castração são hoje passaporte garantido para a vala comum da mercadoria que “não é bem aquilo que eu queria”, no dizer daquele que sempre tem razão — o cliente. Senti isso claramente no abate que fiz em Goiás há 30 dias (Frig. Margen).

Para entender os motivos da má-vontade com todo e qualquer cruzado é preciso adotar o ponto de vista do abatedor goiano, considerar que cerca de 20% dos bois são filhos de vacas leiteiras da região e assistir ao filme das boiadas abatidas nos últimos 20 a 30 anos. Inicialmente leiteiros e não-leiteiros tinham grande porcentagem de sangue Gir, com excelentes carcaças para os padrões da época. Caminhando ao longo do tempo vemos a introdução de touros de baixa qualidade: mestiços holandeses sobre parte dos rebanhos leiteiros, e Nelore nos rebanhos de corte. O resultado foi que o aumento de tamanho dos leiteiros de primeira cruza (girolandos) de certa forma compensou a queda no rendimento na desossa. Nos rebanhos de corte, a heterose Nelore-Gir trouxe grande melhora no tamanho e peso da carcaça, com mudança desprezível na musculatura. Numa segunda fase, a persistência na raça paterna trouxe resultados díspares. No rebanho de corte, a melhora genética dos reprodutores Nelore utilizados compensou a perda de heterose decorrente do branqueamento, do “aneloramento” das matrizes. Isso por outro lado trouxe grande uniformidade, tanto em tamanho e tipo quanto na sensível diminuição de refugos e “guaxos” (a vaca de corte média ficou menos “tetuda”, mais “amorosa” com o bezerro “mais esperto” e passou a dar leite na medida certa). O abatedor ficou contente. Já no rebanho leiteiro, o aumento do grau de sangue holandês e a dieta a pasto desde os 3 dias de idade trouxe à cena o “gabiru”, que ao “erar” se converte no famoso “boi-vaca” de 14 arrobas e péssimo rendimento na desossa. O abatedor começa a ficar irritado com os “cruzados”, mas eles não são ainda muito numerosos.

A má sina do cruzamento industrial foi, primeiro, inventar um novo “cruzado” exatamente neste momento. Mas a novidade não parava por aí. Os pioneiros, talvez com a arrogância dos donos da verdade, quiseram impingir uma mercadoria totalmente em desacordo com as especificações. O comprador tinha se tornado “fã de carteirinha” do boi anelorado, castrado, com 18@. O vendedor, cheio de modernidades, trazia um gado “maneiro” (estava convencido de que boi acima de 16@ dá prejuízo), inteiro (boi castrado ganha menos peso) e ainda por cima exigia bonificação pela “precocidade” (que afinal saiu, mas custeada pelos cofres públicos). Num segundo momento houve a tentativa de assimilar, aos bons mestiços F1, os frutos degenerados de cruzamentos desordenados com touros mestiços. Foi aí que o caldo entornou, com os desdobramentos ora comentados.

A Microeconomia e o mercado do boi

Os capítulos iniciais de qualquer texto básico sobre Microeconomia, como por exemplo o do mestre Heilbroner (1968), ensinam que existem apenas três técnicas para resolver o complexo problema da produção e da distribuição dos bens e serviços de que as sociedades necessitam. “O primeiro é a tradição, encontrado nas regiões economicamente menos desenvolvidas do mundo. Sob tal sistema, as tarefas são desempenhadas com pequenas modificações de geração para geração, e a vida segue uma estrada conhecida, num padrão imutável de sucessão. O segundo é a imposição – uma maneira de solucionar os problemas econômicos que veio desde os faraós até as economias planificadas da antiga União Soviética e da China. A ineficiência, o desperdício, a burocracia, a escassez e os mercados negros muitas vezes são a contrapartida da imposição. O terceiro, finalmente, é o Sistema de Mercado – extraordinário jogo de compra e venda, no qual o desafio do aprovisionamento é atendido tão “sem esforço” que até nos deixamos de preocupar com o próprio desafio. Dinâmico, flexível, auto-regulador, autocorretor, o mercado é uma das invenções mais sofisticadas e mais notáveis da história.”

Esta sofisticação fica evidente ao focalizarmos nossa atenção no sistema de venda/compra de bovinos gordos. Ao contrário do que imaginam alguns “outsiders”, seus agentes (invernista e matadouro-frigorífico) já dispõem de regras muito claras para mercadoria em pé, carcaça e até mesmo (gasp!) rastreabilidade. Dentro da melhor tradição do sistema de mercado, prescindem de quaisquer tentativas de tutela externa. Malgrado o grande número de candidatos a ditador, medidas coercitivas que imponham novas regras só podem ser ditadas pelo governo; se intempestivas ou desastradas elas poderão afetar momentaneamente as transações; na prática, sabemos que elas “não pegarão” e caducarão por efeito da burla, da sonegação, do mercado negro, do desabastecimento, do desemprego, da perda de mercados para concorrentes de outros países.

Variações nos gostos, atitudes, renda, moda, propaganda etc. podem modificar o quadro de procura, e automaticamente, a “mão invisível do mercado”, para usar a expressão imortal de Lord Keynes, determinará uma mudança no quadro de oferta/demanda. Assim, quem desejar impor novos padrões de bovinos, de carcaças e de rastreamento terá necessariamente que ser capaz de “vender” sua idéia a um dos agentes, ou a ambos. Se a idéia for boa, o tempo e o aumento nas transações se encarregarão de mostrar que a nova mercadoria será mais valorizada, possibilitando a ambos, comprador e vendedor, mais “lucro”. Se isso não ocorrer, o mercado decretará sua extinção, sem maiores traumas. Embora ainda pareça cedo para generalizar, este parece ser o caso dos cruzamentos, cujo ocaso pode ser observado não apenas na crescente dificuldade de comercialização do boi vivo, aqui discutida. Liquidações de rebanhos puros das raças que saíram de moda, publicação de resultados que revelam com crueza o efeito do uso de reprodutores europeus puros em monta natural (Anônimo, 2000), queda pela metade na venda de sêmen para cruzamentos em Tocantins (Franco, 2001) e intensa valorização de reprodutores Nelore selecionados para desempenho e “com especificações” (Anônimo, 2001) são outros indicadores bastante eloqüentes.

Deixo para outra ocasião a discussão sobre a rastreabilidade, que tem agitado bastante alguns setores: o da pesquisa, o dos candidatos a “fiscais de rastreamento” e o dos fornecedores de brincos, computadores e quejandos. Mas, face à minha crença nas vantagens do mercado, não posso deixar de registrar meu prognóstico negativo sobre algo que, sendo aplicável a 3% do boi de corte e da carne brasileiros, dá toda a impressão de estar sendo decidido à revelia dos maiores interessados: o boiadeiro e o matadouro.

Tipificação adotada pelo mercado

Com relação à mercadoria desejada pelos abatedores, o que havia sido dito anteriormente (Tavares, 2000) continua valendo: “as blue chips do mercado são o boi azebuado, castrado, de carcaça pesando 250-310 kg, e a vaca azebuada de carcaça pesando 190-225 kg. Boi de cruzamento e “novilho precoce” são mercadorias melindrosas, devido ao baixo peso e ao acabamento deficiente com que são oferecidos para abate; muitas vezes nem mesmo castrados estes animais foram. Os clientes do frigorífico evidentemente não gostam de carne que, não tendo cobertura de gordura adequada, escureceu e sofreu endurecimento por cold shortening.”

Sobre a carcaça, pode-se dizer que uma tipificação “de facto” já existe! Tosca, é verdade, como tosco é em geral o relacionamento do boiadeiro com o segmento do abate de bovinos, o que decididamente não impede que ambos sejam responsáveis por um faturamento anual de US$ 7 bilhões. Para o boi, a preferência é por bandas de 125 kg acima (preço de “boi”); em seguida vêm as bandas regulares de 110-125 kg (desconto de 1 a 3 reais/arroba) e por fim as inferiores, que são as que pesam menos que 110 kg (preço de “vaca”). Marrucos e inteiros têm penalidades discutidas ainda durante a negociação para fechamento do negócio. A musculatura (rendimento na desossa) e o grau de acabamento são presumidos a partir do conhecimento do peso da carcaça e da composição racial dos bois “típicos” da região ou do invernista em questão. Na absoluta maioria das vezes o comprador de bois conhece o tipo de gado produzido por cada invernista que lhe telefona. Com a mesma precisão com que avalia o peso morto de um lote ao inspecioná-lo, vivo, no curral, ele sabe muito bem quem engorda só bois crioulos, castrados ou não; quem engorda inteiros para vender com 16 arrobas; quem é da velha guarda que só gosta de vender marruquinhos de 22 arrobas; quem são os muquiranas que só compram e engordam “gabirus”. Na dúvida, em épocas de escala curta, a conversa se espicha para especular melhor sobre o gado; em dias mais tranqüilos, havendo escala para 7 dias, a oferta é feita por baixo, prevenindo-se contra surpresas desagradáveis.

A penalização dos cruzados é agora a grande novidade, para consternação de quem investiu neste tipo de pecuária sem perguntar ao seu cliente se era mesmo isso que ele queria.

Novos padrões em gestação

Existem, é claro, exceções que mostram uma evolução na formulação das exigências. Uma que eu conheço é o Frig. Bertin, que dispõe de sistema próprio de tipificação (Bertin-Belotto, 1998). Lá, todo e qualquer abate é classificado por idade, sexo, acabamento e peso. Um inspetor pendura nas bandas placas de variadas cores, conforme a dentição e o sexo – inteiro, castrado, fêmea. A gordura é arbitrada visualmente, à distância, pelo balanceiro. O balanceiro seleciona, por leitora de código de barras, sexo, idade e grau de acabamento; o computador recebe da balança a informação do peso, faz a classificação e cospe na impressora o romaneio com peso e classificação de cada banda. Ao final do abate, fornece relatório com um resumo do numero de bandas enquadradas em cada um dos tipos padronizados.

Quem, como eu, no vale do Araguaia, faz recria/engorda de castrados exclusivamente em pasto cultivado de baquiarão e tanzânia, mata cerca de 20% de crioulos, procura comprar bezerros/garrotes anelorados medianos (nem refugo, nem florão) e faz o aparte no olho, perseguindo média de 18 arrobas, vai classificar cerca de 20% na categoria “top” (identificada por BB), 40% na segunda, 30% na terceira e 10% nas categorias inferiores. Alguns comentários pessoais sobre o sistema Bertin:

1) Quando fiz a apartação da boiada nelore para a matança em separado da cruzada, conforme mencionei anteriormente, pude notar que os bois nelore, apartados para dar 18 arrobas, embora cronologicamente mais velhos que bons bois cruzados do mesmo peso, foram reputados em média mais precoces, porque o desenvolvimento da sua dentição é mais tardio. O sistema de classificação pelos dentes favorece, portanto, o Nelore.
2) O Bertin não paga nenhum diferencial pelas carcaças BB. Ao contrário, é bastante rígido nos descontos aplicados aos refugos.

3) É óbvio que o produto da desossa das carcaças BB é vendido nas boutiques Bertin, uma das quais na minha Ribeirão Preto, e da qual sou freguês entusiasmado.

4) As carcaças da segunda e da terceira categoria são repassadas ao mercado com grande facilidade. O lucro do Bertin está portanto na sua capacidade de retirar para si, e comercializar com selo próprio, as carcaças BB – que são a nata, carne jovem oriunda de carcaças pesadas e bem recobertas.

5) Fazendo a tipificação, o Bertin não precisa, evidentemente, penalizar o boi cruzado. Não “precisar” evidentemente não significa que ele não vá adotar a mesma política de seus pares. Muito pelo contrário!

Comentários finais

Será que é bom que existam muitos Bertins no Brasil? Para o boiadeiro, é evidente que não. Quanto mais rústico o mercado, mais concorrência e mais atuantes os “doidos” capazes de furar o oligopsônio (estrutura de mercado em que o número de compradores é pequeno) que seguidamente o segmento de abate tenta organizar. Que Deus livre o Brasil da situação dos EUA, em que mais de 80% dos abates são feitos por apenas 3 grupos.

O risco de vender aos nanicos é o da inadimplência (o maior terror do boiadeiro), felizmente bastante diminuído nos tempos recentes. Deste medo se aproveitam os grandes frigoríficos (teoricamente mais sólidos) para tentar impor padrões de “faca” bastante leoninos, principalmente na sangria, na toalete do peito e no “fitão”.

Referências

Anônimo (2000), “Preferência pelo Gado Zebu tem suas Razões”, DBO Rural, São Paulo, agosto.

Anônimo (2001), “Leilão CAT 2001 Espetacular”, Canal Lagoa, Lagoa da Serra, dezembro.

Franco, M. (2001), “Tocantins Fortalece seu Pólo de Seleção”, DBO Rural, São Paulo, outubro.

Bertin-Belotto, P. (1998), “Tipificação e Rastreabilidade de Carcaças”, 3º Congresso Brasileiro das Raças Zebuínas, ABCZ, Uberaba.

Heilbroner, R.L. (1968), “Understanding Microeconomics”, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, NJ, EUA.

Tavares, H. F. (2000), “Nelore versus Cruzamentos: Uma Visão Sistêmica”, Simpósio Nelore 2000, ACNB, Ribeirão Preto.
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1Produtor de gado de corte em Goiás

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