Por Francisco Vila1
Tudo começa com um bom diagnóstico da problemática
O saneamento de um problema geralmente já começa a resolver-se através do rigor com o qual foi conduzido seu diagnóstico. A confusão entre causas e efeitos, ou entre gargalos momentâneos e disfunções estruturais, muitas vezes emboca em ações corretivas improvisadas que não acertam no cerne do problema. Para obter maior clareza sobre “Quem está no início do desarranjo das atuais forças do mercado na cadeia produtiva da carne?” convém agrupar os ´atores´ em segmentos homogêneos para, a seguir, avaliar o impacto do comportamento de cada interveniente ao longo dos últimos anos. Só assim podemos obter uma idéia mais correta sobre a possível contribuição efetiva de cada elo para a melhoria da situação dos custos, do volume de produção e dos preços ao longo dos próximos anos.
Mesmo antecipando protestos de alguns, devemos classificar os atores da cadeia de produção nos seguintes grupos com maior ou menor responsabilidade pelo crescente desencontro entre a oferta e a demanda.
A raiz de todos os problemas está no excesso estrutural da oferta de animais
O problema mais grave, e de provável duração de ainda 2 a 3 anos, reside na oferta de animais para o abate que, há algum tempo, ultrapassa a soma da demanda nacional e internacional. Estas curvas de oferta e demanda articulam-se diariamente, tanto no mercado dos animais vivos (frigoríficos) quanto na BM&F onde ocorre a formação de preços em tempo real. Os produtores alegam que as cotações recentes situam-se abaixo dos preços reais do passado enquanto os preços dos bezerros e dos insumos provocaram um aumento do custo da produção no pasto e nos confinamentos.
Uma radiografia correta dos objetivos, dos grupos alvos e da filosofia de negócio dos principais atores ao longo da Cadeia de Produção certamente ajudará a compreender melhor como cada elo incorporou as recentes tendências técnicas, econômicas e políticas do setor e como ele, utilizando as ferramentas a sua disposição, tem contribuído para a modernização generalizada de grande parte dos tradicionais produtores que, até há pouco tempo ainda não estavam familiarizados com as soluções técnicas e gerenciais da pecuária moderna.
Grupo I
Os Dinamizadores
O trabalho da Embrapa, dos consultores empresarias, dos técnicos de manejo, dos zootecnistas, com a otimização das dietas balanceadas, dos veterinários, com a difusão da genética e da aceleração de produtos precoces, e finalmente, dos extensionistas alimentam, todos eles a sua maneira, o sistema tradicional de engorda com conceitos cada vez mais eficazes. É desta forma que são, em seu conjunto, os principais ´culpados´ para o excesso da oferta que, neste momento, descarrila o tradicional equilíbrio entre demanda e oferta do gado de corte. Em algumas regiões a estiagem acentuou este problema ainda mais um pouco. Só que, esta ´culpa´ não é dolosa, pois todos estes indutores do progresso têm atuado de boa fé e tudo ocorreu em paralelo sem grande orientação ou coordenação superior.
Grupo II
Os Protagonistas
Ao contrário do que se diz (de parte à parte) nem os frigoríficos, nem os produtores devem ser considerados os ´vilões da crise´. A atuação de cada lado reflete apenas reações a fatores externos. Falamos do jogo de mercado, como é conhecido este ajuste contínuo e dinâmico das forças da demanda e oferta. Neste grupo cabe ainda a indústria de insumos. Os fornecedores de adubos, produtos sanitários e sofisticadas opções nutricionais certamente devem assumir parte da autoria pelo salto qualitativo e a maior difusão de insumos cada vez mais eficientes que aumentaram, melhoraram e aceleraram a produção de carne para padrões cada vez mais elevados.
Grupo III
A Mão Invisível
Existe, sim, um originalmente culpado pelo desarranjo do equilíbrio do mercado bovino. É o governo que, na ausência de uma política clara para o setor nem estimula, nem desestimula. Além disso, não cria um quadro regulatório claro e rigoroso (rastreamento) e, no caso da existência de regras bem definidas, peca pela ausência de informações e na fiscalização (vide o brutal corte de verbas para a defesa sanitária). O repetido adiantamento do censo agrícola, ferramenta indispensável para a transparência do mercado, remete o tomador de decisão na cadeia produtiva a complicados modelos matemáticos de simulação ou, o que ocorre na generalidade, ao ´chute´ baseado em intuições dificilmente quantificáveis e altamente personalizadas.
O processo construtivo de apuração das responsabilidades
Sendo que a opinião pública, com forte adesão dos próprios produtores, elegeu o segmento dos frigoríficos como principal ´vilão da crise´ convém iniciar a ´investigação do crime´ por aí. É sem dúvida a estrutura bastante oligopolista da demanda por boi gordo e menos as conversas sobre práticas articuladas [´cartel´] que deu aos frigoríficos a força de conter os preços, aumentar as escalas e introduzir um sistema discriminatório de pagamento em função de características qualitativas do produto.
Constata-se que mesmo com um perfil bastante heterogêneo (pois, são 400 frigoríficos no país; porém invejavelmente articulado entre as (15) principais empresas) o segmento conseguiu praticar uma política de preços relativamente uni sono. Todavia, este fenômeno deve ser menos conseqüência de ´arranjos cartelistas´ do que fruto da cada vez maior transparência dos mercados altamente informatizados. É indiscutível que os frigoríficos atuaram pouco inteligentes quando definiram as novas tabelas de preços. Deveriam ter envolvido os ´parceiros produtores´, pois, sem dúvida teria saído um tabelamento bastante parecido e eles teriam ficado sem o ônus de ´pouco cooperativo´ ou ´democrático´. O que interessa, no entanto, é voltar aos fatos reais, ou seja, ao atual desequilíbrio do poder no mercado de animais para abate. Todo o resto é política e, assim, perda de tempo.
Os frigoríficos possuem, por enquanto, todo este poder por que o setor bovino quer vender mais animais do que o mix de demanda nacional e de exportação é capaz de absorver. Só isso! Numa economia de mercado, sem estoques estratégicos, seja por parte de cooperativas ou do governo, o preço se forma no ´spot´ do dia. E o frigorífico, que é prestador de serviço (abate) e agente interlocutor com os diversos elos da cadeia produtiva em direção ao prato do consumidor, não sente nenhuma obrigação para defender preço de nenhum terceiro, seja este o consumidor final ou o produtor da matéria prima. A lei da demanda e da oferta, além da constelação do poder (de 400 frigoríficos contra 150-200.000 produtores de boi), está ditando o comportamento. Igual ao que acontece na indústria automobilística onde 20 compradores (montadoras) negociam com aproximadamente 400 fornecedores (autopeças). Então, nada de novo! Assim não é preciso inventar a roda de novo e pode-se estudar quais das estratégias de compartilha na cadeia de valor podem ser ´importadas´ do asfalto para o pasto.
A problemática dos contratos de fornecimento de outras commodities em anos de super-safras ou safras problemáticas serve como ´case´ pela equivalência do movimento das forças do mercado. Ou seja, os frigoríficos, do modo como este setor está economicamente estruturado e legalmente regulado, estão funcionando absolutamente dentro de seu papel na cadeia produtiva. Quem não aceita esta realidade do poder (gostando ou não) dificilmente vai chegar a um diagnóstico eficaz sobre as condições que possam mudar este jogo de poder. Não se trata, assim, de dar razão ou de culpar este ou aquele, mas sim, de avançar na solução estrutural da crise sem lamentações e com o pragmatismo digno de um setor moderno da economia que ´re-surgiu para ficar´.
As ´vítimas´ do desacerto das simetrias econômicas do setor (produtores e consumidores) também não podem ser culpados, mesmo sendo eles exatamente a raiz de tudo o mal da sobre-oferta. O produtor só fez o que lhe foi dito e, aliás, fez melhor do que se esperava. E, o comprador não compra por que não quer…
O ´exercito de vendedores´ dos fabricantes de insumos e implementos é a força que parece ter maior impacto na implementação de melhorias contínuas nas fazendas. São estes técnicos altamente especializados que ´empurram´ os aceleradores para os sistemas de produção com máquinas mais produtivas, defensivos, sementes, adubos, novos conceitos de manejo e fórmulas inovadores de alimentação. Porém, não podemos culpar o ´vendedor´. Quando muito é o ´comprador´ o responsável final pelo uso destas ´armas´ que melhoram, aumentam e aceleram a produção nas propriedades.
Como se ouve, meio na brincadeira e meio com preocupação, nos intervalos dos leilões e das grandes feiras agropecuárias é que seriam a Embrapa, os consultores e todo mundo que incentiva o produtor a modernizar sua estrutura os verdadeiros culpados pelo excesso de boi para o abate. Aqui cabem ainda as escolas técnicas, os portais da internet, as revistas e os canais de tv da especialidade, bem como o grande número de feiras agropecuárias que, através da troca de experiências, promovem um constante benchmarking e uma sensibilização para a aplicação das chamadas melhores práticas da pecuária empresarial em cada vez maior escala no Brasil, de norte a sul.
Existe algo de verídico nesta distribuição de parte da culpa pela sobre-oferta a estes segmentos de vanguarda. Mas, novamente, estes apenas exerceram seu papel de dinamizador e, certamente, foram eles que colocaram o Brasil no pelotão de frente do comércio internacional das carnes (bovina, aves e suíno). Esta estrutura de profissionais representa a espinha dorsal da ´inteligência do negócio da carne´ no País. Procede, porém, que eles normalmente só focalizam num determinado ´nicho de excelência´, seja este um produto, um processo, uma região ou uma determinada empresa agropecuária. A coordenação macro do setor fica a cargo de outros.
É aqui que entram os analistas especializados em agroindústria, e nomeadamente os formuladores da política setorial desde institutos especializados e associações de classe aos órgãos do MAPA. E parece que foi neste segmento onde não se fez a lição de casa! Pois, sem censo agropecuário razoavelmente atualizado e sem um banco nacional de dados representativo sobre espécies, raças, especificidades regionais, atores setoriais e informações de mercado não tem sido possível construir um ´referencial macro´ que possa servir como bússola para a tomada de decisões dos agentes micro-econômicos. Assim, a conjuntura continua movimentar-se nos tradicionais ´ciclos de oferta´ cujas direções e amplitudes dificilmente se engrenem nos ´ciclos da demanda´. Com isto perpetua-se a problemática do desencontro temporário dos custos de produção e dos preços de produto. Ou seja, sem ninguém ter culpa direta e sendo que todos são culpados de uma forma ou outra.
Uma visão sistêmica da crise
Já que o governo está longe e as dezenas de associações de classe são relativamente amorfas e sendo que todos os outros, sejam eles criadores ou difusores de tecnologias de ponta, frigoríficos ou industrias de insumos também não são originais e exclusivamente culpáveis, talvez seja prudente trabalhar com um veredicto que inocente todos e que chame todos para sentaram e construírem, em conjunto, um modelo macro de referência com cenários mais consistentes, linhas de atuação compartilhadas, etc. para novamente colocar a cadeia da carne no trilho. Pois os frigoríficos sabem que não podem ´matar´ os pecuaristas (que não seria fácil, pois são mais de 150.000 e a morte na pecuária é lenta devido a seu perfil patrimonial e operacional). Os pecuaristas, por outro, já perceberam que eles precisam mesmo dos frigoríficos enquanto não estiverem organizados em cooperativas que funcionem como ´unidades de negócio´ com plantas próprias de abate e estruturas de comercialização.
Com esta conclusão podemos ´baixar o som´ no debate nacional sobre os supostos vilões, arremessar as mangas e começar um trabalho de ordenamento setorial do qual sairão ´linhas de orientação´ (no sentido de apoio e não de imposição) para as principais categorias envolvidas. Não se trata de um planejamento centralizado do tipo soviético, mas sim de um ´esforço concertado´ para criar uma maior transparência do mercado que, por sua vez, inspirará e orientará os planejamentos estratégicos e operacionais das milhares de grandes, pequenas e médias empresas pecuárias.
Assim, será pelo próprio mecanismo de mercado (que só funciona com alto nível de transparência e diálogo sobre a combinação mais eficaz dos fatores nas diversas regiões) que se vai fomentar uma distribuição mais equilibrada de poder. Espera-se que este esforço resultará (1) em preços mais justos em relação à contribuição efetiva para a criação de valor do produto final, (2) em custos mais transparentes e, finalmente, (3) na redução dos riscos de negócio de cada elo da cadeia produtiva de carne.
Feito este diagnóstico qualitativo da situação atual da produção de carne bovina, o próximo passo é o de construir um ´mapa de estrada´ para reduzir a desarticulação entre os diversos elos da cadeia produtiva e, nomeadamente, entre os 150.000 pecuaristas que constituem o segmento de produção da matéria prima. Este exercício fica para uma segunda reflexão.
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1Francisco Vila é economista
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Excelente o artigo do economista Francisco Vila.
O que existe realmente é uma oferta maior que a demanda, em função do aumento da produtividade pecuária. O aumento da produção de carne é fruto, principalmente, do magnífico trabalho desenvolvido pela Embrapa.
Naturalmente, outros atores contribuíram direta e indiretamente para o desenvolvimento de novas tecnologias aplicadas atualmente na pecuária.
A esperança é que haja aumento no consumo interno e na exportação de carne.
Enir de Souza Pinto
Parabéns pelo artigo. É claro e muito bem estruturado.
José Salgueiro
Prezados senhores,
A questão dos preços da arroba do boi gordo é meridiana: OFERTA FORTE VERSUS DEMANDA FRACA.
A obrigação de qualquer empresário, seja ele do agro, da indústria ou de serviços, é produzir, e produzir com eficiência. A evolução da pecuária nacional, seu grande salto qualitativo, sanidade e produtividade propiciaram o atingimento de 8 milhões de toneladas anuais de carne bovina (afora ainda abates clandestinos em pequenos municípios e periferia de metrópoles…), e mais as carnes suína, ovina e as aves, capitaneadas pelo frango – hoje o maior rival do boi no mercado doméstico.
Ora, num país onde a má distribuição de renda só perde para Serra Leoa, onde a classe média encolhe, os assalariados mínimos e os informais aumentam, a cada senso, é evidente que o nosso mercado interno não tem como absorver toda a produção de carne ofertada.
E, como nos ensina a velha lei de oferta e procura, falta consumo, sobra boi, o preço desaba.
Há saídas:
1 – dobrar as exportações como forma de enxugar o excesso de oferta no mercado interno
2 – pecuaristas mudarem de atividade, liquidando seus rebanhos e evadindo-se para a agricultura ( o que já vem acontecendo ), ou outras atividades quaisquer.
3 – rogar aos céus que iluminem o presidente e seus 33 ministros para que olhem o umbigo do nosso país e a penúria do nosso povo – elaborando políticas que visem efetivamente à equalização da distribuição da riqueza.
Cordialmente,
Antonio Carlos de Sousa Messias
Itabuna, Bahia
Sua análise diagnóstica está bem desenvolvida, mas identificou qual a doença que acomete a cadeia da carne e não identificou qual o agente causador. Começo dizendo que a culpa não é dos frigoríficos; o pecuarista necessita de uma rede forte e honesta.
Também não é culpa da tecnologia, pois esta tem penetração em qualquer cadeia produtiva. Temos que lembrar que o custo dos nossos insumos principais não reduz com a queda do dólar (causa importante da queda do preço da @).
Nossos insumos (vacinas, medicamentos, fosfatos e uréia Petrobras) são monopolizados e só tem viés de alta. Além disto, uma grande parte do aumento do no de animais bovinos é decorrente do caixa II, assunto este sempre esquecido nas discussões.
Portanto, precisamos de:
1o – fiscalização dos frigoríficos (impedir a sonegação e facilitar a entrada de frigoríficos estrangeiros);
2o – rastreabilidade obrigatória para todo rebanho (impedindo a lavagem de dinheiro com pecuária)
3o – facilitar a importação direta e quebra do monopólio dos importadores dos insumos = fosfato, uréia, etc,
4o – redução do imposto sobre os bens de produção (ensiladeiras, tratores, etc).
Carlos Henrique Ribeiro do Prado
Goiânia/GO
Análise oportuna, completa e conclusiva.
No entanto, como o autor deixa muito claro na última frase do artigo: O DIAGNÓSTICO É SÓ O COMEÇO.
O que interessa mesmo são as opções para a solução da crise. E quais são estas?
Parabéns Francisco Vila,
Extremamente oportuna a análise, porém, como o autor cita: “Temos o diagnóstico, e é somente o começo.”
– Será que não está na hora da classe agropecuarista fazer alguma coisa?
– Ficar lamentando e correndo sempre atrás do prejuízo, isto não dá para aceitar mais;
– Não devemos ficar esperando somente pela esperança…;
– Cadê a política econômica a nível internacional? O mais difícil é produzir, e produzir com qualidade competitiva em um país de terceiro mundo, com total instabilidade econômica; talvez isto seja uma razão para inibir os homens de boa fé e índole deste país.