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O enfoque sistêmico e sua importância para a pecuária bovina

Por Luiz Gustavo Barioni e Geraldo Bueno Martha Junior1

Na agropecuária têm-se reconhecido, atualmente, a necessidade de considerar-se o sistema de produção como um todo na análise de decisões. O uso de conhecimentos disciplinares isolados já é considerado insuficiente para a solução de problemas. Profissionais das ciências agrárias já não podem pensar somente em protocolos e técnicas de reprodução ou recomendações “tabeladas”. Precisam saber, também, como melhor adotar esses procedimentos para atingir os objetivos do pecuarista, o que implica atender seus diversos critérios de sucesso.

Ainda, reconhece-se, progressivamente, que as decisões tomadas nos estabelecimentos rurais possuem uma série de implicações no contexto no qual eles se inserem. Sistemas mais abrangentes, como comunidades, cadeias de insumos e produtos, microbaciais, etc, têm sido considerados por pesquisadores e autoridades como unidades de observação e como objetos de planejamento e tomada de decisões.

Problemas como geração de empregos, distribuição regional de riquezas, segurança alimentar, manutenção da competitividade de indústrias de insumos e produtos alimentícios, geração de superávit na balança comercial, contaminação e assoreamento de aqüíferos, contaminação atmosférica, entre outros são constantemente lembrados atualmente como relacionados à agropecuária.

Essa visão abrangente dos problemas, holística, tem fomentado uma abordagem sistêmica. Embora a palavra sistema já tenha sido incorporada ao vocabulário cotidiano empregado no domínio da produção agropecuária, há ainda uma certa confusão quanto ao seu conceito. Esse termo é corretamente empregado em expressões tais como: sistema de plantio direto, sistemas de informações geográficas, sistemas de acasalamento, sistemas de irrigação, entre outros. Essas expressões não denotam, entretanto, o enfoque sistêmico. Nota-se, então, que o termo sistema assume diferentes significados, à semelhança da maioria das palavras de uso ubíquo. Bons dicionários da língua portuguesa apresentam, dentre outros, os seguintes significados para esse vocábulo:

    1. Uma técnica ou método empregado para um fim específico;
    2. Um conjunto de ações que visam a um objetivo;
    3. Um complexo de regras ou normas;
    4. Um conjunto particular de instrumentos e convenções adotados com o fim de dar uma informação;
    5. Uma estrutura que se organiza com base em conjuntos de unidades inter-relacionáveis, isto é, um conjunto organizado de componentes que por meio de interação reagem como um todo a um estímulo externo.

Dentre as definições apresentadas, essa última é a que possui relação com o enfoque sistêmico e é a que detém a mais densa implicação científica. A percepção de sistemas como “conjuntos de componentes em contínua interação” implica que o todo é diferente da soma das partes. Isto é, a inter-relação entre os componentes do sistema pode gerar respostas não apenas aditivas, mas também sinérgicas ou antagônicas, fazendo com que o sistema todo possa responder de uma forma imprevista em relação ao que seria esperado pelo conhecimento do comportamento de suas partes. Assim, devido às interações e inter-relações entre os componentes serem os determinantes primários do comportamento de um sistema, as reações às intervenções aplicadas sobre componentes isolados são distintas da reação do sistema.

Numa fazenda, muitas atividades podem ser consideradas sob o enfoque sistêmico, uma vez que muitos dos processos relacionados à produção estão intrinsecamente ligados. Essas relações entre componentes se estabelecem tanto em decorrência de unidades de produção agropecuária conterem complexos sistemas biofísicos quanto por haverem importantes inter-relações econômicas na alocação de recursos nessas atividades.

Como cada unidade de produção agropecuária é um sistema com estrutura e estado distintos e em constante mudança, intervenções deveriam ser analisadas de propriedade para propriedade e de ano para ano, pois a adoção de uma tecnologia ou de uma decisão gerencial pode não ter o mesmo valor em diferentes unidades de produção ou em diferentes anos na mesma fazenda.

A necessidade de uma abordagem sistêmica é ainda mais importante no planejamento da atividade pecuária em decorrência da maioria das tecnologias e métodos serem desenvolvidos em condições controladas e, portanto, inferências experimentais não poderem ser feitas diretamente para sistemas mais amplos. Tomemos, por exemplo, a área de manejo de pastagens (ou manejo do pastejo, como atualmente evocado). Especialistas têm definido critérios e metas de manejo com base em experimentos com taxa de lotação variável ou “put and take”, do original inglês, onde animais são colocados e retirados da área de pastagem para manter uma condição de equilíbrio da pastagem durante período experimental. Embora essa metodologia seja extremamente interessante do ponto de vista de estudo das respostas da planta às diferentes condições a que ela possa ser submetida e a resposta dos animais às diferentes condições da forragem, estratégias experimentalmente superiores não implicam, necessariamente, em melhor desempenho em um sistema de produção.

Mudanças de estado da pastagem podem ser atrativas economicamente, devido, entre outros fatores, à sazonalidade de produção de forragem, dinâmica do uso da terra para pastagens e culturas de grãos, à variação de preço dos animais e alimentação suplementar ao longo do ano.

Existe, portanto, uma relação entre a pastagem, alimentos suplementares, adubação, animais e uso da terra. Como a atividade de produção de bovinos constitui um sistema não é possível determinar a solução ótima de manejo em apenas um conjunto restrito de condições, nas quais o sistema real não está atuando. Todas estas intervenções precisam ser consideradas simultaneamente para determinar-se a combinação que melhor atende aos objetivos propostos.

Outra área com exemplo é a formulação de rações para confinamento. Há alguns anos rações eram formuladas adotando o critério de minimização do custo de matéria seca da dieta. Entretanto, embora a minimização do custo de matéria seca garanta eficiência para uma determinada estratégia de engorda, ela não garante máxima lucratividade do negócio. Também a minimização do custo de produção (chamada comercialmente de rações de lucro máximo) não garante a máxima lucratividade do sistema. A otimização econômica da atividade de confinamento demanda considerar-se a época e o peso ideal de compra e venda dos animais, considerando-se a sazonalidade de preços, entre outros. Já foi demonstrado cientificamente que dietas que repercutem em maior custo de produção na fase final de confinamento podem ser mais econômicas caso permitam que animais sejam comprados e vendidos em épocas nas quais os preços são mais atraentes.

O conceito chave da gestão de qualquer sistema é, portanto, adiministrar eficiências sub-ótimas de seus componentes para que a eficiência global possa ser maixmizada em relação aos critérios estabelecidos.

É necessário ainda perceber que cada estabelecimento agropecuário é um sistema com estrutura e estado distintos e em constante mudança.Não existem, portanto, receitas prontas. A adoção de uma tecnologia ou de uma decisão gerencial pode assumir diferente valor para dois estabelecimentos agropecuários ou no mesmo estabelecimento, em diferentes anos. É seguramente importante considerar resultados experimentais, recomendações e as experiências de outros produtores, mas é essencial planejar intervenções com foco no sistema no qual elas serão realizadas e para o contexto no qual o sistema se insere.

Podemos concluir que o conceito de sistemas derrube muitos de nossos pressupostos simplistas e demanda que nossas análises sejam mais amplas. A adoção de conceitos de sistemas na agropecuária demanda, portanto,o desenvolvimento de sistemas computacionais de apoio a tomada de decisões, que simulem o funcionamento do sistema real, considerando os diversos processo e variáveis e suas interações, e sejam alimentados por dados do contexto no qual está inserido (preços, clima, etc). Esses sistemas devem avaliar as estratégias de intervenção do gerente e fornecer informações que permitam avaliar a probabilidade de sucesso das alternativas em relação aos critérios de sucesso do gerente e às relações com sistemas mais abrangentes como comunidades, cadeias de insumos e produtos e microbaciais. Esses sistemas estão em franca evolução em países desenvolvidos, porém ainda engatinhando no Brasil.
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1Pesquisador da Embrapa Cerrados

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