O dragão, os gansos e a águia

Enquanto o século 20 foi dominado pelo Atlântico, tudo indica que este será o século do Pacífico. No artigo de 3 de maio eu abordei o impressionante crescimento dos países do Leste da Ásia, baseado na consolidação do ‘modelo dos gansos voadores’, qual seja, o aproveitamento das sinergias da região por meio de maciços investimentos empresariais cruzados, sob a liderança do Japão.

Estratégia agressiva de promoção das exportações, rigor fiscal, juros baixos e câmbio desvalorizado foram a receita de sucesso dos ‘gansos’ asiáticos para criar indústrias mundialmente competitivas, tornando-se o pólo mais dinâmico do planeta, com um crescimento do PIB da ordem de 6,5% ao ano.

A formação dos gansos voadores nasceu da energia de empresas que criaram cadeias de suprimento interfronteiriças para melhor aproveitar as vantagens comparativas subregionais. Enquanto isso, a América Latina – denominada ‘patos sentados’ no referido artigo – optou pelo modelo de substituição de importações por produção local pouco competitiva, num ambiente de juros elevados e câmbio instável.

No artigo de hoje, pretendo explorar a única ‘nova geografia’ que merece destaque no mundo atual: a emergência do dragão chinês reordenando o vôo dos gansos e sua crescente interdependência com o mundo desenvolvido, com destaque para a forte simbiose daquela região com a grande águia americana, os Estados Unidos.

As exportações totais da região Ásia-Pacífico passaram de US$ 900 bilhões em 1990 para US$ 3,4 trilhões em 2005. As reservas internacionais monetárias dos dez maiores países da Ásia do Leste atingirão US$ 2,4 trilhões em 2005 (65% do total mundial), ante US$ 1 trilhão em 2000. Dois terços destas reservas pertencem ao Japão e à China. Neste qüinqüênio, o superávit em conta corrente da região passou de US$ 213 bilhões para US$ 400 bilhões.

No mesmo período, entre gastanças abusivas do governo e perda de competitividade internacional, a águia americana ganhou peso e agora precisa ser literalmente carregada pelo dragão e pelos gansos voadores. Neste ano, o déficit em conta corrente dos EUA atingirá a astronômica cifra de US$ 725 bilhões, superando a perigosa marca de 6% do PIB. Quase metade desse déficit tem sido financiada pelos países asiáticos – a China já detém um superávit comercial anual de US$ 200 bilhões com os EUA.

Ou seja, uma parcela considerável das reservas asiáticas tem sido utilizada para financiar o rombo dos EUA por meio da aquisição de títulos de longo prazo do Tesouro Federal. A dívida externa líquida dos EUA chegou a US$ 2,5 trilhões no final de 2004, crescendo 20% ao ano. Metade dessa dívida já é controlada pelos países asiáticos.

Ocorre que o superávit comercial asiático e o déficit em conta corrente dos EUA são os dois lados da mesma moeda. Se os fluxos do comércio trans-Pacífico caírem, os EUA terão dificuldade para financiar o seu déficit cambial. Este desbalanço tem sido chamado de Regime Bretton Woods II, em referência aos arranjos financeiros de Bretton Woods que permitiram a reconstrução da Europa e do Japão no fim da 2a Guerra Mundial.

Na área da política comercial, a grande novidade do último qüinqüênio são os 57 acordos que proliferam em todas as direções na região Ásia-Pacífico, hoje líder mundial nessa matéria. Mais do que promover a liberalização dos mercados de bens, o objetivo desses acordos é incentivar as trocas financeiras e a cooperação institucional, criando regras estáveis para investimentos cruzados e facilitação de comércio.

Começou ontem em Seul, na Coréia, o encontro bianual do Conselho de Cooperação Econômica do Pacífico (PECC), entidade que em 1989 forneceu as bases para a criação da APEC (Cooperação Econômica da Ásia-Pacífico), uma organização que integra 21 países daquela bacia. O dia de ontem foi dedicado à política comercial.

Uma das maiores expectativas do momento é a criação da Área de Livre Comércio Ásia-Pacífico (ALCAP), que será discutida no próximo encontro da APEC, em Busan, Coréia, no mês de novembro. Neste momento, os principais acordos que dominam a cena são Japão-Coréia e China-Asean. Chamam a atenção também os novos acordos que vêm sendo gestados entre o Leste da Ásia, Índia, Austrália e Nova Zelândia. Destacam-se também os primeiros acordos trans-Pacífico: EUA-Cingapura, EUA-Austrália, México-Japão, Chile-Coréia do Sul e Chile-China, a maioria já em processo de implementação.

Os especialistas presentes na reunião do PECC concordaram que a ALCAP seria a melhor alternativa para a integração da bacia do Pacífico. No entanto, o grande empecilho desse megabloco potencial são os crescentes atritos comerciais entre EUA e China e a escalada dos atritos político-diplomáticos entre China, Japão e Coréia.

A opção de curto prazo seria a assinatura de acordos de livre comércio EUA-Coréia (já anunciado) e EUA-Japão. É improvável que os EUA aceitem assinar qualquer acordo com a China neste momento, já que esta vem sendo acusada pelos congressistas americanos de ser a grande vilã mundial dos ‘baixos salários’, do desrespeito sistemático à propriedade intelectual e aos padrões trabalhistas e ambientais.

É interessante notar como a ALCAP enterraria de vez a velha segmentação do mundo em Américas, Europa e Ásia. O novo paradigma trans-Pacífico começa com os acordos bilaterais entre EUA, Austrália, Japão e Coréia. Para não se isolar, a China buscaria uma integração acelerada com os países da ASEAN – Malásia e Tailândia à frente. A ALCAP seria a solução de longo prazo para consertar o ‘prato de noodles’ da Ásia.

Enquanto isso, os ‘patos sentados’ descartaram solenemente, até com certo orgulho, seu avançado projeto de formação da ALCA e agora correm o risco de ficar apenas observando, de longe, o avanço das novas relações do dragão e dos gansos asiáticos com a águia americana e, mais à frente, com o elefante europeu. Aparentemente, México e Chile são os únicos países sensatos da América Latina, que souberam prever o verdadeiro traçado da ‘nova geografia’ e tomaram as atitudes corretas a tempo.

0 Comments

  1. Ricardo Cauduro disse:

    Prezado Prof. Marcos S. Jannk,

    Gostaria de parabenizá-lo pela pontualidade e pela (plasticidade) do texto “O dragão, os gansos e a águia”.

    Sou Veterinário, ligado à área comercial, marketing e entusiasta da cadeia da carne. No momento estou morando na Nova Zelandia. Chama a atenção a quantidade de chineses aqui no país e a objetividade com que eles dizem que estão aqui para estudar – um sentimento patriótico de que estão aqui para aprender e para servir a China posteriormente.

    Isto, acredito, soma ao seu texto também porque estes gansos e dragões estão na posição que estão (investimento em educação) para buscar competitividade e competência.

    Atenciosamente,

    Ricardo Cauduro

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