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Por quê cruzar? Uma visão sistêmica

Por Humberto de Freitas Tavares1

Como dizia Nelson Rodrigues, só os profetas enxergam o óbvio. Sem meias-palavras, como é do seu feitio, e do alto de sua rica experiência de vida — fundador da Manah, preservador do Nelore Lemgruber (a mais antiga linhagem do Brasil) e pioneiro brasileiro do plantio direto –, Fernando Cardoso (1) ousou sentenciar que “a análise dos cruzados baseada na heterose, sem considerar o ganho por unidade de área utilizada e sem levar em conta o criatório sob todos os ângulos e por vários anos, pode conduzir a conclusões precipitadas, facciosas e enganosas”.

Foi o que bastou para, no espaço de cartas do leitor do Beef Point, ser chamado de “leviano, comprometido e sem nenhum embasamento científico”.

Acho que o que menos falta nesta discussão é o “embasamento científico” trazido por pecuaristas de gabinete, que conseguiram impingir a uma elite da pecuária brasileira — os mais jovens, os mais empreendedores, os mais letrados, os mais arrojados — as verdades supremas emanadas do Clay Center, hoje questionadas até mesmo nos EUA. Vide o sucesso da carne lá preferida, de bois de uma raça pura, e as tentativas desesperadas de, ao colorir de preto e mochar geneticamente os touros das outras raças, tentar produzir bezerros que o mercado não discrimine.

Seguindo o conselho de Cardoso e partindo para examinar a questão sob vários ângulos, podemos começar por usar os dados do próprio Nilson Herrero (2). Se o bezerro cruzado pesa uma arroba e meia a mais que as 5 arrobas do Nelore de mesma idade, isso significa 30% a mais de peso. Se ele é vendido com sobre-preço de apenas 20%, então houve prejuízo, e não lucro.

Algumas outras questões para ruminar:

1) Essa 1,5 arroba caiu do céu (o cruzado produziria mais para uma mesma quantidade de nutrientes ingeridos) ou veio como fruto de um maior apetite (significando maior consumo de pasto e leite)?

2) Maior consumo de pasto significa alojar menos cabeças por hectare?

3) O maior consumo de leite pode refletir negativamente sobre a fertilidade aparente da mãe anelorada? Por fertilidade aparente entendamos o número de crias desmamadas por ano, com média feita ao longo de vários anos.

4) O bezerro cruzado nasce mais pesado que o anelorado? Sua gestação é mais curta que a de um bezerro anelorado? O auge da gestação da matriz média do cerrado brasileiro é durante a época da seca? Em caso de resposta positiva, a drenagem maior e mais rápida de nutrientes, numa época em que a vaca está em balanço energético negativo, pode ter impacto indesejável sobre sua fertilidade aparente?
5) As técnicas usadas para levar o espermatozóide do touro europeu ao óvulo da vaca anelorada propiciam a mesma fertilidade aparente obtida sob cobertura natural com touro Nelore?

6) O usuário de cruzamentos dispõe de Sumários de Touros tão amplos e tão confiáveis quanto os disponíveis para touros Nelore usados em inseminação artificial? Importante: os sumários referem-se a matrizes zebuínas ou taurinas?

7) O cruzado tem maior ou menor rendimento no abate (peso morto dividido pelo peso vivo) que o boi anelorado? Dica: Ao contrário da propaganda enganosa, só raças de musculatura dupla e seus mestiços rendem mais que o Nelore.

8) A criação do cruzado exige o emprego, em maior quantidade, de substâncias químicas que o consumidor possa entender como nocivas?

9) A carne brasileira (80% ou mais proveniente de bois azebuados) é ruim e precisa urgentemente ser mudada? Um bom termômetro seria comparar o consumo de carne bovina e o de outras carnes em restaurantes brasileiros de espeto corrido (“rodízio”). Sobre este assunto, uma reflexão interessante do prof. Pedro Felício aparece na mais recente edição da revista da ABCZ.

10) A propalada maior “qualidade” da carne de cruzados está sendo reconhecida pelo mercado comprador e recebendo o merecido sobre-preço? Ou o contrário está acontecendo? Por quê? Os compradores são todos uns manipuladores ignorantes?

___________________________________
(1) Cardoso, F. P., “Por quê cruzar com Bos Taurus?”, BeefPoint, 18/2/2003,

(2) Herrero, N., “Comentário à ref (1)”,

1 Humberto de Freitas Tavares é Criador e invernista, em São Paulo e em Goiás, Sócio-Fundador do Grupo Provados a Pasto

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  1. Alexandre Zadra disse:

    É interessante como vem sendo tratada uma questão já inúmeras vezes estudada e concluída.

    Sabemos que o cruzamento é apenas uma das ferramentas para se aumentar a produtividade de nossa pecuária de 20% de desfrute. Se o nelore fosse tão produtivo, não seria esse o desfrute do Brasil, e sim 30%.(Logicamente que em alguns criatórios de Nelore com boas pastagens e produtos de inseminação, pode haver números que se aproximem de 25%, mas nesse caso, se fosse feito cruzamento dirigido, o resultado chegaria à 40% de desfrute).

    Mas vamos tentar esclarecer alguns pontos levantados pelo Sr. Humberto;
    1. O cruzado tem maior apetite, mas conforme trabalhos práticos de campo em todo o mundo, inclusive no Brasil(EMBRAPA), a eficiência bioeconômica do cruzado é maior, pois ele tem maior metabolismo, ingerindo a mesma quantidade de alimento que o Nelore para ganhar o mesmo 1 kg de peso vivo, mas em menor tempo.

    2.Tanto o Nelore, quanto o Cruzado ingerem a mesma quantidade de alimento para ganhar 1 kg de peso vivo.

    3.Não, o retorno ao cio será o mesmo se os requerimentos da fêmea Nelore forem supridas com boas pastagens.

    4.Novamente, depende das pastagens.

    5.Monta natural é uma bos ferramenta de repasse e não para se fazer um boi de qualidade.

    6.Com certeza será muito melhor quando as Empresas de I.A. lançarem seus sumários sobre matrizes nelore, mas o que se tem visto sobre matrizes Nelore é a aplicação prática das DEPs encontradas nos Sumários do gado puro Europeu.

    7. Conforme Barbosa(EMBRAPA) o rendimento do Cruzado é exatamente o mesmo que o Nelore, quando bem terminado.

    9.Com certeza, quem experimentou carne de um boi cruzado e um Nelore na mesma idade sentiu que a maciez do Cruzado é bem maior.

    10. Infelizmente não há produção de cruzados suficientes para abastecer o mercado, assim poucos consumidores sabem o que é carne de qualidade.

    Alexandre Zadra
    Zootecnista

  2. Rafael Mendes disse:

    A questão relacionada ao cruzamento industrial deve ser analisada com um pouco mais de responsabilidade e muito mais conhecimento prático do assunto.

    Posso falar sobre o tema com propriedade, pois sou de uma família de pecuaristas no MS e adotamos o cruzamento industrial a quase dez anos atras. Hoje desmamamos bezerros F1(gado comercial) aos 8 meses com 230 kg sem suplementação (Creep-feeding). Quando isso seria possível com o bezerro Nelore (gado comercial)?

    Nós entouramos novilhas F1 com 18 mêses no máximo, sendo que esse ano fizemos um teste entourando novilhas entre 12 a 13 meses com suplementação no inverno e obtivemos índice de prenhês de 65%. As novilhas vazias estão prontas para o abate. Quando isso seria possível com a novilhas nelore?

    Nosso índice de prenhês há anos é superior a 90%.

    É preciso considerar que tudo isso só é possível também por que esses animais tem sangue Nelore, que contribui para a rusticidade dos animais no nosso clima.

    De maneira geral, não se deve desmerecer o Nelore tão pouco o cruzamento industrial, e sim adotar o sistema de cruzamento industrial ou não de acordo com o sistema de produção de cada propriedade, sempre lembrando que sistemas de produção diferentes possuem pastagens diferentes, tamanho de pastos diferentes, sistema de suplementação diferentes, escalas diferentes, manejo sanitário diferentes e gerenciamento diferentes.

    Sem o nelore não tem pecuária no Brasil.

    Sem o cruzamento industrial, o processo de melhoramento dos índices zootécnicos é muito lento.

    Comentários:

    – 1.5 @ não cai do ceu, é fruto da heterose;

    – Se a vaca cruzada come mais ou não, pode-se questionar (mas produz mais). Qual é o cruzamento (raças continentais ou britânicas?);

    – Como pode o consumo de leite eventualmente diminuir o cio das vacas, se na prática temos ótimos índices de prenhês.

    – Se um animal produz mais, obviamente merece um melhor tratamento.

    Não cabe na pecuária nacional, que busca a modernização, comportamentos radicais, muito menos com tendencias comerciais.

  3. Alexandre Zadra disse:

    É interessante como Sr. Humberto aborda a questão “Por que cruzar?”

    Mas tentarei aqui ser objetivo ao responder algumas questões por ele levantadas.

    Antes de mais nada, gostaria de deixar claro que o cruzamento será tão melhor, quanto melhor a matriz for, ou seja, é primordial e fundamental o processo de seleção para características produtivas que vem ocorrendo no Nelore.

    1. Realmente, se pensarmos em termos de quantidade de alimento ingerido pelos bezerros, o cruzado comerá proporcionalmente mais para ganhar 1,5 @ à mais até a demama, no entanto, sabemos que só se consegue um animal precoce, caso ele seja pesado na desmama, assim é importantíssimo que se produza animais mais pesados na desmama. Uma questão; O Sr. Humberto compra bezerros mais pesados ou mais leves, pois pelo que parece, ele prefere bezerros mais leves na desmama.

    2. De acordo com pesquisadores renomados EMBRAPA, o consumo para ganhar 1 kg de peso vivo é o mesmo tanto para o cruzado, quanto para o Zebuíno, assim é uma afirmação errônea dizer que o cruzado come mais. Dr. Frisch afirma “que tanto os cruzados, quanto os Zebuínos ingerem a mesma quantidade de alimento para ganhar 1 kg de carne, mas o cruzado tem a vantagem de sair antes e proporcionar maior giro de capital e desfrute(acréscimo de 30%) ao produtor.

    3. O Sr. Humberto tem razão quando diz que a mãe anelorada com bezerro cruzado ao pé tem uma menor fertilidade aparente. É justamente por isso que os zootecnistas não vêem o cruzamento como uma salvação da pecuária, mas como uma parte do tripé(Nutrição, Genética e sanidade). Dessa maneira, quem realiza cruzamento deve saber que seus índices reprodutivos serão tão melhores, conforme o manejo alimentar dos bezerros cruzados(creep feeding). Como ocorre em vários rebanhos assistidos e acompanhados por nós.

    4. O cruzamento dirigido e planejado é essencial para o sucesso do cruzamento, assim deve-se utilizar as raças e principalmente sêmen de touros provados para que não ocorram problemas de parto. Quanto à exigência da matriz prenha na seca, vale salientar que a melhor matriz é aquela que emprenha o mais rápido possível após parir, assim oque importa é a condição corporal dela ao parir e na desmama. Lembrando que o terço final de gestação realmente é o mais exigente e que o manejo indicado é colocá-las em bons pastos. Mas não há diferença significativa quanto à exigência do feto cruzado e o anelorado.

    5. Cruzamento industrial entre Europeu e Zebu de um modo geral só funciona com Ins. Artificial.

    6. Realmente uma questão polêmica, pois será que os Sumários Nacionais são tão confiáveis como parece? E aliás, qual deles utilizar na escolha de touros Zebuínos?

    7. Os trabalhos demonstram que o Zebu e os diversos tipos de cruzado na média apresentam o mesmo rendimento de carcaça.(Barbosa). Sabe-se que os cruzados devem ser abatidos (à pasto) com 1,5@ à mais que o Anelorado para se obter o mesmo rendimento e acabamento de carcaça. Os cálculos econômicos indicam que o lucro do cruzado abatido 1,5@ mais pesado que o Nelore, será de R$85,00, pois mesmo mais pesado, ele sai com no mínimo 6 meses antes que o Zebu (R$60,00 de aluguel de pasto).

    8. Quanto à substâncias químicas, não conseguí entender a questão do Sr. Humberto. Se pasto e sal forem substâncias químicas, não precisará de mais disso que o Zebuíno.

    9. Se comer carne macia for ruim, realmente o Zebuíno é melhor.

    10. O consumidor nunca teve dinheiro para pagar carne diferenciada. Seja ela do Nelore precoce ou do Cruzado precoce, sabemos que qualidade é paga por um nicho específico e seleto. Parabéns à marca Nelore Natural pelo marketing, mas sabemos que a picanha de um cruzado bem terminado é bem melhor. (Eu já experimentei e recomendo ao Sr. Humberto.)