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Protecionistas sem fronteiras

Cento e cinqüenta países da Organização Mundial do Comércio (OMC) reuniram-se em dezembro em Hong Kong com o objetivo de ampliar o intercâmbio e melhorar as regras do comércio internacional. No centro de convenções da cidade, centenas de negociadores esgotavam as suas energias até a madrugada tentando defender meia dúzia de setores menos eficientes de suas economias – tudo, claro, escondido sob a bandeira do “interesse nacional”. Do lado de fora, dezenas de milhares de ativistas antiglobalização protestavam mais uma vez contra o neoliberalismo e a liberalização do comércio. Um protesto desnecessário, já que a reunião provou não haver grande diferença conceitual entre os dois grupos que atuavam dentro e fora do grande circo midiático bianual da OMC.

Curiosamente, o protesto dos “globofóbicos” ocorria precisamente no epicentro da região que mais se beneficiou com a expansão do comércio e dos investimentos mundiais. Na cabeça dos indivíduos que tentavam invadir o prédio estava a defesa da “soberania nacional” para o arroz e seus companheiros do prato de comida. Contudo, se nos distanciarmos um pouco, é fácil perceber que a maioria da população daquela região entraria em pânico se aquele conceito fosse estendido para o consumo de roupas e produtos eletrônicos no resto do mundo. O mundo mudou, mas infelizmente as regras do jogo diplomático ainda continuam as mesmas desde o Século18: brigar pela plena abertura dos setores em que se é mais eficiente e proteger, a qualquer custo, os menos competitivos. A velha crença mercantilista de que exportar é bom e importar é ruim!

Tal é o caso dos agricultores franceses, que tanto se beneficiaram da abertura dos mercados de alimentos e bebidas para exportar seus maravilhosos queijos, vinhos, champagnes, presuntos e foie gras. Mas que defendem ardorosamente a tal “soberania alimentar” no caso do açúcar, do milho e das carnes – curiosamente os produtos em que são pateticamente ineficientes.

Do outro lado do Atlântico Norte, encontramos a grande nação que criou os Land Grant Colleges em 1862 – um eficiente sistema integrado de faculdades agrícolas – e que liderou a maior revolução tecnológica da história da agricultura mundial. Seus produtores, no entanto, dependem hoje cada vez mais do guarda-chuva dos subsídios governamentais, distribuídos por meio de complicados programas de sustentação de preços e renda que vão espertamente mudando de cor para escapar das disciplinas da OMC. Com subsídios tão fáceis e generosos, por que ampliar a competição?

Mais ao sul do planeta, dezenas de países pobres exigem que a OMC lhes dê “múltiplos espaços” para a impossível tarefa de copiar os piores mecanismos de política agrícola usados pelos países ricos. A reunião de Hong Kong sacramentou novas formas de proteção para os países em desenvolvimento: criou uma lista de “produtos especiais”, que não sofrerão nenhum corte de tarifas, e permitiu o uso de “salvaguardas automáticas”, que ainda garantem proteção adicional por meio de gatilhos de preços e quantidades. O fato, porém, é que meia dúzia de mecanismos similares de proteção irão se acumular desnecessariamente sobre o mesmo pequeno grupo de commodities, com risco de aumentar a insegurança alimentar dos consumidores mais pobres sem, no entanto, resolver o problema dos pequenos produtores. Em vez de buscar a falsa solução do protecionismo, os países em desenvolvimento melhor fariam se adotassem as únicas políticas capazes de melhorar a realidade do meio rural – educação, pesquisa, tecnologia, infra-estrutura, assistência técnica, respeito aos direitos de propriedade e organização das comunidades rurais.

O mesmo teatro do faz-de-conta se repete nos demais temas da rodada. Dezenas de negociadores resistem em entregar na OMC um terço da abertura que já praticam domesticamente ou estão oferecendo de bandeja nos inúmeros acordos bilaterais mundo afora – caso das tarifas industriais aplicadas, hoje muito mais baixas do que as que foram consolidadas na OMC.

A verdade é que, depois de uma onda mundial de abertura unilateral nas décadas de 80 e 90, os protecionistas voltaram a dominar a cena, dentro e fora de eventos como o de Hong Kong. Seis dias de discussões produziram um texto hermético, que exige enorme treinamento para ser entendido e interpretado. Criativo em escapes e exceções, o documento apenas preserva o status quo das políticas comerciais nos quatro cantos do mundo. A comemoração dos experts em comércio no final da reunião era: “poderia ter sido pior!”

Enquanto isso, no mundo real cresce cada vez mais a distância entre a exuberância do comércio real e a consistência de suas regras. O comércio explode num mundo cada vez mais integrado pela globalização das finanças, da tecnologia e das comunicações. Já as regras multilaterais patinam e levam muitas nações e ONGs a querer ignorar, menosprezar e mesmo xingar o coitado do juiz, a OMC. Mas isso não funciona, pois simplesmente não há jogo que possa avançar sem regras bem definidas. A Rodada de Doha estaria concluída se os tomadores de decisão atentassem um pouco para os interesses coletivos da sociedade, em vez de se preocuparem tanto com as pressões dos seus lobbies mais arcaicos.

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