Você provavelmente já ouviu espécies predadoras como leões, lobos e até orcas serem chamadas de “hipercarnívoros”. A lógica por trás dessa classificação é simples: se um animal obtém mais de 70% de sua ingestão calórica diretamente da carne, ele se encaixa nessa categoria.
Os humanos, por outro lado, estão em outra categoria, a dos onívoros, capazes de digerir tanto alimentos de origem animal quanto vegetal. Mas você sabia que certos grupos ainda hoje ultrapassam os limites dessas classificações?
Como biólogo, me interesso pela variação da dieta humana através de culturas e do tempo, e em como isso se compara às dietas animais. Embora a maioria dos humanos modernos esteja longe de ser hipercarnívora, algumas populações excepcionais alcançaram historicamente, ou chegaram perto, desse patamar. Neste artigo, examinarei quais grupos humanos se aproximaram de um verdadeiro comportamento hipercarnívoro e o que isso mostra sobre nossas raízes evolutivas.
Um hipercarnívoro é um animal cuja dieta é composta em mais de 70% por carne, normalmente considerando calorias, não apenas volume ou frequência. O restante pode vir de matéria vegetal ou outras fontes que não sejam carne.
A maioria dos humanos de hoje, incluindo a maioria dos leitores deste artigo, obtém uma parte significativa de suas calorias de carboidratos, como grãos, tubérculos, leguminosas e frutas.
Mas em certos ambientes extremos onde as plantas são escassas, ou em circunstâncias culturais específicas, algumas populações se adaptaram para sobreviver, muitas vezes prosperar, com dietas baseadas principalmente em alimentos de origem animal.
Quando se trata de hipercarnivorismo humano, os Inuit das regiões árticas são, sem dúvida, o exemplo mais citado. Vivendo em um dos ambientes mais pobres em plantas da Terra, as dietas tradicionais dos Inuit eram historicamente compostas de até 95% de produtos animais. As principais fontes de alimento incluíam:
Plantas comestíveis praticamente não existem no Ártico durante a maior parte do ano, e a situação se agrava nos longos invernos. Como os Inuit conseguiram sobreviver? Desenvolveram adaptações metabólicas únicas para viver quase exclusivamente com dietas ricas em gordura e proteína. Isso incluiu variações genéticas no metabolismo de ácidos graxos e na síntese de vitamina D.
Tradicionalmente, a dieta Inuit já era naturalmente baixa em carboidratos. Além disso, eles evitavam os problemas associados às modernas dietas ricas em proteína e pobres em carboidratos porque consumiam grandes quantidades de gordura, incluindo a gordura rica em ômega-3. Seu estilo de vida era ativo, a dieta era densa em nutrientes e, até a chegada da influência alimentar ocidental, apresentavam taxas relativamente baixas de doenças crônicas.
Com um estilo de vida pastoralista centrado em seu gado, os Maasai se estabeleceram nas planícies do Quênia e da Tanzânia. Não eram hipercarnívoros estritos como os Inuit, mas a dieta tradicional Maasai está entre as de maior consumo de produtos animais do mundo, com grande parte das calorias vindas de:
Homens em idade guerreira dos clãs Maasai podiam passar longos períodos sem consumir nenhum alimento de origem vegetal. Eles descobriram que sangue e leite ofereciam um perfil nutricional surpreendentemente completo, especialmente quando consumidos frescos e não processados.
Embora a porcentagem exata de calorias de origem animal variasse conforme a estação e a riqueza, alguns subgrupos Maasai chegaram perto de se qualificar como hipercarnívoros em determinados períodos do ano.
No auge do Império Mongol, os cavaleiros nômades das estepes da Ásia Central viviam de uma dieta fortemente baseada em alimentos de origem animal. Criavam ovelhas, cabras, iaques e cavalos, e consumiam:
Amidos e plantas cultivadas eram relativamente raros nas estepes. Embora não fossem totalmente hipercarnívoros, muitos grupos mongóis provavelmente obtinham mais de 70% de suas calorias de produtos animais por longos períodos, especialmente durante campanhas militares ou nos invernos.
Tribo como Lakota, Comanche e Blackfoot, particularmente em tempos pré-coloniais, dependiam fortemente da caça ao bisão. Durante as temporadas de caça intensa, muitas dessas comunidades obtinham a maior parte de sua nutrição de:
Embora muitos desses grupos também coletassem frutas silvestres, raízes e grãos quando disponíveis, o bisão fornecia uma fonte calórica densa e disponível o ano inteiro, especialmente depois que métodos de preservação foram aperfeiçoados.
Voltando ainda mais no tempo, cientistas acreditam que humanos do Paleolítico Superior na Europa da Idade do Gelo, especialmente durante períodos glaciais, podiam ser altamente carnívoros. A prova está nos fósseis. Análises das razões de isótopos de nitrogênio em ossos fossilizados sugerem que alguns grupos dependiam fortemente de grandes herbívoros como:
Em climas frios, plantas comestíveis eram sazonais ou limitadas, e humanos com ferramentas de caça e cooperação social dominavam ambientes ricos em carne. Algumas dessas populações podem ter ultrapassado o limite de 70% por longos períodos, situando-se claramente na zona hipercarnívora.
A resposta é não, com ressalvas. Os humanos são onívoros extremamente adaptáveis e, sob certas pressões ambientais, como agora sabemos, alguns grupos caminharam em direção ao hipercarnivorismo por necessidade ou cultura. Nossa flexibilidade evolutiva pode ser nossa maior força alimentar.
Isso significa que você pode adotar uma “dieta de leão” amanhã? A resposta aqui é não, sem ressalvas. As dietas descritas neste texto evoluíram em condições ambientais específicas e, como era de se esperar, frequentemente vinham acompanhadas de contrapartidas. Por exemplo:
Os Inuit tinham altas taxas de infecção parasitária por consumirem carne crua.
Os Maasai apresentavam deficiências de vitamina A e C por causa da exclusividade de carne e laticínios.
Nômades das estepes frequentemente sofriam de deficiência de vitamina C, a menos que consumissem vísceras cruas.
Ainda assim, esses exemplos oferecem uma visão fascinante sobre a resiliência e a diversidade nutricional humanas.
Embora a maioria dos humanos modernos dependa de grãos, vegetais e alimentos processados para a maior parte das calorias, a história mostra que certos grupos chegaram próximos aos limites do hipercarnivorismo. Do Ártico congelado às estepes ventosas da Mongólia, a necessidade e o ambiente moldaram dietas que se apoiaram fortemente, às vezes quase totalmente, na carne.
Como biólogo, vejo esses exemplos não como prescrições dietéticas, mas como lembretes da notável adaptabilidade de nossa espécie. O corpo humano pode sobreviver, e às vezes prosperar, com uma ampla variedade de dietas. Mas, no fim, é o contexto, não a ideologia, que determina o que é ideal. E em alguns pontos da história e da geografia, os humanos chegaram surpreendentemente perto de serem verdadeiros hipercarnívoros.
*Scott Travers é colaborador da Forbes EUA, biólogo evolucionista americano, radicado na Universidade Rutgers, onde se especializou em biodiversidade, evolução e genômica.
Fonte: Forbes.