Por Nelson Pineda1
Cabe à iniciativa privada assumir a operação do sistema de rastreabilidade no Brasil e ao governo a definição de regras e padrões
O conceito de rastreabilidade bovina2 está bem claro no mundo globalizado. O processo de rastreamento bovino começa com a implantação de um sistema de registro de manejo nutricional e sanitário, com a devida identificação, que existe em qualquer fazenda organizada. Essa informação precisa de um tratamento sistêmico e padronizado para conseguir interagir com outros sistemas dentro da própria cadeia produtiva.
A rastreabilidade está vinculada a aspectos de segurança, mas nem sempre à contaminação. É uma ferramenta na procura da qualidade, que permite identificar um lote de carne de características diferenciadas e associar essa carne aos animais geradores, identificar seu manejo e os produtores. Essas informações são o ponto de partida para um constante incremento da qualidade e produtividade no campo. O tratamento sistêmico desses dados é fundamental para alavancar inovações tecnológicas e promover a integração da cadeia produtiva.
Dificilmente o sistema de rastreabilidade chegará a ser implantado de forma abrangente e voluntária até 2005 pelo Ministério da Agricultura sem um programa de conscientização e a criação de um novo patamar de negócios que motive o pecuarista em termos de remuneração, através de processos de agregação de valor por um produto que possa satisfazer exigências do mercado internacional.
A implantação do programa de rastreabilidade se dará sem dúvida em primeira instância pelas exigências do comprador. Portanto é fundamental entender o que ele quer e atender a suas exigências, pelo menor custo e da melhor maneira possível, através de um sistema modular adaptado à realidade nacional. Deveremos também aproveitar a implantação da rastreabilidade para incentivar a integração da cadeia produtiva e introduzir programas de qualidade e marketing que nos ajudem a conquistar novos mercados.
Complicada diversidade
A pecuária de corte brasileira pode ser analisada a partir de duas características básicas: a diversidade e a descoordenação3. O cenário não mudou e enfrentamos um novo complicador, que são as exigências mercadológicas de nível internacional.
Os múltiplos sistemas de produção e de rotas tecnológicas diferentes, as condições sanitárias de abate e as variadas formas de comercialização, configuram o cenário da complicada diversidade da pecuária brasileira.
O pecuarista pode optar por diferentes alternativas, dependendo de condições particulares, do clima, região e mercado. Outro claro indicador dessa diversidade é a concorrência desleal entre frigoríficos alinhados com as exigências internacionais de exportação e os abatedouros clandestinos – a maioria em condições inteiramente inadequadas.
Existe um freqüente e persistente desequilíbrio nas relações entre criadores, frigoríficos, atacadistas e varejistas. As relações entre os agentes da cadeia de suprimentos são inteiramente baseadas no mercado. Não há, como na avicultura, contratos de longo prazo vinculando produtores e indústrias. Ademais, o poder de barganha dos pecuaristas que historicamente foi muito forte, pela possibilidade de reter animais no pasto, sem desembolso monetário, está diminuído pelo novo cenário de estabilização monetária e pela falta de coordenação dos produtores. A posição dos frigoríficos está também claramente diminuída pela concentração crescente do mercado varejista.
A prevalência de relações de mercado não seria problema. A avicultura desenvolveu um sistema que demonstrou enorme capacidade de aumentar sistematicamente a produtividade e sobreviver a um declínio persistente de preços. Somando isso à diversificação e à segmentação da oferta, a indústria avícola conseguiu subtrair expressiva parcela de mercado da carne bovina e reduziu o poder de fixação de preços do setor, contribuindo para agravar a crise que assolou o setor da pecuária de corte, aparentemente superada.
Um dos principais efeitos da descoordenação entre os elos da cadeia produtiva da carne bovina é a falta de rastreabilidade dos produtos. O consumidor não consegue estabelecer ligações entre o produto que adquire e o fornecedor. Os frigoríficos na grande maioria trabalham sem marcas. Os açougues, quase por definição, não podem assegurar a procedência da carne e os criadores entregam seus produtos em situações diferenciadas de idade, raça, sexo e acabamento.
As alianças verticais entre pecuaristas, frigoríficos, comércio e consumidores representam uma alteração cultural nos contratos comerciais entre os elos da cadeia da carne bovina essencial para trabalhar a rastreabilidade, além de garantir a integração da cadeia produtiva. A necessidade de informar ao consumidor as características do produto e de todo o processo de produção e comercialização só tende a crescer. A rastreabilidade é um conceito técnico necessário para garantir qualidade: pressupõe transparência, honestidade e permanente diálogo entre as partes na procura da satisfação do consumidor e no estímulo aos participantes do processo (De Camargo, 1997).
Alianças verticais
A rastreabilidade é a única ferramenta de diferenciação que oferece justificativa econômica para investimentos em genética para procurar carcaças de melhor composição e teor de gordura, de sistema de resfriamento e tratamentos post mortem que melhorem a maciez da carne. A segmentação do mercado e a diferenciação do produto somente podem ser feitas e trabalhadas com rastreabilidade. A tendência de inclusão de etiquetas e selos de garantia incentiva a criação das alianças verticais.
A rastreabilidade é também o primeiro passo para atender às novas demandas de consumidores do mundo todo, cada vez mais exigentes quanto à qualidade e à inocuidade dos alimentos. O número único dentro do sistema de controle nacional e a identificação individual dos animais através da marca a fogo, tatuagem, brinco ou microchips é simplesmente a primeira etapa do processo que envolve a rastreabilidade.
A implantação de sistemas de rastreabilidade varia de país a país, de acordo com os hábitos alimentares dos consumidores e a classificação no mercado mundial como importador ou exportador. Também são diferentes as razões pelas quais indivíduos, empresas e governos exigem a implantação desses mecanismos de segurança alimentar da população. O produtor precisa deles como uma nova e poderosa ferramenta de gestão, captação de dados zootécnicos e de manejo. Os governantes necessitam de um mecanismo que permita reconstruir a vida de um indivíduo e seus deslocamentos para assegurar à população a inocuidade dos produtos alimentares e para efetivar medidas de apoio ao mercado, controle de doenças e prevenção de fraudes. Empresas comerciais, principalmente as do mercado varejista, desejam a identificação para oferecer aos clientes produtos de qualidade e origem conhecidas. Finalmente, a dona-de-casa exige saber a origem da carne que consome, o ambiente onde o animal foi criado, o respeito que teve o produtor com o meio ambiente, o bem-estar animal nas fazendas, como o animal foi abatido, como sua carne foi manipulada e as embalagens elaboradas.
As novas demandas do mercado têm exigido, de todas as instituições ligadas à agricultura, uma mudança radical em suas legislações, objetivos, metas e ações, visando atender a essas novas demandas dos mercados nacional e internacional, oferecendo produtos com certificação de origem e qualidade. No Brasil, o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento criou o Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação Bovina e Bubalina (Sisbov)4. Contudo, essas instruções normativas trouxeram intranqüilidade, dúvidas e incertezas ao mercado, porque as regras do jogo, que deveriam ser bem definidas, estão difusas e permitem interpretações ambíguas. Há pouca participação da empresa privada no processo decisório e as metas fixadas para 2005/07 parecem inatingíveis.
Pressupostos para o sucesso
A probabilidade de sucesso na implantação está diretamente ligada à maior participação do governo na definição de regras, padrões e no controle, mas também na renúncia de sua participação na operação do sistema (Segundo Lirani, 2002). Quanto menor a ingerência do governo na operação, melhor será a implementação do sistema. Em contrapartida, a iniciativa privada deve assumir a operação do sistema e renunciar às atividades de definição de regras e padrões, que devem ser deixadas para os órgãos governamentais. De forma geral, o sucesso do programa de rastreabilidade brasileiro dependerá de:
– perfeito entendimento das exigências do cliente;
– sistema de identificação única do produto através de codificação aceita internacionalmente;
– regras de operação claras e bem definidas;
– sistema de operação informatizado;
– participação ativa e coerente de todos os agentes da cadeia produtiva;
– registros precisos e confiáveis;
– sistemas de auditorias eficientes;
– incentivar um novo patamar de negócios que valorize a arroba certificada.
Possivelmente o maior entrave está nas metas fixadas e na criação de um banco de dados nacional centralizado e de caráter oficial, além de eventuais problemas operacionais, se não for oficialmente estabelecido que esse banco de dados tem a função única e exclusiva de servir aos propósitos de rastreabilidade e certificação. Existe a desconfiança entre os pecuaristas de que o sistema de rastreabilidade pode ser usado para fins fiscais, por exemplo, pondo em risco o próprio sistema como um todo. Outro grande impedimento à popularização da rastreabilidade é a idéia de impedir ABCZ, Fundepec e outras entidades de prestígio de serem certificadoras, alegando motivos técnicos que nunca foram bem esclarecidas ao mercado. A ABCZ já exerce conceitualmente a função de certificação através do registro genealógico das raças zebuínas como delegada do próprio Ministério da Agricultura.
Além disso, falta padronização entre os registros zootécnicos nas fazendas. As certificadoras até agora credenciadas estão atuando de maneira agressiva, adotando valores aquém da realidade a fim de angariar clientes, o que poderá acarretar sérias dificuldades de caixa para algumas delas.
O Sisbov representa sem dúvida um grande avanço na modernização da pecuária nacional; motiva a participação do pequeno produtor, que deverá organizar-se via sindicatos e associações para viabilizar a rastreabilidade em pequenas propriedades; facilitará a gestão das fazendas e o fluxo de informações no meio rural; forçará o diálogo entre os pecuaristas e os frigoríficos; pode trazer o equilíbrio de forças entre os agentes da cadeia produtiva e criar novos sistemas de comercialização. Mas a meta fixada pelo governo – de que todos os bovinos no Brasil possuam, até 2007, um passaporte e um brinco com 17 algarismos – parece distante, quando combatemos ainda sem muito sucesso o abate clandestino e a sonegação fiscal.
O alcance do Sisbov e seu futuro estão nas mãos do próximo governo. A rastreabilidade bovina é uma exigência do mercado globalizado. Mas temos que implantar e controlar aquilo que nos é exigido dentro de nossa realidade. Resta então aproveitar de tal controle sistêmico as vantagens técnicas, administrativas e comerciais, sem permitir ao desequilíbrio que tem dominado o cenário continue a desestabilizar a integração da cadeia produtiva.
Para discutir o que convém ao Brasil de forma douradora, um diálogo construtivo e sério deve formar a massa intelectual crítica dos setores envolvidos no processo. Os legítimos responsáveis pela tomada de decisões devem ouvir sobretudo a voz dos produtores rurais, os primeiros a investir e definir um plano nacional para que a conta da rastreabilidade bovina da carne brasileira seja paga por quem exige segurança, o consumidor global, e não o pecuarista brasileiro.
Referências bibliográficas
DE CAMARGO, P. Aliança na carne bovina. In IV Simpósio: O Nelore do século XXI. Anais… Uberaba: ABCN, 1997. p. 45.
FAVARET Fo, P. & DE PAULA, S. R. L., Cadeia de bovina: o novo ambiente competitivo. id. p. 125-40.
LIRANI, A. C. Rastreabilidade: conceito e aplicação. In VI Simpósio: O Nelore do século XXI. Anais… Ribeirão Preto: ABCN, 2002.
PINEDA, N. R. Rastreabilidade, uma resposta aos anseios do consumidor. In 4º Encontro Nacional do Boi Verde. Anais. Uberlândia: 2002.
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1Nelson Pineda é diretor de Informática na Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ). pineda@terra.com.br
2Segundo Lirani (2002), a.medida da competência que possuímos ou não para realizar um trabalho de reconstituição dos fatos históricos que marcam o ciclo de produção e transformação do boi no pasto até à gôndola do consumidor.
3Segundo Favaret & De Paula (1997), que chamavam a atenção sobre as conseqüências desse cenário sobre a rastreabilidade dos produtos de origem bovina.
4O sistema foi criado através da Instrução Normativa no 1, de 9 de janeiro de 2002, e teve regulamentada sua implantação pelas instruções normativas no 21, de 27 de fevereiro de 2002, e no 47, de 31 de julho de 2002.
Originalmente publicado em: AgroanalysiS v: 22, n: 9, 2002. Fundação Getulio Vargas. Instituto Brasileiro de Economia.