Pelo título deste artigo, e principalmente, pelo segmento em que o BeefPoint atua, eu deveria estar falando de gado. Mas não. Estou falando de gente. Mas de gente que, no passado, foi tratada como se fosse gado.
Refiro-me, obviamente, aos negros. Ou afrodescendentes, como preferem alguns. Ai, ai. Eu seria o que então? dinamarquês-descendente? Que eu saiba, sou apenas um cidadão brasileiro, pouco importando o matiz de minha pele. O termo “afrodescendente” é racista, e estigmatiza ainda mais aqueles a quem procura proteger ou enaltecer. Enfim…
Meus limitados neurônios não conseguem conceber como um ser humano pode arvorar-se “dono” de outro. Mas assim foi. No Brasil temos pouca noção cognitiva do horror do sistema de escravidão, por não termos sequer um “Museu da Escravatura”. E não o temos, pois Ruy Barbosa, eivado da melhor das intenções – mas obtendo o pior dos resultados – mandou destruir todos os arquivos sobre a escravidão, assim como os desumanos apetrechos de tortura e punição. Era uma “nódoa” que devia ser eliminada. Eliminou-se sim, não a nódoa, mas a origem e a história de dezenas de milhões de brasileiros. Tipicamente, varremos para embaixo do tapete aquilo que nos incomoda, e o problema está resolvido. Basta a prédica. A prática fica para depois.
Foi em Curaçao, há cerca de dois anos, que eu pude sentir melhor a terrível realidade do que é escravidão, ao visitar o Museu Kura Hulanda, cujo único tema é este: escravatura. Concordo, em parte, com aqueles que acham que algum tipo de reparação deveria ser oferecido à população negra. Perdão, afrodescendente. Mas não por serem negros, e sim porque como descendentes de escravos, tiveram menores chances de ascender econômica e socialmente.
O problema é: COMO?
Uma saudável discussão neste sentido, tem ocorrido nos últimos anos no Brasil. Saudável sim, mas a meu ver, equivocada. Principalmente quando centra o foco em raça, e determina, por exemplo, que a população negra deva ser privilegiada no acesso às Universidades, públicas ou privadas. Não sou sociólogo, nem pedagogo, mas tenho razoável vivência para, assumindo o papel de advogado do diabo, conceber algumas situações esdrúxulas que já ocorrem, ou virão a ocorrer a se insistir no sistema de cota racial.
Para simplificar, vou escrever sempre no “masculino”. Então vamos lá, meio ao léu, e sem pretensão a seqüência lógica:
– O sistema de cotas tem por base privilegiar um determinado segmento, em detrimento dos outros. Este é o seu fundamento. Optou-se por “raça”, quando, na minha opinião, a questão é “renda”.
– Assim, um negro com notas piores que as de um “branco” no vestibular, entraria na Universidade, mas o tal “branco”, não. É inconstitucional. Quem entrar com uma ação judicial neste sentido, ganha. Uma das cláusulas pétreas da Constituição é a igualdade e a isonomia entre os cidadãos.
– Se o negro tinha nível de instrução menor, tanto que precisou do sistema de cotas para “entrar” na universidade, é crível que ele tenha bom aproveitamento acadêmico ao longo do curso? Possivelmente, não.
– Instituído o sistema de cota racial, estigmatiza-se todos os negros. Exemplifico: terminado o curso, o cidadão negro vai procurar emprego. Não parece óbvio, meu caro leitor, que o entrevistador vai pensar algo como: “Esse aí entrou na faculdade de favor, e através de favor, ele se formou”. Pergunto: essa pessoa vai conseguir o tal emprego?
– E os negros com bom nível de instrução, que não necessitaram de qualquer espécie de favor, não serão também alvo deste julgamento depreciativo, mesmo sem merecerem?
– Este sistema de cotas (racial) não terminará nivelando conceitualmente – por baixo – todos os negros universitários?
– Além do mais, como determinar quem é preto, mulato, pardo, moreno, cafuzo, ou mameluco neste Brasil de todas as cores? No Rio de Janeiro ocorreram fatos engraçados. Uma universidade estadual optou pelo sistema de “auto declaração”. Quando o vestibulando se inscrevia, declarava a sua “cor”. Um candidato, que faria Michael Schumacher parecer moreno, declarou-se “preto”. Quando confrontado com a evidente discrepância, respondeu: “Ah, é que vocês não conheceram Vovó Benedita. Era negra retinta”.
– Outras Universidades, como a UnB (Brasília) resolveram optar pelo sistema de “comissão de identificação racial”. Ou algo deste jaez. Este sistema, esteve muito em voga nas décadas de 30 e 40, especialmente na Alemanha nazista. Pensei que estava sepulto. Verifico que não. O candidato é fotografado, e, mediante sua fisionomia, uma comissão “determina” a raça dele, e, em decorrência disto, se merece entrar ou não no sistema de cotas. Como dizia o recém falecido Leonel Brizola: “Francamente…”
Poderíamos, uma vez na vida, abandonar a hipocrisia que rege nossa sociedade e, em especial, nossos políticos, e dizer alto e bom som: O PROBLEMA NÃO É RAÇA, E SIM RENDA!! (ou melhor, a ausência dela).
Como fazendeiro, passei anos de minha vida ouvindo estultices como: “Você tem que plantar arroz, feijão e milho – para alimentar o povo brasileiro”. Por acaso, há falta destes artigos em supermercados ou vendinhas? Não. O que falta a boa parte dos brasileiros é dinheiro para compra-los.
Assim é com a Educação. Presume-se facilitar o acesso às Universidades, convenientemente “esquecendo” que tal não seria necessário se a educação básica fosse de boa qualidade. Assim era quando eu cursei economia em universidade federal, no final da década de 60. Meus colegas egressos de escolas públicas estavam no mesmo nível que os oriundos de educação particular, como eu. Alguns, como os que vinham do Colégio Pedro II ou Colégio de Aplicação, eram bem mais preparados que nós, “mauricinhos”.
Por que não se admite essa verdade gritante, e, enquanto investimento em qualidade no ensino básico não “matura” até que os alunos cheguem à idade de universidade, que se financie – a fundo perdido – cursinho pré-vestibular com duração de um ou dois anos para alunos POBRES, sejam eles brancos, pretos, amarelos ou qualquer combinação daí decorrente?
Não apenas esses alunos teriam melhor aproveitamento acadêmico, como entrariam na universidade pela porta da frente, e não pela dos fundos.
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Parabéns, Carlos.
Bom senso… É o que você tem de sobra, mas que falta aos nossos governantes.
Parabéns, ao Sr. Carlos Arthur Ortenblad, pela clareza com que colocou o tema, com o qual concordo totalmente.
Só gostaria de acrescentar, que esse nefasto sistema de cotas em universidade e no serviço público, vai acabar ainda motivando conflito racial, que era só o que nos faltava.
Saudações,
Mais uma vez, o Dr. Carlos Arthur nos brinda com sua sabedoria e perfeita interpretação dos fatos. Concordo plenamente com o teor desse artigo. O que falta ao brasileiro é, realmente, renda!
Fortalecer o ensino básico seria bom demais para todos nós e claro para o Brasil. Faríamos com que grande parte da população pudesse ter horizonte, descobrir novos caminhos profissionais, andar com as próprias pernas, sonhar. Mas…. talvez grande parte dos nossos “competentes” legisladores não fossem eleitos, os movimentos que mobilizam grande quantidade de analfabetos (que hoje não tem cotas em universidades) e deles vivem iriam fracassar, a mão de obra barata não existiria. A quem interessa esta melhor condição de raciocínio da população provocada pela melhoria do ensino básico? Nas propriedades rurais brasileiras nos deparamos com gente sem formação com extrema inteligência, poderiam produzir muito mais, com formação.
Com relação a ensino a situação do menor na zona rural é mais preocupante, pois não podem trabalhar (concordo plenamente) mas não tem como aprender muito, pois vivem metade do dia na escola – com ensino que deixa a desejar – e a outra metade desocupados, assistindo televisão. Tem 15, 16, 17 anos, brancos, negros, pardos e vão engrossar a lista dos que vão precisar de um favor para conseguir uma vaga na universidade ou ainda sem qualificação vão engrossar as colunas de outros movimentos – que irão sustentar com alta qualidade de vida muitos dirigentes – como o dos brancos desfavorecidos sem vaga nas universidades, dos que passam fome porque não sobraram vagas e não tem qualificação, dos que tentam aposentadoria pois não conseguem emprego, …. outros movimentos devem surgir.
A saída é uma só: EDUCAÇÃO, iniciando pelo ensino básico.
A quem interessa???, dou lhe uma, dou lhe duas… Se não houver interesse… Passo para os aproveitadores de plantão.
A importância da discussão proposta pelo Sr. Ortenblad pode ser evidenciada pelo fato de que, mesmo com o forte aumento das exportações brasileiras do produto, mais de 85% da carne bovina ainda é consumida pelo mercado interno.
Este é um mercado seguro e, na minha opinião, que deve ser protegido. Se algumas dezenas de bois não pagos “machucam” o sujeito, imagine algumas dezenas de milhares de toneladas de carne não pagas. Como as milhares de toneladas de soja recentemente devolvidas.
Isto em lembra que, recentemente, um “especialista em ré-maior” (pois que há também “especialistas em fá sustenido”) escreveu aqui no Beefpoint que os fiscais agropecuários estariam “abusando” quando assumiram uma posição em que defendiam , através do estatuto da greve, seus salários. Isto é, sua renda. Todos sabemos que um dos quesitos que os inspetores dos países desenvolvidos analisam é como a máquina administrativa do Estado lida com aqueles que querem fraudar, seja a vacinação seja o produto já na linha de embarque. Ou seja, como o Estado paga seus funcionários. Máquinas administrativas que funcionam necessitam de renda, no caso, salários dignos. Alguém aqui saberia quantos funcionários têm o USDA?
Apenas a ação do mercado também já está deixando de ser reconhecida como a única determinante da distribuição de renda. Isto é bem reconhecido no caso das “commodities”, mercadorias homogêneas que trabalham em regime de competição que “tende à perfeição”. Ou alguém ainda acha que frigoríficos devem destinar uma parte de sua renda graciosamente aos pecuaristas, simplesmente porque estes têm belos olhos ou cantam com emoção “O menino da porteira”?
Mas, permitindo-em atmbém um comentário ao aspecto crucial da questão, o do sistema de cotas, parece-me que onde ele inicialmente usado, existem defensores e detratores, com argumentos muito plausíveis.
Acho que o assunto merece um forte debate pois ninguém quer sofrer uma operação cardíaca, nem ter suas pastagens manejadas, nem seu rebanho manejado por profissionais inadequadamente preparados.
Acho mesmo que o Beefpoint deveria ter uma espaço de discussão destinado a temas como este, que o Sr. Ortenblad traz. Parabéns.