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O sistema bioquímico na influência da maciez da carne

Por Angélica Simone Cravo Pereira1

Nos últimos anos, têm-se enfatizado a produção animal à melhora da qualidade da carne. Porém, essa qualidade final depende de propriedades organolépticas, que incluem aparência, cor, conteúdo de gordura, sabor, textura e maciez. Enquanto a cor e a presença do conteúdo de gordura são importantes e influenciam a compra realizada pelo consumidor, estudos indicam que o grau de maciez do músculo após o abate é um importante fator que contribui de forma significativa na qualidade da carne.

Apesar dos esforços na tentativa de padronizar as raças, cruzamentos, nutrição, transporte, e processos de abate, assegurando a produção de carnes mais macias, ainda há grandes dificuldades em se controlar todos os fatores que alteram toda a cadeia produtiva da carne. Portanto, esse problema é considerado mundial. Sabe-se, que o processo de maciez envolve um complexo de mudanças no metabolismo muscular imediatamente após o momento do abate e é dependente da composição genética, do complemento protéico, do estado metabólico, e de fatores ambientais, tais como, estresse fisiológico, entre outros.

O período pós-morte, queda do glicogênio muscular, acúmulo de ácido láctico, declínio e taxa de pH, e rigor mortis pode influenciar a maciez final da carne, principalmente durante o processo de maturação dessas carnes. Contudo, o significado determinante do pH final, parece ser a extensão da proteólise, nas fibras musculares (Darrel et al., 2003).

Pesquisadores têm apontado o sistema enzimático da família das calpaínas, iniciando como maior fator responsável pela quebra de peptídeos (Koohmaraie, 1996). Enquanto a opinião é dividida como a isoforma da calpaína sendo a mais importante nas condições específicas muitos pesquisadores concordam, que o maior fator que influencia no abate é a calpastatina, inibidora específica das calpaínas. Essa evidência ressalta o potencial de regulação do sistema, a fim de assegurar a maciez na qualidade dos produtos cárneos.

De todas as características organolépticas que contribuem para a qualidade da carne, a maciez é provavelmente a mais importante.

Tem sido documentado por diversos pesquisadores, que a carne de bovinos, associada à presença do genótipo Bos taurus indicus, apresenta força de cisalhamento mais elevada, ou seja, menor maciez e maior variação entre seus valores. Pesquisas têm mostrado, que à medida que a porcentagem das raças Bos taurus indicus cresce, a maciez tende a decrescer e a variabilidade na maciez aumenta. Ainda, a carne produzida no Brasil é predominantemente de animais Bos taurus indicus, considerada menos macia, segundo pesquisas internacionais. Estudos têm sido desenvolvidos, evidenciando-se o sistema enzimático calpaínas e calpastatinas como responsável pela maciez progressiva da carne após o abate do animal, confirmando as hipóteses estudadas, de que a carne é resultado de processos proteolíticos do pós-morte em nível muscular. Uma possível explicação para essa variação na maciez seria a carne de animais Bos taurus indicus apresentar maior atividade de calpastatina.

A causa da variação da maciez foi inicialmente atribuída ao tecido conjuntivo. Para alguns pesquisadores, músculos com pouco tecido conjuntivo resultavam em carnes mais macias, do que àqueles com menor teor de tecido conjuntivo. Porém, somente o colágeno não foi suficiente para explicar a variabilidade da maciez em carnes bovinas.

A deposição de gordura intramuscular (marmorização) é diretamente relacionada à palatabilidade e suculência da carne. Além disso, tem sido correlacionada com a textura, devido ao seu efeito de diluição do tecido conjuntivo. Entretanto, pesquisas posteriores comprovaram, que a presença de marmorização na carne tem pequena influência na maciez da carne, variando entre 10 ou menor que 15%. Por outro lado, pelo fato de ser extremamente importante no aspecto de palatabilidade (sabor e suculência) é muito utilizada como parâmetro de qualidade em diversos sistemas de classificação de carcaças, tornando-se um importante fator de qualidade.

Dessa forma, a resolução desses problemas como a inconsistente maciez da carne é um dos tópicos prioritários recentes na indústria da carne. Isso requer um amplo entendimento dos processos que alteram a maciez da carne e talvez, mais importante, a adoção de tais informações para os setores que envolvem a qualidade da carne. Assim, é de extrema importância identificar os sistemas que atuam no processo de maciez da carne de bovinos. Portanto, o objetivo foi revisar o efeito da atividade das proteases cálcio dependentes na maciez da carne bovina fresca e maturada.

Fatores têm sido relacionados ao processo de maciez da carne, entre eles, a maturação pós-morte, devido à degradação das estruturas protéicas miofibrilares, o sistema de proteases cálcio dependentes e aumento da resistência iônica no músculo (Wheeler et al., 1990).

Durante o processo de amaciamento da carne, estudos relacionando o enfraquecimento e desaparecimento do disco Z de sarcômeros de músculos tratados com cálcio (Ca2+), levaram à descoberta do sistema de calpaínas (Delgado, 2001). De acordo com o mesmo autor, fora identificado e isolado uma protease ativada por (Ca2+), removendo os discos Z e promovendo uma perda da periodicidade, entre os filamentos contrácteis do músculo.

Portanto, o sistema das calpaínas juntamente com as catepsinas são as únicas enzimas capazes de hidrolizar em proteínas miofibrilares. Ainda, uma das principais evidências, que apontam para as calpaínas, como reguladoras do processo de amaciamento, é o fato de não degradarem actina e miosina, que permanecem inalteradas, durante o processo de maturação da carne. Além disso, as calpaínas hidrolisam as proteínas em determinados pontos internos das moléculas, não sendo capazes de levar o processo de hidrólise até aminoácidos (Delgado, 2001).

O requerimento aparente das calpaínas para a concentração suprafisiológica de cálcio e o excesso natural de calpastatina em muitos tipos de músculos têm, no passado, levado à demissão da função das calpaínas na maciez pós-morte.

O sistema proteolítico das calpaínas consiste de 1) mi-calpaína (requer Ca2+ em quantidades micromolar para atividade); 2) m-calpaína (requer Ca2+ milimolar para a atividade); e 3) calpastatina (o inibidor endógeno das calpaínas). Pesquisas indicaram a enzima calpastatina, como a maior reguladora do sistema proteolítico das calpaínas no músculo pós-morte.

O decréscimo da maciez associado com raças Bos indicus parece estar altamente correlacionado com a atividade da calpastatina nas 24hs pós-morte (Shackelford et al., 1991).

Pesquisas recentes demonstraram, que a relação entre os níveis do sistema de calpaínas e as medidas estáticas de maciez podem ser confundidas por outros fatores que têm sido estudados e que influenciam a maciez do músculo, tais como: pH final, comprimento do sarcômero e estrutura do tecido conjuntivo. Assim, a atividade do sistema de calpaínas pode ser mais bem relacionada com a taxa de mudanças nos atributos de maciez. Além disso, foi observada uma correlação negativa entre a taxa de mudança na força de cisalhamento durante o período de maturação e a taxa de mi-calpaína para calpastatina. Similarmente, a taxa de fragmentação miofibrilar durante a maturação foi positivamente correlacionada com a taxa de mi-calpaína para calpastatina.

Ainda pode-se considerar que há níveis intermediários de interações miosina-actina e que o amaciamento da carne, após a resolução do rigor mortis, seria provocado por enzimas proteolíticas do músculo, especificamente mi-calpaínas (Goll et al., 1992).

Assim, há uma hipótese de que as calpaínas são as responsáveis pela proteólise pós-morte nos músculos após o abate.

Cundiff (1993) sugeriu que a seleção para baixas concentrações da atividade de calpastatina pode ser especialmente utilizada para melhorar a maciez da carne em bovinos Bos indicus e seus cruzamentos devido ao aumento da atividade de calpastatina e tendência para produzir carnes menos macias.

Segundo Delgado, (2001) a relação entre as calpaínas e a calpastatina tem uma característica interessante, já que a calpastatina parece atuar como enzima inibidora. Isto se deve ao fato da calpastatina ser degradada pela calpaína. Assim, em condições pós-morte, a degradação da calpastatina e a autólise da mi-calpaína, parecem decrescer, devido à maior quantidade de calpastatina “intacta” e sua atividade inicial (Delgado et al., 2001). Dessa forma, o nível inicial de calpastatina pode causar menores taxas de extensão no amaciamento da carne.

Portanto, a calpastatina teria ação regulatória na taxa de proteólise miofibrilar e hidrólise, controlando a atividade da mi-calpaína, sem cessar os efeitos da proteinase. Todavia, os valores elevados de inibição da atividade caseinolítica pela calpastatina, ultrapassam a atividade inicial das calpaínas, colocando em dúvida, a capacidade da calpaína de promover qualquer ação pós-morte. De acordo com Goll et al. (1992) e Delgado, (2001) o quadro seria ainda mais complicado, considerando o fato do nível de cálcio necessário para promover a ligação calpastatina-calpaína ser inferior àquele, que promove a proteólise pelas calpaínas.

Portanto, na presença de calpastatina suficiente, com o aumento de cálcio e exposição do sítio das calpaínas, ocorreria primeiramente à inibição das proteinases, antes da possibilidade de ativação das proteólises (Goll et al., 1992).

Ainda existem pontos a serem explorados, como a influência da atividade da calpaína ligada às miofibrilas no processo de maciez. Trabalhos realizados por Delgado et al., (2001) observaram que uma quantidade significante (aproximadamente 40%) da µ-calpaína ligava-se às miofibrilas, de forma não extraída pelos métodos utilizados para a medição da atividade. Ainda, inibidores para a calpaína preveniram a proteólise das proteínas miofibrilares, porém, não inibiram a atividade caseinolítica.

Dessa forma, esta calpaína, ligada às miofibrilas, seria uma explicação das diferenças ocorridas no processo de amaciamento, principalmente devido ao fato de sua atividade não ser completamente inibida pela calpastatina, direcionando para a possibilidade de uma localização diferenciada da calpaína e calpastatina (Delgado, 2001).

De acordo com Morton et al. (1999) a maciez final do músculo Longissimus dorsi está relacionada com a capacidade inicial da calpastatina no músculo; com a taxa de autólise da mi- calpaína e com a taxa de declínio do pH. Ainda, segundo o mesmo autor, em trabalhos realizados com ovinos, a maciez no músculo foi inversamente proporcional aos níveis iniciais de calpastatina.

Embora o pH não tenha efeito direto na maciez da carne, com a elevação na primeira hora pós-morte, tem declínio mais vagaroso nos níveis de mi- calpaína e calpastatinas. Thomson et al. (1996) relataram que existe, portanto, uma relação direta entre a atividade da mi- calpaína e o pH, em que à medida que se reduziu o pH in vitro a atividade de mi-calpaína também foi reduzida.

Ainda, as calpaínas também causam hidrólise das proteínas miofibrilares, resultando na desestabilização das miofibrilas durante o armazenamento pós-morte. A calpastatina coexiste com as calpaínas em todas as células. A concentração de calpastatina varia entre as células e tecidos nos animais e nas diferentes espécies. Estudos conduzidos para determinar o efeito da estocagem pós-morte nas atividades dos componentes do sistema proteolítico das calpaínas têm indicado, que enquanto a m-calpaína é altamente estável, há um declínio acentuado na atividade da mi-calpaína e da calpastatina (Morton et al., 1999; Delgado et al., 2001; Veiseth et al. 2001). Porém, esta diferença da atividade da calpastatina logo após o abate não foi observada nos trabalhos, como descritos por Shackelford et al., 1991.

Segundo pesquisas, a atividade da calpastatina tem sido mensurada após 24h pós-morte e tem sido implicada como causa das diferenças na maciez entre bovinos Bos taurus taurus e Bos taurus indicus. Além disso, a maciez e a atividade da calpastatina têm sido relacionadas com herdabilidades de média a alta (entre raças) e entre tratamentos são correlacionadas geneticamente.

Dessa forma, é provável que o amaciamento da carne, durante a resolução do rigor mortis, seja resultado da ação proteolítica da mi-calpaína, iniciada no momento do abate (Koohmaraie, 1996).

Ainda, há evidências, que a atividade da calpastatina, especialmente quando mensurada até 24h após o abate é altamente relacionada com a maciez da carne.

Portanto, há a necessidade cada vez maior do entendimento das bases bioquímicas, no desempenho das funções dos músculos e seu processo de amaciamento. Dessa forma, pode-se melhorar a qualidade da carne bovina, aumentando a demanda de carne pelo consumidor, com conseqüentes ganhos para o produtor e toda a cadeia da carne.

Referências Bibliográficas

CUNDIFF, L.V. Genetic selection to improve the quality and composition of beef carcasses. Proc. Annu. Reciprocal Meat Confer. p.123. American Meat Science Association in Cooperation with the National Live Stock and Meat Board, Fort Collins, CO, 1992.

DARREL, E.; GOLL, D.E.; VALERY, F.; THOMPSON, V.F.; HONGOI LI.; WEI WEI., JINYANG CONG. The calpain system. Physiol. Rev., v.83, p.731-801, 2003.

DELGADO, E.F. Fatores bioquímicos que afetam a maciez da carne. In: 1º Congresso Brasileiro de Ciência e Tecnologia de Carnes. São Pedro, 2001. Anais… São Pedro, 2001CTC/ITAL, 2001, p.143-159.

GOLL, D.E.; THOMPSON, V.F.; TAYLOR, R.G.; CHRISTIANSEN, J.A. Role of the calpain system in muscle growth. Biochimie, v.74, n.3, p.225-237, 1992.

KOOHMARAIE, M. Biochemical factors regulating the toughening and tenderization process of meat. Meat Science, v.43, n.S, p.S193-S201, 1996.

MORTON, J.D.; BICKERSTAFFE, R.; KENT, M.P.; DRANSFIELD, E.; KEEKEY, G.M. Calpain-calpastatin and toughness in M. longissimus from electrically stimulated lamb and beef carcasses. Meat Science, v. 52, p.71-79, 1999.

SHACKELFORD, S.D.; KOOHMARAIE, M.; MILLER, F.; CROUSE, J.D.; REAGAN, J.O. An evaluation of tenderness of the longissimus muscle of angus by Hereford versus Brahman crossbred heifers. J. Anim.Sci., v.69, p.171-177, 1991.

THOMSON, B.C.; DOBBIE, P.M.; SINGH, K.; SPECK, P.A. Post-mortem kinetics of meat tenderness and components of the calpain system in bull skeletal muscle. Meat Science, v.44, n.3, p.151-157, 1996.

VEISETH, E.; KOOHMARAIE, M. Effect of extration buffer on estimating calpain and calpastatin activity in post mortem ovine muscle. Meat Science, v.57, p.325-329, 2001.

WHEELER, T.L.; SAVELL, J.W.; CROSS, H.R.; LUNT, D.K.; SMITH, S.B. Mechanisms associated with the variation in tenderness of meat from brahman and hereford cattle. J. Anim.Sci., v.68, p.4206-4220, 1990.
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1Angélica Simone Cravo Pereira é pós-graduanda em Qualidade e Produtividade Animal, FZEA – USP, Pirassununga.

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