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Rastreabilidade e Certificação: ainda tão incompreendidas

Por Altino Lopes Filho1

É da natureza humana um compromisso diligente, cuidadoso, esforçado com as coisas que as pessoas acreditam que possam favorecer seus interesses, que possa lhes favorecer em vantagens, proveito ou lucro. Quando não se consegue estabelecer uma ligação entre o que se tem que fazer e o que se quer fazer, a probabilidade de se obter um empenho determinado, decidido ou inabalável é pequeno. Por outro lado, pode-se ordenar que as pessoas façam coisas, é o caso das leis que não pedem, mas determinam que se faça; normalmente nesse caso as pessoas vão cumpri-las, pelo menos enquanto alguém estiver observando ou fiscalizando. Porém, se buscamos que as pessoas se dediquem, se empenhem, é necessário um real comprometimento interno.

Os dados pessoais – a visão que cada pessoa tem do mundo, da realidade – dizem respeito a como os indivíduos se sentem em relação ao que está acontecendo a eles e à sua volta. Se as pessoas sentem que não vão conseguir um resultado justo a uma determinada ação, isso é um fato, e caso se sintam assim é um fato que essa crença terá conseqüências sobre o seu comportamento. Ignorar esse tipo de fato é jogar fora dados que podem ser cruciais para qualquer esforço de solução de problemas.

Por que rastrear os bovinos e os bubalinos seria uma pergunta pertinente neste momento. A resposta aparentemente mais óbvia refere-se a exigência do MAPA e da Comunidade Européia, sem a qual não se poderá exportar, inclusive. Mas isso é suficiente para um comprometimento interno do produtor e da cadeia produtiva? Parece que não, porque ainda falta muito esclarecimento sobre essa questão.

Antes de prosseguir nesse raciocínio, uma premissa importante: rastreabilidade não é barreira sanitária. Poderá vir a ser uma barreira comercial, certamente será, mas de direito. Vale ressaltar, a rastreabilidade no seu foco mais imediato é um aprimoramento do conceito de segurança alimentar na esteira da epidemiologia iniciada lá nos idos românticos do século IXX com Koch e Pasteur, porém desafiada em pleno século XXI tecnológico por novas formas terríveis de doença ainda pouco esclarecidas e teimosas em se mostrarem diferente de tudo que conhecíamos em termos de doenças infecto-contagiosas.

Nesse sentido é indispensável uma compreensão mais profunda das necessidades, desejos, motivos e percepções dos grupos de consumidores internacionais atuais – principalmente Comunidade Européia – e potenciais – EUA e Japão por exemplo – de carne bovina brasileira. Os EUA estão em vias de iniciar a implantação da rastreabilidade nacionalmente, com atraso é verdade. Países continentais com grande população bovina apresentam uma dificuldade adicional, porque o processo é complexo mesmo para uma grande potência econômica. Por outro lado, um país que tem a capacidade de colocar com precisão cirúrgica um sofisticado módulo de pesquisa sobre a superfície de Marte quando ninguém já o fez, por exemplo, não há como duvidar que introduzirão a rastreabilidade bovina com seriedade e de forma competente, sedimentando esse novo paradigma sanitário como padrão para o mundo.

Fatores políticos, legais, econômicos, sócio-culturais, tecnológicos, sanitários e competitivos podem influenciar o sucesso do nosso país em manter e consolidar a posição internacional de liderança no comércio de carne bovina.

Estamos aqui diante de uma questão estratégica ao nível de toda a cadeia produtiva. Em que se discuta ser a proporcionalidade da distribuição dos ganhos entre os vários atores da cadeia justa ou injusta de acordo com o grau de investimento, riscos e etc, uma certeza única aflora: a não sustentação dos atuais níveis de comércio internacional será um desastre a todos.

As mudanças estruturais importantes, como a evolução tecnológica, têm uma série de impactos – positivos e negativos – nos seguimentos envolvidos, nesse caso a cadeia produtiva da carne não difere à regra. É necessário identificar e prever esses impactos e então administrá-los de forma a atingir o melhor resultado para todas as partes envolvidas, a fim de que, no final, o impacto da nova tecnologia como um todo seja positivo. A fim de alcançar esse objetivo, todos os impactos positivos previsíveis devem ser encorajados e maximizados, e os impactos negativos contrabalançados. Freqüentemente, um bom planejamento é essencial no tratamento dos impactos negativos através de uma conscientização e adequada intervenção. Os impactos de custos tendem a serem amplamente enfatizados, principalmente porque esses impactos são avaliados com grande facilidade. No entanto, o gerenciamento da atividade pecuária não deve perder de vista a ampla gama de impactos resultantes da rastreabilidade na cadeia produtiva, assim como a necessidade de identificá-los, compreendê-los e gerenciá-los. É importante também perceber que diferentes impactos requerem diferentes métodos de avaliação. Por exemplo, benefícios indiretos surgem em decorrência da rastreabilidade pela necessidade da implantação de planejamento e gerenciamento documentado, pouco usual na pecuária de corte, quase sempre ainda com administração empírica ou informal, mas fundamental quando a atividade é tratada como um negócio empresarial que visa eficiência e lucratividade. Assim, transborda de uma prática de controle sanitário um auxiliar na avaliação dos custos fixos e operacionais, uma ferramenta para o produtor melhor gerenciar o desempenho do seu negócio.

Um evento de tal grau de complexidade e de mudança para um novo modelo de segurança alimentar como é a implantação do sistema de identificação, rastreabilidade e certificação bovina em todo o Brasil, está sujeito particularmente a certo grau de riscos. O risco, no contexto da rastreabilidade pode ser definido como a possibilidade desse evento não alcançar seus objetivos. A falta de comprometimento decidido dos produtores, a transigência do governo às variadas pressões internas pouco sintonizadas com modelos de gestão progressistas, a inabilidade da cadeia produtiva de compreender os desejos dos nossos clientes internacionais são a receita básica para ameaças em potencial.

Não obstante, o risco é a base do negócio empresarial e não é necessariamente danoso. Os nossos concorrentes no mercado internacional, cada qual dentro das suas realidades, também enfrentam as mesmas dificuldades. Sem riscos não pode haver vantagem competitiva, cabe a cada ator no comércio globalizado da carne bovina encontrar a melhor oportunidade. A avaliação sensata das ameaças em potencial e a ação preventiva são a base do gerenciamento de risco e a mais eficiente forma de superação. “O gerenciamento de riscos é, ao mesmo tempo, a identificação de oportunidades e a prevenção e a atenuação de perdas” (Standards Austrália).

Está claro que o mercado internacional prioriza a segurança alimentar, e dentro da conceituação da rastreabilidade o controle sanitário se dá em grande parte na propriedade rural. É uma forma conceitual muito diferente do que tradicionalmente ocorre quando a triagem do que pode ser consumido ou não se realiza quase que exclusivamente dentro do frigorífico. Essa forma de selecionar sanitariamente na fase industrial além de fornecer uma menor garantia é contraproducente economicamente tanto para o produtor, quanto para a indústria e principalmente para consumidor. O consumidor geralmente arca com a conta da ineficiência ou quando há opção, rejeita o produto menos atraente por outro que lhe ofereça mais vantagens agregadas.

Traduzir para o mercado as garantias e as vantagens agregadas da carne bovina brasileira incide na necessidade de certificação seja do bovino através do Sisbov ou mesmo do produto carne em si, inspirando confiança ao garantir que o produto tem sido avaliado por organismos certificadores independentes, competentes e sem qualquer interesse conflitante comercial, de produção ou financeiro.

Em muitos setores do agronegócio a certificação já se tornou um requisito imprescindível para execução das atividades produtivas. É um predicado de fato para poder vender os produtos, um marco diferencial no mercado, sendo garantia de integridade e competência, aumentando assim as oportunidades comerciais dos produtores, oferecendo garantias de sua capacidade e é um meio de conscientização sobre a necessidade de melhoria contínua.

Aqui há uma justificativa e uma motivação fundamental para o envolvimento governamental nessa atividade como responsável pelo credenciamento das entidades certificadoras, assim como pela manutenção ou não do credenciamento, envolvendo avaliações periódicas, definidas em legislação, com o objetivo de verificar a permanência das condições que validaram a sua concessão inicial do credenciamento.

O governo brasileiro não deverá capitular às pressões domésticas, quaisquer que sejam, que nos distanciem em algum grau do caminho de sedimentar real confiança internacional na nossa carne, sob pena de desestruturação da credibilidade do processo da rastreabilidade. Caso a certificação caminhe para uma mera formalidade documental, onde o que está no papel não corresponde à realidade dos fatos, todo o processo estará em risco.

O custo do insucesso da implantação da rastreabilidade no Brasil não despertando a credibilidade global, pode ser desastroso, transformando benefícios positivos em evidentes perdas econômicas, publicidade internacional negativa, embaraço político e litígios por quebras de contratos.

O boi do séc. XXI será o boi programado, gerenciado e certificado. Quando a vaca for enxertada toda a logística da cadeia produtiva será acionada. Cada elo da cadeia deverá assumir sua responsabilidade em benefício do conjunto, do consumidor e do país, garantindo produtividade, lucratividade, mercado e segurança alimentar.

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1Altino Lopes Filho, médico veterinário e diretor de Agrotecnologia da IFM – Soluções em Rastreabilidade

0 Comments

  1. Marco Garcia de Souza disse:

    Só uma pergunta…

    Por que ser obrigatória e não opcional?