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Rastreabilidade: ainda não está claro aonde queremos chegar

Muito já se falou sobre rastreabilidade no BeefPoint e outros veículos especializados em pecuária de corte. Apesar disso ainda não está claro aonde queremos chegar. O objetivo desse artigo é estimular uma discussão mais aberta dos rumos que a cadeia da carne deseja para a rastreabilidade no Brasil. Com certeza essas atitudes terão conseqüências para o Brasil no mercado interno, que não demorarão muito para chegar.

A rastreabilidade da carne teve sua origem na busca por aumentar a garantia da carne oferecida ao mercado. Esse movimento ganhou força com os problemas de EEB (doença da vaca-louca) em inúmeros países da Europa e a consequente diminuição no consumo e credibilidade da carne bovina. França e Reino Unido são bons exemplos de como a queda e a retomada da confiança da carne como alimento seguro influenciaram diretamente o consumo desse alimento.

Hoje sempre que se fala em rastreabilidade de qualquer alimento, os principais argumentos são:

– segurança alimentar
– respeito às exigências do consumidor atual

São razões muito importantes e devemos atender a essas novas exigências, se queremos atender esses mercados, como o europeu. Muitos podem acreditar que essas demandas não são importantes, ou ainda, que o consumidor não deseja realmente tudo isso: quer apenas um bife macio e saboroso.

Um especialista australiano em rastreabilidade explicou muito bem essa questão, afirmando:

Pouco importa se o consumidor europeu realmente deseja ou não a rastreabilidade. Os políticos (europeus) acreditam que os consumidores se importam, por isso criaram leis e normas que exigem a rastreabilidade. Nós (australianos) acreditamos que vender ao mercado europeu é interessante e que vale a pena investir nessa tecnologia para poder fornecer para esse mercado. O fato é: hoje ganhamos mais vendendo à Europa, mesmo tendo esse “custo” extra.

Segundo Lirani (2002), a função da rastreabilidade é: “encontrar o histórico de localização e utilização de um produto, por meio de identificação registrada”. Logo, se poderia esperar o seguinte procedimento de com um animal rastreado, separado aqui de forma prática em 4 etapas:

    1 – animal é identificado com número nacional, único e inviolável;

    2 – dados individuais sobre o animal são cadastrados, ligados ao número único do animal. Deveriam ser cadastrados dados como manejo alimentar, propriedade onde nasceu, possíveis (e muito freqüentes no Brasil) mudanças de propriedade durante a vida do animal, manejo sanitário (vacinas, medicamentos, etc), entre outras possíveis informações;

    3 – ao ser abatido, o número individual do animal (com todas as informações individuais) seria relacionado à respectiva carcaça do animal;

    4 – na desossa também haveria uma ligação entre o número da carcaça e cortes (mesmo que em lotes).

Dessa maneira seria possível ter informações precisas sobre o “histórico” da carne produzida. Aí vem a pergunta mais comum de todo o processo de rastreabilidade: Porque se faz necessário identificar individualmente os animais? A resposta é simples, mas está totalmente interligada com os outros itens citados acima.

Só com a identificação individual será possível saber por onde o animal “andou”, isto é, onde nasceu, onde foi recriado, engordado, pois com a identificação apenas por lote ou com uma numeração interna da fazenda não é possível que se tenha confiança nesses dados, pois uma fazenda de engorda pode ter adquirido garrotes de diversas outras fazendas, que por sua vez podem ter comprado de diversos criadores. Logo, um mesmo lote de 100 animais pode ter muitas origens. Além disso, número interno de uma fazenda pode ser duplicado, isto é, seria possível comprar 2 animais de 2 propriedades distintas, com o mesmo número.

No entanto, o que ocorre hoje e muitos acreditam que isso significa ter um animal “rastreado”? O animal é identificado com um número único, nacional e inviolável, isto é, com um brinco ou chip com o número SISBOV. Essa identificação ocorre no mínimo 40 dias antes do abate.

Até aí tudo vai indo muito bem. Essa identificação é a mais adequada possível, podendo apenas ter o refinamento de ser eletrônica. Para isso vale uma análise de custo/benéfico comparando o preço mais elevado e uma maior rapidez e eficiência na coletas de dados, com erro zero. O resultado dessa comparação varia dependendo da situação particular de cada propriedade ou empresa.

Hoje no Brasil a grande maioria dos animais “rastreados” abatidos no Brasil atende a apenas ao primeiro item dos 4 citados acima, que é a identificação individual. Não há informações individuais sobre cada animal, pois não há nenhum tipo de manejo (nutricional, sanitário, movimentação, etc etc) com apenas 40 dias antes do abate. Além disso, o número individual do animal não é “linkado” com a carcaça no momento do abate.

Logo, esse processo de identificação e certificação não agrega nenhuma informação nova. Se o produtor envia 100 animais para abate, todos identificados individualmente, após o abate, o frigorífico tem 100 carcaças, 100 “passaportes SISBOV” individuais, mas não há relação entre os passaportes e as carcaças nem informações individuais no passaporte (além do número). Isto é, todos os animais têm números únicos invioláveis, mas não se sabe “quem é quem”.

Em 1o de janeiro de 2004 todos os animais cuja carne será exportada (não só para a Europa, mas para todos os países), deverão estar rastreados. A partir de 1o de maio do próximo ano o prazo mínimo pré-abate para entrada no banco de dados do SISBOV será de 90 dias.

Em visita a feira de ANUGA na Alemanha, em outubro desse ano, todos os compradores de carne brasileira me informaram que a rastreabilidade brasileira estava atendendo suas necessidades. Por enquanto não há reclamações, mas a qualquer momento, técnicos do serviço de Inspeção Sanitária da União Européia podem questionar nossos procedimentos.

Por outro lado várias certificadoras brasileiras já estão atendendo o mercado que exige realmente a rastreabilidade. Alguns chamam de “protocolo A” quando têm dados individuais, isto é, realizam as 4 etapas do processo. E apelidam de “protocolo B” quando só identificam e certificam. Essas empresas estão prontas para fazer um trabalho muito mais completo, o que se pode realmente chamar de rastreabilidade. Conheço várias empresas que atendem esses dois mercados, que tem o mesmo nome de rastreabilidade, mas são bem distintos.

A rastreabilidade deveria ser mantida como facultativa, como é feita hoje na Austrália. O produtor que deseje ter seus animais como “candidatos” a exportação, se adequaria ao sistema e buscaria maior preço. Isso ocorre na Austrália hoje, nosso grande competidor e muito eficiente em todos os elos da cadeia da carne. Lá existem sistemas distintos para atender a mercados distintos e a rastreabilidade é só mais um item dentro do “sistema” para exportação para Europa.

Acredito firmemente que a rastreabilidade individual séria, completa e com credibilidade será uma forte ferramenta para garantir acesso a mercados e para servir como endosso de nosso sistema de produção. Isto é, servirá de “auditoria externa” para a qualidade ofertada pelo Brasil.

Se essa mudança de paradigma é complexa, acredito que o ideal seja favorecer os produtores e empresas que desejam ter uma rastreabilidade “blindada” a críticas e investigações do que estender (aos poucos) a todos os produtores brasileiros um sistema que não está dando nenhuma garantia adicional ao que se já tinha no Brasil “pré-SISBOV” e que não permite o produtor sério e tecnificado a buscar um melhor valor para seus produtos de maior valor.

Se temos dificuldades de executar um sistema robusto de rastreabilidade para os animais a serem exportados para a Europa, não seria melhor aprimorar esse sistema antes de estendê-lo a mercados que ainda nem o exigem?

0 Comments

  1. Torrinha disse:

    Boa a colocação sobre rastreabilidade, principalmente, sobre a identificacao no nascimento, e não esse engana que eu gosto que está sendo feito para atender interesses de certificadoras e tenho quase que certeza de integrantes do MAPA, caso contrario a certificacao teria sido colocado de outra forma, e discutida com a classe produtora.

  2. Joerley Moreira disse:

    O artigo é um bom referencial sobre o que ocorre em termos de rastreabilidade nacional.

    Gostaria de adicionar ao artigo o fato de que o sistema atual não só identifica o animal, mas também disponibiliza informações a respeito de dados individuais dos animais como sexo, raça, aptidão, idade e evidentemente a origem, dados estes registrados no certificado (DIA).

    Do ponto de vista de onde queremos chegar com a rastreabilidade, parece uma questão mais de segurança do que simplesmente agregar valor ao produto, como parece ser o caso da Austrália. Um sistema robusto de rastreabilidade não permitiria, por exemplo, que o país tivesse os prejuízos que o Canadá teve nos casos de BSE.

    Um sistema parcial deixa falhas num processo de Recall e como consequência, todo o sistema produtivo nacional entra em cheque.

    Por isto é que, do ponto de vista pessoal, de fato, é difícil aplicar políticas diferenciadas num mesmo mercado. Seria o mesmo que admitir que produzimos qualidade e segurança apenas para exportar.

    Qual seria este impacto frente aos nossos consumidores internos? Não precisamos investir também em segurança, confiança e credibilidade para os consumidores nacionais?

    Estas são perguntas frequentes em palestras apresentadas pela Biorastro em eventos nacionais, as quais às vezes represento.

    Resposta do autor

    Prezado Joerley,

    Obrigado por suas colocações.

    Concordo com você que precisamos “investir também em segurança, confiança e credibilidade para os consumidores nacionais”, mas será que estamos realmente entregando “credibilidade e confiança” para o consumidor europeu, com o sistema atualmente vigente?

    Desde já agradeço sua colaboração e estimular o envio de comentários por parte de todos os envolvidos.

    Um forte abraço

    Miguel Cavalcanti
    Coordenador BeefPoint

  3. Rodrigo José Bucci disse:

    Concordo com seu ponto de vista, porém, alguns detalhes não estão muito claros: Vamos lá.

    4 – na desossa também haveria uma ligação entre o número da carcaça e cortes (mesmo que em lotes).

    Este processo foge aos propósitos do SISBOV, como sistema de certificação de origem. Os regulamentos da UE que exigem certificação de processos, referem-se ao sistema de “criação” do animal e não de seu abate e desmonte. Para isso está sendo regulamentada a qualificação de carcaças, com legislação em fase de consulta pública e elaboração.
    As certificadoras que estão atuando somente como entidades cartoriais do sistema estão com seu tempo de vida limitado, visto que o mercado já está entendendo que a rastreabilidade, além de axigencia legal, pode ser poderosa ferramenta gerencial).

    A rastreabilidade deveria ser mantida como facultativa, como é feita hoje na Austrália. O produtor que deseje ter seus animais como “candidatos” a exportação, se adequaria ao sistema e buscaria maior preço. Isso ocorre na Austrália hoje, nosso grande competidor e muito eficiente em todos os elos da cadeia da carne. Lá existem sistemas distintos para atender a mercados distintos e a rastreabilidade é só mais um item dentro do “sistema” para exportação para Europa.

    Aconteçe que o sistema de rastreabilidade brasileiro não destina-se somente ao mercado importador, pois existe um cronograma de implantação do SISBOV, que encerra-se em 2007 – para os estado não livre da aftosa e em 2005 para os demais estados. Se deve ser adotado o conceito de segurança alimentar, a rastreabilidade facultativa representa falta de responsabilidade social e contrapõe aos 4 itens iniciais.

    Grande parte dos produtores brasileiros ou estão desinformados ou estão mal informados sobre o sistema ou ainda ambos. A rastreabilidade bovina foi importante passo dado na direção de colocar o produtor e o produto brasileiro no inconsciente coletivo como um segmento com responsabilidade social e ciente de seu papel na cadeia alimentar.

    Correções devem ocorrer, mas sem retrocesso.

    Abraços

    Resposta do autor

    Prezado Rodrigo,

    Bom dia.

    Obrigado pelos seus comentários.

    No entanto acredito que é fundamental ter o “ponto 4” na rastreabilidade. Como podemos certificar a origem de uma carne, se está não está “relacionada” com a carcaça e a carcaça com o animal. Se não existir “ligação” até o final de nada adianta. Por isso não concordo que o “ponto 4” fuja aos princípios do SISBOV.

    Sobre a questão de ser nacional ou facultativa. Acredito que o problema é muito anterior a isso. Ela deve ser facultativa até o momento que conseguirmos fazer realmente a rastreabilidade da carne que é exportada para a europa. Quando isso ocorrer podemos discutir com toda a cadeia se será facultativa ou não. Acredito que estão “colocando os carros na frente dos bois”. Na minha opinião o “cronograma SISBOV” deveria primeiro garantir a rastreabilidade da carne para a UE e depois avançar para outros mercados (carne para outros países).

    Um abraço e obrigado pela atenção

    Miguel Cavalcanti

  4. André Galassi Gargalhone disse:

    Parabéns pelo comentário!

    Só acredito que não importa se a rastreabilidade serve para garantir a segurança do alimento produzido e industrializado aqui no Brasil ou se ela agrega valor no produto final.

    A questão é: ela tem que funcionar para trazer os diferenciais que se espera!

    Parece que o brasileiro tem o grande defeito de não “escutar” o que estão falando os grandes e potenciais compradores de seus produtos, sejam eles internos ou externos.

    O consumidor europeu por exemplo quer ter a garantia que comendo uma carne do Brasil ele não vai ter alguma doença e não vai colocar em risco a saúde de seus familiares.

    Se a rastreabilidade serve pra isso, vamos fazê-la deixar de ser um problema político e de interesses e usá-la como ferramenta de agregação de valor e segurança!

    Quem tem que ganhar com essa ferramenta é a cadeia da carne, isso gera um desenvolvimento econômico para todos os elos altamente sustentável e para o consumidor final aquilo que ele mais espera : comer um produto bom e saudável, dentro dos conceitos que ele acredita como verdadeiros!

    Porém se a indústria e o varejo já perceberam a importância de usar a rastreabilidade como arma de marketing, ótimo! eles é que estão certos! o empresário rural também precisa começar a atentar que ele é o primeiro da cadeia a ter acesso a essa tecnologia podendo trazer para dentro de sua atividade os ganhos que esperam e que são justos, e não uma descoordenação generalizada e eternas “quedas de braço” com a indústria.

    Se a rastreabilidade já foi implantada correta e completamente em algum sistema de produção de carne no Brasil, saibam que alguém na cadeia já está tirando proveito disse. Parabéns aos que conseguem perceber e trazer os benefícios para dentro de sua empresa.

  5. Tito Livio Maschado Jr. disse:

    Concordo com suas ponderações e, pior, conforme os argumentos que apresento no artigo (Rastreabilidade- Quando o Brasil vai ter?) enviado e publicado pelo BeefPoint na seção Espaço Aberto, temos o perigo eminente de, quando for exigido rastreabilidade de nossos produtos, levaremos 3 anos para poder cumprir os requisitos.

    Esse argumento se baseia que até hoje nao temos nenhum bezerro rastreado e sem isso não se tem rastreabilidade.